DA LUTA PELO PODER À VINGANÇA

159 9 2
                                    


▲──────◇◆◇──────▲


Jovem: Toda essa conversa sobre teleologia e coisa e tal é pura enganação! O trauma é uma realidade, e as pessoas não conseguem se libertar do passado. Tenho certeza de que você tem noção disso. Não podemos usar uma máquina do tempo para retornar ao passado. Enquanto o passado existe como passado, nós vivemos no presente, mas em contextos criados no passado. Se alguém tratasse o passado como algo que não existe, estaria negando toda a vida vivida. Você está insinuando que eu escolhi uma existência tão irresponsável?

Filósofo: De fato, não se pode usar uma máquina do tempo nem voltar os ponteiros do relógio. Mas que tipo de sentido se atribui a acontecimentos passados? Essa é a tarefa dada a “você agora”.

Jovem: Então vamos conversar sobre “agora”. Da última vez, você disse que as pessoas criam a emoção da raiva, certo? Disse também que esse é o ponto de vista da teleologia. Ainda não consigo aceitar essa ideia. Por exemplo, como você explicaria casos de raiva contra a sociedade ou o governo? Você diria que também são emoções forjadas para impor nossas opiniões?

Filósofo: Claro que em certas ocasiões eu fico indignado diante dos problemas sociais. Mas eu diria que, em vez de um surto de emoção, trata-se de indignação baseada na lógica. Existe uma diferença entre raiva pessoal (ressentimento pessoal) e indignação com as contradições e injustiças da sociedade (indignação moral). A raiva pessoal passa rápido, já a indignação moral perdura. A raiva como expressão de um ressentimento pessoal não passa de uma ferramenta para fazer os outros se submeterem a você.

Jovem: Está dizendo que ressentimentos pessoais e indignação moral são coisas diferentes?

Filósofo: São completamente diferentes. Porque a indignação moral vai além dos nossos interesses pessoais.

Jovem: Então vou perguntar sobre os ressentimentos pessoais. Com certeza, até você se zanga às vezes, certo? Vamos supor que alguém o xingue sem motivo. Você não ficaria irritado?

Filósofo: Não, não ficaria.

Jovem: Sem essa, seja honesto.

Filósofo: Se alguém me xingasse na minha cara, eu refletiria sobre a meta oculta da pessoa. Ainda que você não seja diretamente agressivo, quando se sentir zangado diante das palavras ou da conduta de outra pessoa, leve em conta que ela está desafiando você para uma luta pelo poder.

Jovem: Uma luta pelo poder?

Filósofo: Isso. Por exemplo, uma criança provocará um adulto com várias travessuras e má-criações. Em muitos casos, fará isso para chamar atenção, mas vai parar antes de deixar o adulto zangado de verdade. Mas, se ela não para antes de o adulto ficar irritado, sua meta é entrar numa briga.

Jovem: Por que ela iria querer se meter numa briga?

Filósofo: Ela quer vencer. Quer provar seu poder vencendo.

Jovem: Não entendi. Pode me dar exemplos mais concretos?

Filósofo: Digamos que você e um amigo estão conversando sobre a situação política atual. Em pouco tempo, o bate-papo vira uma discussão acalorada, e nenhum dos dois está disposto a aceitar diferenças de opinião, até que, em determinado momento, a discussão descamba para ataques pessoais: um diz que o outro é estúpido e por causa dele o país não muda, esse tipo de coisa.

Jovem: Se alguém me dissesse isso, eu não aturaria.

Filósofo: Nesse caso, qual a meta da outra pessoa? É apenas discutir política? Não, não é. Na verdade, ela acha você insuportável e quer criticá-lo, provocá-lo e mostrar a superioridade dela. Se você se irrita, o momento que ela vinha esperando chegará, e de repente o relacionamento de vocês vai se transformar numa luta pelo poder. Não importa qual seja a provocação, você não pode morder a isca.

Jovem: Discordo. Não há necessidade de evitar briga. Se alguém quer começar uma, não vejo problema em aceitar. Porque o outro sujeito é o culpado. Você pode atacar esse idiota – veja bem, atacar com palavras.

Filósofo: Digamos que você vença a briga e seu adversário dê o braço a torcer. O fato é que a luta pelo poder não acabou aqui. Após a derrota, ele irá correndo para ao estágio seguinte.

Jovem: O estágio seguinte?

Filósofo: O estágio da vingança. Embora tenha recuado por enquanto, ele vai tramar uma vingança e vai reaparecer com um ato de retaliação em outra situação e de outra forma.

Jovem: Como o quê, por exemplo?

Filósofo: A criança oprimida pelos pais recorrerá à delinquência. Deixará de ir à escola. Cortará os pulsos ou se envolverá em outros atos de autoflagelação. Na etiologia freudiana, isso é considerado simples causa e efeito: os pais a criaram assim, por isso ela cresceu para ser desse jeito. É como observar que uma planta não foi regada e por isso murchou. É uma interpretação fácil de entender. Mas a teleologia adleriana não faz vista grossa para a meta que a criança está ocultando: se vingar dos pais. Se ela se torna delinquente, deixa de ir à escola, corta os pulsos ou algo assim, os pais ficam transtornados. Entram em pânico e começam a morrer de preocupação com ela. Sabendo que isso vai acontecer, a criança começará a apresentar comportamentos problemáticos. Tudo isso para atingir a meta atual (se vingar dos pais), não porque está motivada por causas passadas (ambiente familiar).

Jovem: Ela apresenta comportamentos problemáticos para contrariar os pais?

Filósofo: Isso mesmo. Muitas pessoas devem ficar perplexas ao ver um filho cortar os pulsos e pensam: Por que ele faria uma coisa dessas? Mas imagine como as pessoas próximas da criança – os pais, por exemplo – se sentirão sabendo que o filho tentou cortar os pulsos. Se você refletir sobre isso, fica clara a meta por trás do comportamento.

Jovem: A meta é a vingança?

Filósofo: Exato. E, quando o relacionamento atinge o estágio da vingança, fica quase impossível para ambas as partes encontrar uma solução. Para evitar que isso aconteça, nunca se deve responder a uma luta pelo poder.

▲──────◇◆◇──────▲

A Coragem De Não Agradar Where stories live. Discover now