• PRÓLOGO •

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 O fogo devorava tudo. Faminto e invencível. As labaredas vermelhas dançavam implorando por carne. Ficava mais quente a cada segundo, a fumaça começava a tomar os olhos e pulmões de todos que ousavam atravessá-la. O inferno estava ali, reivindicando um pedaço daquela terra dita como sagrada.

O menino se arrastava com sua mãe pelos corredores da Clerezia, tentando fugir do calor. Batinas e hábitos eram vistos de esguelha, empunhando cruzes e lâminas sagradas contra os demônios ferozes. Os sinos das torres de vigilância tiniam no alto, deixando tudo ainda mais caótico.

Depois do Apocalipse, as bestas infernais puderam caminhar livremente entre os humanos. Exigindo as almas mundanas como alimentos, rasgando a pele e mastigando os ossos de maneira impiedosa. Lúcifer, o caído, apenas  coordenava a matança.

 — Corra, Ártico! – A mulher falou para o menino, agarrando com força os braços delgados da criança.

Tarsi sabia que só um deles poderia sair vivo. A cúria na conseguiria conter os demônios por muito mais tempo, foram pegos de surpresa e mal podiam organizar seus guerreiros sagrados.

 —  Só irei com você, mamãe – a criança teimosa fincou os pés no chão.

 O cheiro de enxofre e putrefação ficava iminente, eles estavam cada vez mais próximos. Paimon, um dos príncipes infernais, comandava a legião diabólica sem benevolência. Todos os Arcanos devem ser mortos ou capturados, fora as ordens recebidas pelo demônio.

—  Ártico, – ela tinha pouco tempo para convencer a criança – você sempre quis ir a um Distrito fora da Clerezia. Preciso que faça isso por mim.

O coração dela doía, sabendo que a separação do filho era inevitável.

— Não sem a senhora, mamãe – ele estava irredutível.

Tarsi queria se ajoelhar e chorar. Rezar até aquele que era seu ascendente escutasse, implorava para que ele surgisse em seu resgate. No entanto, ela sabia que isso era inútil. Ninguém viria, ele não tinha permissão para isso. E era ela quem precisaria salvar o filho, mesmo ferida de sua última batalha.

 Ela podia sentir Paimon chegando, a medula de seus ossos rugia com a presença. Não poderiam se esgueirar pelas paredes por muito mais tempo, ele logo os encontraria, como tinha encontrado os outros Arcanos daquela Clerezia.

 —  Tarsi! Ártico! – Um dos padres os interceptou no meio do saguão principal.

 As chamas bruxelantes já tomavam a maior parte da Abadia.

— Padre Isaac... – a mulher começou a falar.

A presença de Paimon cresceu  de modo visceral. Tarsi sentiu que ele estava a apenas alguns passos de distância, engoliu o soluço resistente e respirou fundo.

 —  É tarde demais – sorriu tristemente. – Ártico, eu sempre vou te amar – ela disse, dando uma última olhada no rosto de seu filho.

 — Não! Não, mamãe! – O menino implorou, vendo o que o futuro reservava para a pessoa que mais amava.

— Leve-o para longe, por favor Padre Isaac – a mãe já não conseguia mais olhar para a criança.

  Ártico agarrou os braços da mãe com toda força que tinha, fincando as unhas na pele morena dela. Tarsi o lançou com força nos braços do padre que correu em disparada com a criança em suas costas. Labaredas lamberem um dos braços do menino, fazendo-o gritar de dor. Um sofrimento muito pequeno diante do tormento que alagava a alma dele.

  —  Não! Não, por favor – o menino rugia entre as lágrimas grossas.

 Tarsi suspirou aliviada quando viu o filho ganhar distância, a sensação durou pouco. As unhas de Paimon a agarraram em seguida, mutilando os músculos e separando os ligamentos de seus membros superiores. A Arcana seque teve tempo de invocar a luz, seus braços caíram inertes no chão em chamas, enquanto a mulher gritava com a tortura.

 Paimon lançou a humana hemorrágica no ar, seus cães infernais a pegaram em pleno voo, penetrando-a dúzias de vezes com as fileiras de dentes irregulares. Tarsi implorava pela morte aos gritos, suas entranhas sendo disputadas pelas bestas demoníacas.

— Proteja-o, por favor – ela disse encarando o nada.

O demônio sorriu. Ele perdera o menino, mas sabia que a imagem da mãe sendo devorada nunca mais sairia da cabeça da criança.

— Ele encontrará o Inferno sozinho – Paimon enunciou, quando seus cães já tinham comido a maior parte da mulher Arcana.

InfernalWhere stories live. Discover now