1 • GÊNESIS 50:15

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Distrito Deuteronômio, 437 d.A¹

ÁRTICO

Não há um único dia que eu não pense em minha mãe. Os olhos cor de avelã dela sempre aparecem quando eu descanso minhas pálpebras, às vezes posso sentir sua palma apertando o meu ombro. Também posso escutá-la dizendo que devo cortar meu cabelo, que eu ficaria mais apresentável com ele curto. É tão real e ao mesmo tempo ilusório.

" Você é um Arcano, Art. Somos a descendência terrena plantada pelo o próprio Arcanjo Gabriel. Carregamos em nossas veias a última luz que resta nesse mundo, desde o início do Apocalipse. Só nós, junto da Clerezia, seremos capazes de enviar os demônios de volta para o Inferno. Por isso, seja forte. Você vai precisar." Ela me dizia a mesma coisa todas as vezes que eu chegava choramingando do treinamento.

As pessoas dizem que a verdade cruel é melhor que uma mentira doce. No entanto, eu prefiro mentir e me dar o direito de fingir que ela ainda está aqui a rebobinar as imagens daquela noite. Porque quando essas memórias vêm, é só raiva que eu sinto. Então, eu fantasio vingança e um demônio morto aos meus pés.

— Acorde, Ártico – Isaac chama, tirando-me dos devaneios matinais.

Por mais desconfortável que minha cama de palha seja, eu ainda não quero levantar. Lá fora, o Distrito já acordou e a fumaça das máquinas começa penetrar as frestas do porão onde moramos.

Tropeço na minha estante improvisada de livros, os volumes de capas desgastadas balançam um pouco com o impacto, mas logo retornam ao seu lugar. Eles contam histórias de como as coisas eram antes do Apocalipse, quando a tecnologia se desenvolvia tão rápido que era difícil acompanhar os avanços um a um. Uma época em que o mundo era dividido em países, e não em territórios repartidos em distritos e clerezias, nos quais os humanos não arrebatados disputam espaço com os demônios e montanhas de sucata.

Eu gosto de imaginar o que eu faria se tivesse nascido antes da Mulher vestida do sol aparecer no céu e Lúcifer reivindicar a Terra como seu novo inferno, no qual ele e sua legião não teriam mais somente o poder de provocação indireta. Talvez, nesses tempos passados, o fato de eu ser um Arcano não importasse tanto. Quem sabe, eu poderia ter escrito um desses livros que tanto gosto de ler. Ou, teria provado uma comida diferente das barras de ração feitas de plantas que precisam de pouca luz e água.

É uma grande tolice perder meu tempo construindo esse tipo de delírio, porém é meu único antídoto quando as vozes ficam altas demais na minha cabeça. Ocasionalmente, as orações dirigidas a Gabriel passam por mim como se eu fosse um canal, antes de chegar ao destinatário final. As lamentações e súplicas roubam minha sanidade por dias, agulhas quentes penetrando meu crânio. Palavras de tolos, crentes de que um dia serão atendidos.

Algumas pessoas apresentam uma dificuldade resistente em encarar a verdade cruel: Deus nos abandonou. Agora, tudo que temos são a Igreja e os Bentos, os antigos ricos, que assumiram o lugar dos governos e fazem um péssimo trabalho nisso.

— Acharam uma nova zona de sucata na região norte – Isaac me passa um pão duro, um dos últimos que ainda temos. Trigo doente que cresce nas estufas de descarte dos Bentos.

— Eu irei lá, quem sabe encontro alguma coisa rentável – meus caninos se chocam com o amido ressecado. A comida é ruim, mas é o melhor que há no comércio. 

Isaac me observa do outro lado da mesa, as órbitas azuis como o céu costumava ser antes do Apocalipse. Mamãe poderia ter me tutelado para centenas de clérigos que viviam na Clerezia Tomé, entretanto o destino escolheu um homem que havia encontrado a vocação cristã depois da vida adulta.

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