I. Uma Questão de Bons Termos (Prelúdio)

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Todos os dias acabam sendo a mesma coisa. Eu levanto, tomo aquele banho gelado por conta do chuveiro que não esquenta mais como antigamente, frito um trio de ovos embora não tenha mais com quem compartilhar durante o café e então dou início a uma nova rotina, bem semelhante às anteriores.

Muitos dizem querer um lar enorme e aconchegante, porém de que adianta ter espaço sobrando se no fim estamos apenas entre nós mesmos? Esse silêncio doentio que me prega os olhos durante a noite apenas traz à tona aquilo que perdi há anos e toma para si mesmo tudo de mim, seja sono ou sanidade.

Talvez seja assim por mais um ano, talvez por mais alguns. A idade batia à porta para me lembrar do futuro que aos poucos eu via se despedaçando diante de mim, incapaz de reconhecer aquele "pingo" de esperança que afirmam sempre residir em nosso coração até o amargo fim de cada existência.

Bem, ao menos eram estes os pensamentos que eu cultivava dia após dia, hora após hora, surto após surto, se é que eu sequer poderia colocá-los desta forma. O calor que recebia naquela cama hoje gélida mantém viva uma nostalgia que não me agrega nada além de arrependimento e desconforto. As memórias boas devem ser aproveitadas até as esquecermos, no entanto por qual razão eu deveria enaltecer um passado construído em três se restava somente eu e mais ninguém?

Não é saudável olhar por este ponto de vista, mas não vejo motivo para enganar a mim mesmo. Um falso otimismo, ou possivelmente até verdadeiro, porém vazio. Quem me garante? Exato, não tem como pessoa ou entidade alguma cumprir qualquer promessa selada entre mim e eu mesmo... Mas, talvez eu esteja só chegando naquela fase. Rabugento? Quem sabe, não sou eu quem dita as regras, apesar de tê-las seguido à risca muitos anos atrás.

Se eu parasse de me culpar, sinto que o sol raiaria diretamente sobre esta nuca que ameaçava se mostrar ao mundo da forma como foi concebida pela mulher a qual um dia chamei de "mãe". Uma mãe, não é...? Conforme escrevo, essa palavra ocupa mais e mais o espaço que reservo em mente a dezenas de outros assuntos que jamais teriam alguma conexão mútua com esta. Sendo assim, por que ainda me assombra algo que não poderei trazer de volta? É simples, justamente porque eu não posso e ponto. Engraçado, porém deprimente, tal como aquele que vos fala.

Enfim... O ciclo de sempre começava ao deixar aquela casa, em direção ao meu local de trabalho. Sabe, naquela época muitos me viam como um herói, exceto eu mesmo. Como eu poderia ser um herói se estava sendo remunerado para cumprir meu dever? Uma forma mais adequada seria me considerar um "mercenário", mas este tipo nem olha o prato do qual come. Qualquer serviço está de bom tamanho contanto que o pagamento seja compatível. Felizmente eu não fazia parte deste grupo.

Quem sabe ou fosse mesmo um herói... Ou ao menos o projeto de um. Meu trabalho reuniu famílias, resgatou vidas e, por fim, reacendeu em mim uma chama difícil de ser apagada. Ou era o que eu pensava... Nada que é bom de fato dura para sempre. Se tem algo que realmente vive conosco desde o momento em que nossos olhos recebem aquele brilho tão especial até o dia no qual este é roubado de nós, seria exclusivamente a malícia que surge ao mesmo tempo e da qual tanto nos distanciamos.

Somos todos nocivos e majestosos, por dentro e por fora. Por mais que casos extraordinários pareçam existir, é da natureza humana criar um balanço inconsciente entre as duas forças tão primordiais que sustentam e corroem os princípios mais básicos pelos quais tanto nos desgastamos.

Eu lutei por aquilo que acreditava ser minha salvação, refleti sobre atos que ora causavam sofrimento, ora causavam alegria e, por fim, carreguei o fardo de meu pecado enquanto permitia o crescimento de um furioso remorso, capaz de levar minha consciência aos mais absolutos extremos da paranoia.

Contos de um ZeladorDonde viven las historias. Descúbrelo ahora