A COMPULSÃO PELO TRABALHO É UMA MENTIRA DA VIDA

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Jovem: Tudo bem, admito que não tenho a coragem de caminhar na direção da autoaceitação ou da confiança nos outros. Mas será que isso é culpa só do “eu”? Não seria um problema causado por outras pessoas, que me atacam e fazem acusações falsas a meu respeito?

Filósofo: Na verdade, nem todas as pessoas são boas e virtuosas. Passamos por uma série de experiências desagradáveis em nossos relacionamentos. Mas, neste ponto crítico, precisamos entender uma coisa: em todos os momentos, “aquela pessoa” que ataca você é quem tem o problema, e não é verdade que todo mundo seja mau. Pessoas com estilos de vida neuróticos costumam encher seu discurso com palavras como “todos”, “sempre” e “tudo”. Vivem dizendo: “Todo mundo me odeia”, “Sou sempre eu quem sai perdendo” ou “Está tudo errado”. Se você tem o hábito de fazer essas generalizações, deve tomar cuidado.

Jovem: Isso me soa familiar.

Filósofo: Na psicologia adleriana, consideramos isso uma forma de viver sem “harmonia de vida”. É uma forma de viver em que o indivíduo só vê uma parte das coisas, mas julga o todo.

Jovem: “Harmonia de vida”?

Filósofo: Nos ensinamentos do judaísmo há a seguinte história: “Se existem 10 pessoas, uma delas irá criticá-lo, não importa o que você faça. Essa pessoa irá detestá-lo, e você não aprenderá a gostar dela. Em seguida, você vai encontrar duas com quem se dará bem em tudo, de cara, irá combinar perfeitamente. Vocês se tornarão amigos íntimos. As sete pessoas restantes não vão se encaixar em nenhum desses tipos.” O que fazer? Se concentrar na pessoa que o detesta? Prestar mais atenção nas duas que o adoram? Ou se concentrar na maioria, as outras sete? Uma pessoa sem harmonia de vida verá apenas a pessoa que a detesta e julgará o mundo com base nela.

Jovem: Intrigante.

Filósofo: Certa vez, participei de um workshop para pessoas que sofriam de gagueira e seus familiares. Conhece alguém que gagueje?

Jovem: Sim, um garoto da escola onde estudei. Deve ser difícil lidar com isso, tanto para quem gagueja quanto para a família.

Filósofo: Por que é difícil lidar com a gagueira? Para a psicologia adleriana, as pessoas que sofrem de gagueira estão preocupadas apenas com a própria maneira de falar, têm sentimentos de inferioridade e consideram suas vidas insuportavelmente difíceis. Como resultado, se tornam autoconscientes e começam a tropeçar nas palavras cada vez mais.

Jovem: Elas só se preocupam com a própria maneira de falar?

Filósofo: É. Poucas pessoas ririam ou zombariam de alguém que tropeçasse nas palavras de vez em quando. Usando o exemplo que acabei de mencionar, provavelmente não seria mais de uma pessoa em 10. De qualquer modo, com o tipo de imbecil que toma uma atitude como essa, é melhor romper o relacionamento. O problema é que alguém sem harmonia de vida vai se concentrar apenas na pessoa que a detesta e acabará pensando: Todos estão rindo de mim.

Jovem: Mas isso é da natureza humana!

Filósofo: Faço parte de um grupo de leitura que se reúne regularmente, e um dos participantes tem gagueira. Ela se manifesta quando chega sua vez de ler. Mas ninguém do grupo é do tipo que riria dele. Todos ficam sentados em silêncio e, com toda a naturalidade, aguardam as palavras saírem. Tenho certeza de que esse fenômeno não ocorre só no meu grupo de leitura. Quando os relacionamentos não vão bem, a culpa não pode ser lançada na gagueira, no medo de corar, etc. Embora o verdadeiro problema seja o fato de que o indivíduo não alcançou a autoaceitação, não confia nos outros ou não é capaz de contribuir para os outros, ele está se concentrando apenas numa minúscula parte das coisas que não deveria ter a menor importância e, com base nisso, acaba formando julgamentos sobre o mundo inteiro. É um estilo de vida equivocado que carece de harmonia de vida.

Jovem: Você transmitiu mesmo essa ideia grosseira a pessoas que sofrem de gagueira?

Filósofo: Claro. De início, houve reações adversas, mas, ao final do workshop de três dias, todos haviam concordado.

Jovem: Com certeza, é um argumento fascinante. Mas a gagueira me parece um exemplo bem específico. Poderia me dar outros?

Filósofo: Bem, podemos falar do workaholic, outro exemplo de pessoa que claramente não tem harmonia de vida.

Jovem: Os workaholics? Por quê?

Filósofo: Pessoas que sofrem de gagueira estão olhando apenas para uma parte das coisas, mas julgando o todo. Com os workaholics, o foco recai somente num aspecto específico da vida. Provavelmente eles tentam justificar esse comportamento dizendo:
“Tenho muito trabalho, não sobra tempo para pensar na família.” Mas isso é uma mentira da vida. Eles estão apenas usando o trabalho como desculpa para evitar suas outras responsabilidades. A pessoa deve se preocupar com tudo, das tarefas domésticas à criação dos filhos, das amizades aos hobbies, e assim por diante. Adler não reconhece estilos de vida nos quais certos aspectos são extraordinariamente dominantes.

Jovem: Ah... Meu pai era exatamente esse tipo de pessoa. Parecia um disco arranhado, dizendo: “Trabalhe duro”, “Priorize o trabalho”, “Produza resultados”. “Depois governe a família sob a alegação de que você é quem leva comida para casa.” Ele era uma pessoa bem autoritária.

Filósofo: De certa forma, nesse estilo de vida você se recusa a reconhecer suas tarefas da vida. “Trabalho” não significa ter um emprego em uma empresa. Trabalho doméstico, criação dos filhos, contribuição para a sociedade local, hobbies e muitas outras coisas são trabalho. As empresas são uma pequena parte desse universo. Um estilo de vida que só reconhece o trabalho nas empresas carece de harmonia de vida.

Jovem: É exatamente isso! E, além do mais, quem leva esse estilo de vida não permite qualquer manifestação da família que está sustentando. Não dá para discutir com seu pai quando ele reclama num tom de voz agressivo: “Graças a mim tem comida na mesa.”

Filósofo: Um pai desses provavelmente só conseguiu reconhecer o próprio valor no nível das ações. Ele trabalha horas e horas, ganha um salário suficiente para sustentar a família e é reconhecido pela sociedade – e por isso sente que tem mais valor que os outros membros da família. Mas chega um momento em que não conseguimos mais servir de provedores. Quando você envelhece e atinge a idade de se aposentar, por exemplo, só lhe resta viver da sua pensão ou ser sustentado por um filho. Aliás, mesmo quando você é jovem, um problema de saúde pode impedi-lo de continuar trabalhando. Nessas ocasiões, o indivíduo que só consegue se aceitar no nível das ações acaba fortemente prejudicado.

Jovem: Você está falando daquelas pessoas cujo estilo de vida se resume ao trabalho?

Filósofo: Isso. Pessoas que não têm harmonia de vida.

Jovem: Acho que estou começando a entender o que você quer dizer com “nível do ser”, que mencionou da última vez. E certamente não refleti muito sobre o fato de que um dia não vou conseguir mais trabalhar nem fazer nada no nível das ações.

Filósofo: O indivíduo se aceita no nível das ações ou no nível do ser? Esta é uma questão relacionada à coragem de ser feliz.

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