Romance na Transilvânia, parte um

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Eu olhei para dona Fátima, pensando em como nunca tinha trocado mais que meia dúzia de palavras com ela ao longo da vida. Ao contrário do resto da nossa cidadezinha, ela não frequentava a igreja e não aparecia nas outras comemorações religiosas, que eram onde mais ou menos todo mundo se encontrava. Ao invés disso, podíamos vê-la em sua cadeira de balanço, fumando um cigarro e convencendo todo mundo a fazer o que ela queria vez ou outra. Uma vez – não faço ideia de como isso aconteceu – papai ficou boa parte da tarde plantando pés de macieira no quintal dos fundos da casa dela. E ele nem era um bom jardineiro!

"A senhora gosta de livros?", perguntei curiosa, afastando aqueles pensamentos quando percebi que ela estava me olhando como se eu fosse surda ou estúpida. Talvez os dois. "Livros jovens?"

Dona Fátima me fitou com uma carranca.

"Só porque eu estava na Terra antes dos seus ancestrais surgirem, garota, isso não quer dizer que eu não aprecie a juventude de hoje em dia. Ou que não goste de ler a respeito."

Eu queria enfiar meu rosto num vaso de planta e sumir, de tanta vergonha que senti naquele momento. Não sabia se era possível ficar mais desconfortável.

"É claro, mas..."

"E não me chame de senhora", ela continuou, antes que eu tivesse a chance de terminar. "Não preciso de um lembrete de que a minha cova já foi cavada no cemitério da cidade e que tem muita gente só esperando para me jogar lá dentro."

Dona Fátima ficou quieta por um momento, enquanto eu piscava e segurava o livro que ela havia me devolvido como um escudo em frente ao peito. Então ela respirou fundo, abriu um sorrisinho e colocou as mãos na cintura. "Suponho que se você não correu até agora, não vá correr mais. Quer entrar? Tenho chá, biscoitos e um monte de livros. E eu não mordo." Ela me lançou uma piscadela. "Só quando me dão razão para isso."

Nunca me considerei uma pessoa acuada, muito menos tímida e sem palavras, mas naquele dia entrei na mansão da dona Fátima como se aquela fosse a entrada para o Mundo Inferior e eu estivesse prestes a ser devorada por um Cérbero de cabelos brancos e pantufas de florzinha.

Para ser sincera, não me lembro muito daquele primeiro dia. Meio que foi tudo apagado da minha mente quando Fátima me mostrou sua biblioteca particular e me encheu de biscoitinhos de chocolate. Só sei que eu voltei na semana seguinte, quando ela me convidou. E na próxima e na outra depois desta. Nunca mais parei de frequentar aquela casa, que em pouco tempo se tornou meu refúgio particular.

Nunca soube direito o motivo pelo qual dona Fátima tinha me escolhido como uma das únicas pessoas da cidade que queria por perto, mas sei que nunca reclamei disso. Eu me deliciava com as histórias do tempo de sua juventude, em um Brasil dos anos 70. Aquela mulher tinha feito mais loucuras do que cem pessoas ao longo de uma vida inteira juntas, e no fundo, cada dia mais, eu desejava ter um pouco do que havia dentro dela, que a fazia ser tão única.

Fátima não era louca, como todos diziam. Tá, talvez ela fosse um pouquinho, mas era uma loucura boa.

Com uma senhorinha de setenta anos, eu encontrei uma das minhas pessoas preferidas do mundo. Nós compartilhávamos o amor por livros e viagens, e foi para ela que eu contei os sonhos que sempre fizeram meu coração bater mais forte em uma noite de tempestade, quando acabei precisando dormir em sua casa por não conseguir voltar pra minha.

Nos anos que se passaram, acho que as outras pessoas começaram a me achar um pouco estranha também, pelo tempo que eu passava com aquela velhinha. Eles diziam que logo, logo ela me colocaria tão biruta quanto ela. Mas eu não me importava. Eu queria ser como Fátima.

Nunca criei um laço tão forte com alguém que me deu um spoiler do que veio a se tornar um dos meus livros favoritos na vida. Nunca amei tanto uma pessoa que não pertencesse à minha família.

Para Onde Vão os Corações ApaixonadosWhere stories live. Discover now