4 • SALMOS 22:17

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Distrito Deuteronômio, 2437 d.C.

VERMELHA

Assim que vi as sombras dos três humanos na viela, soube que eles estavam tentando me emboscar, como aspirava um contato sem hostilidade permiti que eles acreditassem que eu estava inconsciente. Foi uma experiência desagradável ser carregada feito um punhado de lixo, por homens que viam em mim menos valor que o de uma sarjeta. Contudo, nada dessa missão é sobre mim, existe um propósito muito superior a preservação do meu ego.

Tolerei o espetáculo ridículo do padre excomungado, a tentativa tola de me exorcizar e mandar meu espírito para alguma vala infernal. O excomungado é forte, mas um cardeal já tentou me expulsar do plano terreno e não conseguiu, um ex mercenário não seria capaz de tal feito. O garoto Arcano descarregou uma dezena de balas na minha pele, o que foi doloroso ainda que não tenha sido nem perto da letalidade. A mira dele é medíocre.

Os vários pontos de disparo doem por todo meu corpo, enquanto meu acelerado processo de cura começa a se concretizar, até ele se finalizar vou ter que aguentar a queimação e latência das balas abençoadas. Depois disso, tudo que eu quero é um banho quente em qualquer pousada pulguenta que seja encontrada no caminho.

— Tentei uma abordagem pacífica – digo, enquanto o Arcano procura por mais projéteis.

— Estou vendo – ele ergue o queixo na direção do excomungado caído.

Não sei quanto tempo vai demorar para ele perceber o quão inútil é esse tipo de iniciativa, por mais dolorido que seja as balas não são capazes de me invalidar. Já tomei centenas de tiros, algumas dezenas de facadas com lâminas sagradas e muitas longas surras. A maior parte em missões, mas é inegável que meu treinamento teve participação em tornar a dor física uma amiga familiar e constante.

—  Só precisa vim comigo, Arcano. Só você e os outros legatários possuem o poder de fechar os portões infernais – sigo empenhada numa medida conciliatória.

Internamente, sei que minha tentativa de apaziguar os ânimos é tão impotente quanto o exorcismo realizado minutos atrás. O garoto exala uma teimosia visível, febril nas írises verde jade que ele carrega. Chego a ter uma certa raiva dele, talvez seja inveja de alguém tão insolente tenha a força necessária para recuar o Inferno.

— Não quero – ele exprime, soando como uma criança birrenta.

— Sinto muito, mas você não tem escolha.

— Sinto muito – ele repete numa gargalhada cheia de escárnio. – Você não sente nada, aberração.

Reprimo uma reação diante da repulsa dele, estou acostumada a ser alvo desse tipo de ofensa.

Ele recarrega mais uma vez a pistola, se fosse mais inteligente já teria pego uma das lâminas que estão na prateleira atrás dele. Sou mais sensível aos cortes, eles demoram um pouco mais para serem curados e conseguem me tirar sangue. Apesar do nervosismo dele, posso ver que o garoto foi treinado, porém seu olhar sempre acaba no mentor desacordado e desestabiliza os movimentos.

Ártico atira novamente, ele mira em meu olho. Seguro o projétil entre os dedos, coibindo que ele chegasse ao alvo. Essa sequência de golpes começa a me deixar irritada, e não há nada mais perigoso que fúria correndo em veias demoníacas. Respiro fundo, clamando por paciência.

—  Colabore comigo, por favor – faço mais uma tentativa.

— Não há modo de eu lutar ao lado de uma coisa hedionda como você. Se a cúria permite que um demônio lute por eles, meu lugar continua sendo distante da Igreja – ele cospe as sentenças.

InfernalWhere stories live. Discover now