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O gosto era forte em sua língua, ainda que ligeiramente suave nas bordas. Era algo meio ácido também, cheio de notas e sabores com os quais Louis nunca antes havia sido exposto. Depois do terceiro gole, ele decidiu que gostava de vinho. Imediatamente após a primeira taça, seus músculos relaxaram enquanto a sala parecia diminuir consideravelmente ao seu redor. O lugar para onde o senhor demônio do pântano, Harry, os havia levado lhe pareceu muito semelhantes à ideia que tinha sobre as famosas alcovas de Córnula com suas luzes baixas proveniente apenas da grande ladeira queimando em chamas verdes na parede oposta, dois pares de poltronas confortáveis talhadas em madeira escura com garras retorcidas e espinhos saltando dos quatro pés curvados, estofado de um tom musgo muito presente no pântano e diversas garrafas das mais variadas bebidas espalhadas por sobre uma mesa de vidro tão brilhante que parecia ser feita de diamante. Para Louis, aquele era um bom cômodo para se passar noites frias de inverno, aconchegante e quente, quase acolhedor. Nada minimamente parecido com os lugares em que a fada costumava frequentar, no entanto. Suas bochechas queimaram com grandiosidade quando o demônio de longos dedos lhe serviu mais vinho, ele tinha se despido dos cascos àquela altura e as unhas bem feitas de seu pé eram tingidas de um tom específico de negro, a mesma das unhas das mãos e chifres brilhantes.

— Então... — o demônio falou com a voz sorrateiramente grave, arrastando-se nas vogais como as serpentes tomando som enroladas em troncos com as quais Louis já havia se encontrado por diversas vezes nos bosques ao redor de Calia. — Sua magia, como a sente?

Ele pensou por algum tempo, fechou os olhos fortemente e tentou sentir o suave formigar que vibrava dentro de seu peito a cada três luas. Ela estava lá, claro, sendo recarregada com tamanha lentidão quanto possível, era apenas um pequeno punhado, no entanto. Nada realmente significativo, uma completa vergonha para todas as fadas existentes.

— Às vezes penso que ela nem está aqui, realmente — confessou com os olhos no colo onde sua não descansava ao redor da taça ainda cheia daquela bebida quase excepcional que o fazia se sentir quente como se tivesse bebido fogo. — Nunca fui capaz de fazer algo mais do que explosões ocasionais durante processos de caça, acho que são apenas resquícios, entende? Como se, por algum motivo que desconheço, o universo teve a piedade de deixar-me com a lembrança de tudo o que eu poderia ser caso não fosse o que de fato sou.

— E o que você é?

O senhor demônio do pântano parecia sério com seus olhos verdes cheios de calor, encarando Louis no rosto como jamais ninguém fez antes. Nem mesmo Niall, o leprechaun. Ele viu-se completamente tentado a girar o queixo e fugir, poupar o bom gentil demônio do desprazer de olhá-lo de maneira tão incisiva. Todavia, Louis apenas não conseguiu mover-se para nada, era como se todo o seu corpo estivesse amarrado na mesma posição, o bastante para que ele pensasse estar sob efeito de alguma maldição. Não que, caso a alternativa fosse verdadeira, ele se sentisse exatamente ultrajado. Se havia algo do qual a fada tinha extrema consciência, era de seu lugar no mundo.

— Eu sou um aborto da natureza.

Confessou com as bochechas tão quentes quanto possível, dedos torcidos ao redor da taça e queixo tremendo bruscamente. Louis sabia o que era, conhecia todos os seus defeitos malditos e incapacidades constantes, vinha sendo lembrado da desgraça de sua existência desde que conseguia se recordar apropriadamente. Sempre com dedos apontados para seu rosto, maldições e ofensas lhe sendo oferecidas sem recato. Pedras, paus e pragas lançadas em sua direção desde manhã cedo até o anoitecer. Ele estava acostumado a ser o que era, estava ciente de si próprio. Ainda assim, admitir isso a alguém tão excepcional como o senhor demônio do pântano com seus chifres muito bonitos e cascos vistosos, não era uma experiência que poderia ser chamada de agradável.

— Não, você não é.

Em primeiro momento, Louis pensou que não poderia ter escutado direito. Talvez fosse apenas um delírio de sua mente meio perturbada pela bebida nova. Durante seus andares por Calia, ele havia se familiarizado com toda a coisa das alucinações causadas por bebidas destiladas. Nunca havia provado nada além de um pouco hidromel racionado por dias, porém isso não o impedia de ter uma ideia sobre o que as demais eram capazes de fazer. Entretanto, quando ficou claro que as palavras haviam sido proferidas exatamente da maneira que seus ouvidos captaram, a criatura apenas não viu-se em outra alternativa além de erguer seu olhar e encontrar aquele rosto com traços fortes e definitivos que poderia ter sido traçados pelos próprios deuses naturais, quiçá pelos demônios esbeltos devoradores de existências inteiras. Louis tinha consciência da beleza mais do que qualquer outra coisa em sua vida, largado em becos com o único prazer de observar os demais ao longe, ele havia aprendido a discernir aquilo que era bom aos olhos e o que, definitivamente, não era. Como a jovem troll de longas tranças que vivia em Cordélia, ela era algo pelo qual ele poderia perder dias olhando e olhando e olhando sem nunca encontrar defeito algum. Ao contrário do nefasto ciclope das terras altas de Calia, alguém terrível, de fato. "Não tanto quanto eu mesmo" pensou com o gosto amargo na boca ao se lembrar de quem exatamente era. Um aborto da natureza tão desprezível que o asco seria imediatamente vomitado para fora do corpo de todos aquele que cruzasse seu caminho. Por própria vivência, Louis sabia que isso era certo.

DEVIL TRIBUTE // larry stylinsonWhere stories live. Discover now