1: Impropérios para Vizinhos

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Brigas, música alta,  fofocas e todo tipo de balbúrdia é uma praxe digna de qualquer vizinhança brasileira.
Uma inexorabilidade, que de fato já é reconhecida como atavismo sociocultural nas entranhas das cidades.

Início

Certa feita sentindo-me incomodado mais uma vez pelos barulhos e ruídos de meus vizinhos, resolvi acabar por
definitivo com aquela situação.
Com educação e diálogo? Óbvio que não! Subi no telhado e com um megafone na garganta anunciei:

-Atenção todos os vizinhos, venham para a rua imediatamente!

(Nenhum resultado... Rapidamente reinventei o meu apelo.)

-Atenção, atenção... 30 ovos por apenas dez reais!

E como mágica, os vizinhos aglomeraram-se na rua, sem compreender direito o que se passava e o motivo de todo aquele berreiro.
Aproveitei para iniciar o meu discurso:

-Eu estou incomodado, saturado, exasperado, estressado, e muito... muito PUTO com o Everaldo, sim, o
nosso vizinho do portão laranja.
Porra Everaldo! Já não basta esse mal gosto de cor no teu portão, que desvaloriza qualquer casa da rua, tu ainda tem a audácia de ficar fazendo reforma no horário do meio dia!? Te liga! O pessoal quer almoçar em paz!

(Aplausos tímidos, e sussurros dos demais vizinhos em apoio ao meu discurso... Empolguei-me!)

-Everaldo, sabemos que o senhor é aposentado, e que essas tuas reformas ao meio dia, são feitas propositalmente para nos aborrecer. E todo mundo aqui sabe que essa tua mania de encher o saco, veem por conta das tuas
DISFUNÇÕES SEXUAIS, que a tua ex-mulher relatava sempre aos berros, há cerca de uns cinco anos atrás!

(Ovaciona pela vizinhança e ao coro de "Zequialdo para presidente do bairro!".)

[Que sensação gostosa ser aclamado! Senti-me como um Bolsonaro, tão tirano e ao mesmo tempo tão amado por seus seguidores que ele despreza.
Eu não queria que aquela sensação passase.]

Enquanto isso Everaldo resmungava de raiva e aos gritos falava,
"Eu vou lhe processar!!! Eu vou lhe processar!!!"

-Tu vai me processar? E quem vai testemunhar ao teu favor, se ninguém da rua gosta de ti? Eu disse NINGUÉM, seu velho broxa!

[Em um lapso de tensão e insanidade, decidi naquele momento, que alguns outros vizinhos mereciam também passar pela humilhação pública, então continuei]

Mas não fique com tanta raiva Everaldo, ao menos não foi a tua mulher que te pegou na cama com outro homem, tal qual o Henrique, o nosso vizinho ali do jardim de margaridas.

(Enquanto a vizinhança agora dava risadas e cochichos, continuei extrapolando os limites e expandindo as ofensas aos meus compatriotas de rua.)

- Mas ô Henrique, isso nem é tão ruim...
Veja a situação do Telmo, o nosso vizinho aqui da frente, em que já faz anos que sustenta um hipopótamo em que insiste em chamar de "esposa".
E com uma mulherzinha tão nojenta, asquerosa, repulsiva, ascosa e ranzinza, que não sabe nem sequer
lavar uma louça! Ela agindo dessa maneira acaba justificando o teu ALCOOLISMO Telmo! Ou o senhor realmente acha que alguém aqui da rua acredita nesse teu papinho furado de "labirintite"?

(Continuei meu discurso inflamado!)

- Telmo, similar a senhora sua esposa, só mesmo a burra, inepta e estúpida bigoduda da Rejane, aqui dos fundos de casa.
A Rejane fica o dia todo comendo e gritando, repito, O DIA TODO!
Mas também né? com aquele marmanjão maconheiro do Luizinho de filho, pfff... (Revirei os olhos) Eu até
intendo os motivos dos berros.
Afinal de contas um sujeito que não consegue se manter em emprego nenhum, e acha que pode ter uma vida de garoto de programa...

[Parei, respirei... E atirei mais merda no ventilador, pelo simples prazer de causar discórdia]

E o Luizinho só não morreu de fome ainda, por causa que ta "trabalhando" para um ai - Olhei descaradamente para o Henrique do jardim de margaridas.

Retrucou Henrique, meio sem jeito: "Ele só corta a minha grama gente".

(Eu já poderia muito bem ter parado por ai, mas inflado pela ascensão, continuei:)

-Henrique, se tu queres chamar alguém para cortar a tua grama, chame o Bertolino da casa azul, ele sim esta precisando de dinheiro para pagar os cheques sem fundo que tem passado nos comércios do bairro. Quem sabe trabalhando ele perde esse hábito de caloteiro e de gancho já devolve as ferramentas que pediu emprestado e nunca mais devolveu do seu Everaldo.

(Everaldo para de resmungar e agora me aplaudindo diz: Verdade eu nem lembrava mais!)

Nisso tudo, a Fátima, outra vizinha grita:
- Ah Zequialdo, tu é o "perfeitão" né?

(E antes que ela continuasse colocando em risco minha hegemonia do discurso, redargui:)

-Não, não, não! Perfeito é o teu marido que colocou película escura no carro, pra andar com adolescente
sem camisa! - Virei imediatamente os olhos para o Luizinho.
E Luizinho virou os olhos para Henrique, que virou os olhos ciumentos para o marido da Fátima, que por fim olhou vergonhosamente para Fátima... E a Fátima saiu aos prantos.

[Devolvendo a soberania e a tirania da minha autoridade sobre a vizinhança.
Já no alto do estresse quem mais poderia tentar uma revolta contra mim?]

O vizinho gordo grita:
-Sai dai! Fofoqueiro!

(Afiado, imediatamente respondi:)

-Sai tu gordo cagão! Toda semana o caminhão que desentope fossa vai aí, na tua casa, e ninguém aguenta
mais a sujeira do teu pátio, seu relaxado!
E outra coisa, tu é outro que não vale nada! Só vale alguma coisa se for vendido por quilo!

Deu velho soltando os cachorros, gritaria, pontapé, garrafada, polícia...

Já no outro dia, nenhum barulho, nem portas e janelas abertas.
Tive um almoço em paz, e um cochilo profundo.

Contos: Amoralidade Nas EntranhasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora