As vidas

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6.400 palavras

— Gostou pai? – Perguntei a ele enquanto observava sua reação ao desenho.

No papel, rabisquei meu pai, com sua habitual camisa polo lilás, meio desbotada e manchada pelo seu serviço. Sobre sua cabeça, uma pedra que se assemelhava a um cristal ou diamante antropomórfico, cujos membros eram apenas palitos desenhados, mas das mãozinhas daquele serzinho saíam filetes de cordas ultrafinas, que se prendiam aos ombros, aos cotovelos, aos pulsos, aos joelhos, a nuca de meu pai desenhado.

No entanto, aquele pai que esbocei ali erguia os próprios punhos bem alto e com uma expressão de determinação, fazia um gesto afastando os punhos cerrados e entre eles, uma corrente partida, soltando pedaços microscópicos pelo ar e seus olhos assustadoramente expressivos, denotavam o quanto lhe era prazeroso aquela tomada de decisão, de se libertar.

— Ficou incrível! – Minha irmã declarava, estava às costas dele, com os ombros envolvendo os ombros de nosso pai.

— Filho, melhorou muito desde o jardim de infância! – A sinceridade de minha mãe nunca havia me abalado tanto quanto naquele momento.

— Mãe... – Minha irmã saiu em minha defesa, enquanto nossa mãe dava de ombros.

— Eu achei que fosse soar como um elogio... – Ela dizia – Afinal, reconhecer a evolução... – Ela me olhou – Não acha, filho?

— É... – Eu me recompunha de suas palavras, gaguejando, mas concordando.

Olhei para o meu pai novamente, ainda à espera de uma resposta sua que me animasse.

— Pai? – Perguntei.

Ele ergueu os olhos marejados em minha direção.

— Você me vê assim? – Me indagou.

— Bem, eu... meio que desenhei algo relacionado a você que eu desejasse demais que acontecesse. E aconteceu... eu sei que parece loucura, mas... você viu este desenho antes de pedir sua demissão?

Ele fez que não com a cabeça.

— Bem... a verdade é que eu só quero dizer a você que me sinto muito feliz por você, pai. – Sorri, pedi o desenho de volta, mas meu pai, com a expressão de seu rosto, pediu para ficar com ele. Assenti.

Já estava tão atrasado para a aula que entraria no segundo período. Abri meu whatsapp e havia uma mensagem de William:

Vc ñ vem hj?

Vou entrar na aula do Paulinho Gugu, respondi a ele, me referenciando ao Paulo Augusto, ao seu jeito maroto que nos fez apelida-lo desta forma.

Bia não veio

Falou com ela, será que está bem?

Calma, dv tá siiim, mas cm crtz de ressaca rsrsrs

Saíram ontem?

Não, mas ela bebe em ksa msm

Mesmo tendo aula no dia seguinte?

Hahahah principalmente tendo aula no dia seguinte...

Não que aquilo tenha me incomodado ou preocupado de alguma forma e eu já sabia que ela adorava tomar umas e outras. Naquela noite em que saímos depois de finalizar o trabalho da Páscoa, ela pediu uma bebida chamada Frozen umas cinco vezes. Sei que dormiu quase todo o dia seguinte. Presenciei suas quedas, suas risadas descontroladas, desviei meus olhos das incontáveis vezes em que parte de seu mamilo saía de dentro da blusa. William bebia mais que ela, porém se controlava mais e ali mesmo eu tinha entendido o motivo; precisava sustentar Beatriz e lembra-la de quem era depois que acordasse.

CRIATURAWhere stories live. Discover now