3 • JOÃO 10:21

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Distrito Deuteronômio, 437 d.A.

ÁRTICO

Não consigo manter a respiração cadente, meu coração bate tão forte e acelerado que começa a machucar as costelas. As labaredas do prédio em chamas parecem gritar meu nome, como fizeram no dia que mamãe morreu. Meu braço esquerdo, queimado há uma década atrás durante a fuga, rememora a dor ferozmente, a pele está em brasa outra vez.

— Não, Art! - Krevos me impede de entrar no prédio em chamas. - Você não sabe se o Isaac já tinha chegado.

Eu quero entrar. Preciso ter a certeza que dessa vez vou fazer tudo que posso para salvar a quem eu amo. Não posso perder mais ninguém.

— Eu vou entrar, Krevos – digo firme para que ele saiba a necessidade de soltar meu braço, ou terei que usar a força.

Meu amigo larga o membro de maneira hesitante, movendo as mãos na direção do rosário em seu pescoço. Ele começa a rezar pela minha vida.

Começo a andar para dentro, escuto os murmúrios de uma multidão curiosa crescente, eles se questionam até que ponto seguirei nesse plano suicida. Eu nem sei se Isaac já havia chegado em casa antes do incêndio, ainda era cedo. No entanto, eu conheço meu tutor e sei que ele seria o primeiro a chegar caso o nosso porão explodisse, como ocorre agora.

O calor do fogo cora meu rosto, atingindo principalmente os olhos. Puxo o par de óculos protetores para fora do bolso, foi Krevos quem os fez para mim. É uma decisão burra seguir caminhando para um prédio em chamas e que geme em intervalos cada vez menores, anunciando um iminente desabamento.

Minhas pernas estão cambaleando, estou tão perto da entrada que posso sentir o beijo quente do incêndio.

— Eu o treinei melhor que isso – a voz gutural de Isaac cessa a caminhada kamikaze.

O fogaréu se reflete no crucifixo de prata enorme que o padre excomungado usa, o capuz dele está mais abaixado que o usual.

— Isaac! – Exclamo.

Eu poderia chorar se o calor da proximidade não tivesse consumido toda a umidade superficial que tenho no corpo.

— Calado – ele exige, ignorando minha visível comoção. – Um demônio está no seu encalço. Pegue seu amigo e me siga, iremos encurralá-lo.

Por instinto, olho ao redor e vejo centenas de entidades. Todas de baixa hierarquia, potência frágil demais para deixar Isaac tão preocupado. Aceno para Krevos que entende meu sinal, ele está tão aliviado quanto eu em ver Isaac seguro.

— Venham! – Isaac nos arrasta pelas vielas mais sórdidas do Distrito.

Apenas demônios de baixa hierarquia entram nos distritos, assim como humanos eles também podem virar comida do alto escalão infernal – mesmo que a carne de pessoas seja preferível. Os mais poderosos preferem encurralar os indivíduos desgarrados que não gostam das imposições religiosas dos agrupamentos urbanos, onde a cúria não chega. Isso não significa que ocasionalmente uma legião não invada distritos menos protegidos, o mesmo pode acontecer com as Clerezias. Deuteronômios é o terceiro maior distrito de todos e o mais pobre, cheios de blocos e zonas de descarte.

A área por onde Isaac nos conduz é conhecida por ser um antro perigoso, mesmo que exista uma trégua dentro dos limites distritais, o tratado de paz é muito fácil de ser quebrado. Se um humano entra nas áreas de domínio dos parasitas desprotegido ele logo descobre como é ser estripado, os demônios são espertos o suficiente para descobrir aqueles cuja ausência não será notada. Além disso, sempre há um desordeiro que se arrisca a possuir um humanos, é graças a eles que pagamos as contas.

InfernalWhere stories live. Discover now