Capítulo I

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30 de março de 2017.

Todos diziam que não valia a pena... Que eu deveria me preocupar em ser uma boa filha, para posteriormente ser uma boa esposa. Que não deveria desperdiçar minha juventude debruçada em livros e fazendo trabalhos sem remuneração...

Mas agora, aos trinta e dois anos, sentada na varanda do meu apartamento, olhando a imensidão do mar em Ipanema, respiro a brisa salgada e tenho certeza de que valeu cada minuto de estudo e determinação para chegar até aqui. Nada mal para uma menina nascida no interior de Minas Gerais, filha de professores, funcionários do estado, que conseguiram me dar as duas coisas mais importantes do mundo: amor e estudo. Com eles, me senti plena o suficiente para saber que poderia alcançar o sonho que tivesse...

O apartamento, na verdade, não é meu. Faz parte do "kit" de emprego: um salário confortável, um apartamento funcional na Vieira Souto, um carro blindado com motorista à minha disposição. Nem acreditei quando me deixaram escolher o modelo e até a cor do carro! E ainda os bônus e a participação nos resultados. Nada mal.

Já moro no Rio há sete anos, mas ainda não o considero minha cidade. O tanto que me dedico ao trabalho não me permite ter muitos amigos. Há várias pessoas que participam do meu dia a dia. Membros da diretoria, corpo técnico e centenas de conhecidos que transitam nos mesmos ambientes. Frequento festas, congressos, convenções, lançamentos de produtos e até eventos governamentais, onde bons contatos são sempre bem-vindos, mas sempre com o foco profissional, concentrada em não perder nenhum detalhe que possa gerar lucros ou dificuldades para a empresa. De repente por isso consegui ser nomeada CEO de umas das cinco maiores indústrias farmacêuticas aos vinte e nove anos, e desde então dedico minha vida exclusivamente a isso. Claro que tenho meus momentos. Gosto de bons vinhos, de restaurantes saborosos, de ir ao cinema. Programas normais para minha idade, sempre acompanhada de minha amiga Rebeca.

Nos formamos juntas na faculdade, fizemos mestrado e doutorado na mesma época, conseguimos trabalhar na mesma empresa, mas Rebeca é o gênio da pesquisa, extremamente técnica e meu braço direito, na empresa e na vida. Ela é tão bonita quanto nerd. Quando viemos morar aqui seus pais já estavam aposentados e se prontificaram a se mudar com ela. Alugaram um apartamento pequeno aqui perto, mas o quarto que fizeram para ela é só para guardar as centenas de livros dos quais não consegue se desfazer... Apesar de todos os mecanismos eletrônicos de que dispomos e da velocidade da atualização das informações, ela tem apego pelos livros teóricos, aqueles que fizeram nossa história acadêmica ou a própria história da farmácia.

Não posso dizer que falte espaço aqui em casa. Afinal, são oitocentos metros quadrados de puro luxo. Certo é que eu não usaria essa decoração tão impessoal que a empresa providenciou no modelo tipo "feito por arquiteto para agradar qualquer CEO". Sempre acho que eles imaginam que o usuário do apartamento seria um homem solteiro... Dividir o espaço com Rebeca é um alento.

Minha rotina inclui ainda caminhadas diárias pela orla. Sempre odiei academias, mas, para quem viveu a vida inteira longe do mar, esse momento se tornou especial. Aproveito para colocar a cabeça em ordem e, de quebra, não deixo o sangue coagular. Rebeca nunca me acompanha, mas sei que ela convenceu Arthur, o motorista, que uma de suas atribuições era caminhar disfarçadamente atrás de mim, afinal, estamos em uma cidade perigosa. Finjo que não sei, até porque, se eu descobrisse, poderia ser considerado desvio de função... Mas na sua teoria Arthur é pago para me conduzir, seja de carro ou a pé. Não reclamo. Realmente me sinto mais segura com ele por perto. E sei que ele aproveita para também se exercitar e ficar observando as outras pessoas que caminham na praia.

Paro de divagar na varanda quando ouço um estrondo. Parece que a cozinha está sendo implodida! Chego o mais rápido que posso para encontrar Rebeca estatelada no chão. A precisão que ela tem nas mãos falta para o resto do corpo! Há panelas por todos os lados!

Eva BiancoWhere stories live. Discover now