A normalidade

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4.610 palavras


Eu nunca imaginei que teria um sonho tão louco e lúcido ao mesmo tempo como o que eu tive naquela noite.

Certo que algumas coisas eu vou ter que tratar dessa forma para que eu lhe relate tudo ao seu devido tempo.

Mas foi exatamente assim que me acordei naquele dia após a caminhada que fiz com o ser que estava se tornando meu amigo, como se tivesse acordado de um devaneio arquitetado pelo meu subconsciente.

Me senti disposto, sentei à escrivaninha e bolei alguns desenhos inspirados no sonho: fiz um viaduto, um sol poente no horizonte e esboços de rostos de pessoas na calçada e a luminosidade do sol foi mais difícil que os detalhes dos edifícios.

Desenhei uma vidraça e esbocei meus colegas dentro da sala de aula, mas não me detive ao desenhar Beatriz em seus meandros de personalidade, suas trocas repentinas de humor, e adicionei ao seu visual, uma corrente com pingente forjado no símbolo do signo de Touro, e retirei o anel de compromisso da mão direita.

Fiz uma praça, a mesma da rua principal do meu bairro, com a fachada da lanchonete numa esquina e no outro quarteirão a praça, mas vazia, apenas com uma bola de futebol abandonada no meio da quadra, um livro jogado num banco de concreto, aberto, aguardando por quem o lesse e encostada no banco, uma bicicleta dita de menina. Olhei o desenho e me vieram algumas frases à mente que eu podia dizer junto dele para oferece-lo aos meus pais.

Levantei da cadeira, com o papel da gravura em mãos, como quando era criança e tentava retratar o que quer que fosse numa folha de ofício. Cruzei a porta e o corredor e parei abruptamente quando vi minha irmã apoiada com os cotovelos no corrimão da escada, olhando ao longe e ao fundo, ouvi vozes alteradas vindas lá de baixo. Ela me fitou com tristeza, mas avancei até o topo da escada. E sentei ali para escutar. Meu pai não parecia mesmo, além de sua voz alterada havia algo como se incrustrado nela, notava-se que seu peito quase lhe traía e por vezes seu discurso falhava e ele parecia estar sem ar.

— Até quando? É só isso que eu quero saber... – Ele perguntava num tom de desafio.

Pelo abafamento do som daquelas cordas vocais, estavam na sala, a cozinha era bem no sopé da escada e estaríamos vendo-os nitidamente.

— Eu já te expliquei que não foi com a mesma intenção de antes... – minha mãe respondia, ponderada e visivelmente mais controlada que ele. O que eu tenho com ele é também uma amizade, que não tenho coragem de deixar para trás!

— E é por essa... amizadezinha, que você arrisca nosso casamento? – O nojo e o desprezo com que ele falou "amizadezinha", nunca testemunhei em meu pai. – Mais uma vez...? – Finalizou a indagação inundado em amargura.

— Não significa isso!

— Significa o quê? Por que você insiste?

— O que eu tenho certeza é que não quero perder o nosso casamento! Eu sei que tenho que parar de errar desse jeito, mas ele me procura e a gente acaba voltando a conversar... – Ela parecia genuinamente arrependida.

— Então você tem que dar um basta! – Meu pai gritou.

Minha irmã e eu nos entreolhamos e ela se envolveu nos próprios braços, suspirando. Se virou para entrar no quarto e me chamou, e eu disse que não, que ficaria ali até que eles se acalmassem. Fitei o meu desenho.

— Eu preciso conversar com eles. – Disse, e ela voltou para a beira do corrimão, observando o meu desenho, parecendo reconhecer a praça ou os objetos ali retratados.

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