III. Uma Questão de Bons Termos (Intervenção)

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A rotina então se repetia, suplicando discretamente um intermédio mais ousado de minha parte. De quarta à sexta, Henry tomou de mim a posse da já envelhecida audição que me servia de pouco todos os dias. O garoto sentiu-se imbuído de elevado compromisso, no entanto, escassos seriam os métodos à sua disposição para tornar concreto o escopo de sua ambição.

"Sempre que tento falar com ela, Aria me evita... Tentei hoje, ontem, anteontem... O que devo fazer senhor Ward? Ela não quer me dar ouvidos, mas eu acredito que devia ao menos resolver esse mal-entendido... O senhor deve achar que sou idiota por perder meu tempo num assunto que nem me diz mais respeito, mas ela é uma amiga importante pra mim... Quero terminar as coisas do jeito certo, sabe?"

Embora não tenhamos relação sanguínea, Henry confiou a mim o motivo que desencadeava sua constante angústia. Como poderia eu, em ambas idade e vivência, julgá-lo de maneira tão incoerente a fim de lhe remover de si todo o merecimento por sua dedicada atitude? Não garoto, você não é tolo por desejar um final satisfatório a este conto. Tolo mesmo seria o senhor que vos fala, se o ignorasse diante de imensa resolução pessoal.

De tempos já obscurecidos por minhas recentes aventuras medianas, vinha-me à tona uma de numerosas citações a mim fornecidas pelo atual líder da família Ward, o então originador de meu ser e grande inspiração de minha tão inusual conduta. Em suas palavras, talvez distorcidas por efeito de tão vaga memória, o dito de meu admirável símbolo paternal exprimia a seguinte ponderação:

"Em disputas, vaidade e orgulho reinam acima dos mais simplórios princípios humanos, meu caro Christopher. Uma de tais disputas provavelmente virá a se mostrar como um dos principais fundamentos de seu caráter. Caso não tenha percebido ainda, me refiro à temida crise matrimonial ahaha! A senhora Ward já não repara em seu pai com aquele mesmo olhar de plenitude... Hoje somos apenas o casal que lhe entope de carícias, mas numa época anterior a qual incumbi-me de lhe conceder aos poucos a chama que escaldava meu imaturo coração, eu e sua mãe fomos protagonistas de abundantes desavenças. E quer saber de algo? Não fossem tais crises, estaríamos transmitindo um legado vazio ao portador de nossos genes, o pequeno Chris. Se as fibras de nossos músculos são avigoradas sob quantias controladas de estresse, a ti pergunto... por que o mesmo não deveria se aplicar aos laços que constituímos em união aos mais queridos coadjuvantes de nossas histórias? A compreensão nasce do entusisamo, porém a alma que abrigamos não se dispõe a sanar dúvidas que ameacem seu estado de paz. Inserir-se à rotina de outra metade é uma tarefa cujo resultado se esclarece apenas ao final de um caminho pelo qual ninguém pode tornar a recuar. Enfim... debatemos de igual para igual, colidimos de frente um ao outro e adentramos o tão almejado consenso mais vezes do que o velhote aqui conseguiria quantificar... porque nos amamos... porque desejamos estar em sintonia... porque somos distintos... Divergimos em alguns pontos, convergimos nos demais. É simples assim. Atritos surgem porque homens e mulheres... digo, nós todos num âmbito integral, eu e você, sua mãe e eu, você e ela... todos nos atraímos e afastamos constantemente, pois esta polaridade exclusiva aos seres humanos desafia os princípios mais fundamentais de tudo que conhecemos. Existimos para desvendar mistérios, porém o maior de todos ainda reside sob nossa pele. Buscamos cultivar simpatia sem ao menos estarmos a par de nossa essência e eu digo a ti, Christopher... seu velho jamais concordaria com um modo de vida que não fizesse jus a este tipo de conflito sem desfecho aparente. E sabe o porquê? Porque é isto que fez de mim quem eu sou, que fez de sua mãe quem ela é, e que fará de ti aquele que você será. E seja lá quem você se torne, sei que papai ficará orgulhoso... Porque eu já tenho ciência daquilo que me tornei, mas você... você ainda será submetido a este tão temido desafio ao qual nós homens sempre estamos sujeitos por natureza..."

A ti lhe faltava um toque único que descomplicaria um tanto a mensagem que o senhor buscou transmitir a mim, porém a ti sou grato por ter mostrado ao jovem Christopher o quão ingênuo ele se tornaria posteriormente. E em sua homenagem, faço de tal citação o nosso lema... não poderia me imaginar conduzindo essa vida de outra forma, portanto resta a este velho senhor carregar o pleno legado a mim confiado.

"Seu pai devia mesmo amar o senhor... Ah! Não foi nada, esquece ahahaha... Conflitos hein... Entendo que talvez bata de frente com algo que não consiga dar conta, mas... mas eu quero muito mesmo tentar! E se não for pedir demais... eu apreciaria se o senhor pudesse me dar uma forcinha com Aria... hehe..."

Layla, sua irmã mais velha o aguardava, encerrando este curto intervalo a nós reservado. A fé que o garoto tinha em mim esticava em si um pacífico sorriso que, por outra vez, quitava suas dívidas emocionais e o carregava rumo a mais uma rotina.

Neste fim de tarde, eu planejava como balancearia o período noturno. Toda sexta, a maioria do serviço restante caía sobre mim. Eu gostava do que fazia e não tinha quem me aguardasse para o final de semana, logo estendia minhas horas de trabalho isento de qualquer emoção adversa. Caminhar pelos corredores sob a luz de nosso majestoso satélite natural mostrava-se a mim como a mais avançada terapia, uma pela qual eu não precisaria desprender finanças. Em contraste, quem recebia por tal momento de serenidade era eu mesmo.

Enquanto divagava em meu próprio raciocínio, me atingia o bíceps direito um corpo de porte inferior ao meu. Mal imaginaria eu que a solução para o problema de Henry poderia ser tão trivial...

"Perdão! Ah! Senhor Ward? Que bom que o encontrei! Na verdade eu queria... conversar um pouco com o senhor se não for incômodo... Podemos?"

Foi revelado a mim que Aria esteve no meio de um impasse. Assumindo tremenda imprudência, a garota admitiu estar em dúvida a respeito da conclusão que tomara ao observar o selo de Layla para Henry. Neste instante, eu tive uma ideia bastante inconvencional. Não é de meu feito iludir aqueles que não demonstram hostilidade à minha pessoa, contudo meu propósito justificaria esta inofensiva "mentirinha".

Em questão de minha aparente proximidade com Henry, Aria questionou se, por um acaso, eu estaria em posse de mais detalhes a respeito desta motociclista que estacionou em frente a portaria nos últimos três dias a fim de escoltar sobre suas costas o jovem que deixara de acompanhá-la à sala de aula após esta suposta pausa em seu relacionamento. Em seu rosto estampava-se evidente desapontamento ao receber de mim uma resposta contrária ao esperado, situação esta que acabaria por favorecer o plano traçado por mim neste domingo.

Dado o intenso breu que anunciava a nós dois a repentina aparição de um horizonte cuja iluminação dependia somente de já falecidos corpos estelares, ofereci-me para garantir sua segurança em seu regresso ao lar. A distância era curta, porém nossos passos seguiam um ritmo abrandecido. Ao avistar a mureta de tijolos esbranquiçados que rodeava o sublime sobrado no qual residia, Aria murmurou rapidamente uma breve oração:

"Espero um dia ser ao menos um décimo pro Henry do que sua esposa foi pro senhor..."

Sinalizei como se não lhe houvesse escutado, apenas para tirar proveito de seu dócil constrangimento. Prévio à nossa despedida, afaguei sua cabeça enquanto lhe proferia um sincero fomento:

"Se você será ou não alguém do qual Henry não conseguirá se afastar, dependerá apenas de ti, Aria. As consequências por sua atitude serão compatíveis com a magnitude de sua resolução, portanto cabe apenas a ti a decisão pelo final que a senhorita pretende cobiçar."

Um punho fechado ante a seus lábios ocultavam risos que denunciavam a singularidade de meu modo de falar. Profundamente agradecida por tê-la acompanhado e também por estar me dispondo a escutá-la, Aria dava as costas a mim com uma firmeza atípica. Dominada por uma aura inusitada, senti-me assolado diante de sua tão impressionante tenacidade. Seria este o poder de uma garota apaixonada? Aterrador...

Quanto a mim, as peças logo mais estariam posicionadas a meu favor. A investida estaria sujeita às minhas regras, porém o esforço viria daqueles cuja determinação superaria até o mais elevado pico em terra. Aria, Henry, vocês dois têm o que é preciso para moldar o destino conforme sua vontade?

Contos de um ZeladorWhere stories live. Discover now