II. Uma Questão de Bons Termos (Conflito)

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Raios de um sol que brutalizava meu espaço de repouso anunciaram o início de outra rotina, um pouco distinta das anteriores. Pingos de água congelante acertavam minhas costas em cheio, aliviando o clima doentio desta manhã de verão. Estive grato pelo chuveiro quebrado ao menos uma vez, porém não deixaria isso de lado, pois dias como este são raros. Os ovos estavam com um gosto diferente, mas me era familiar... Talvez arruinados pela data, mas isto me seria revelado apenas posteriormente. Nestas horas um otimismo suave vem a calhar.

Um costume que acredito ser comum a muitos homens na mesma situação que eu era dar um beijo de despedida à imagem de meu mais precioso tesouro. Próximo à entrada descansava sobre uma única perna a moldura que abrigava um de nossos últimos momentos juntos. Como se ainda ao meu lado, vocalizei algumas palavras de incentivo a mim mesmo enquanto alimentava novamente memórias de um passado que aos poucos se tornava mais e mais remoto.

Ao atravessar aquela velha porta de mogno escurecido que me separava do mundo afora, ceguei-me momentaneamente ao ser banhado pela luz proveniente de nosso tão essencial astro. Adiante, faces conhecidas se tornavam a mim, esbanjando emoções que me carregavam de nostalgia. São dias que não voltam e só damos valor quando sentimos na pele a dor de não poder sorrir espontaneamente sem aquele receio único de um senhor como eu e diversos outros.

Já no ponto de espera pelo meu transporte habitual, reparei que algo estava em falta. Meu companheiro de viagem, Henry, não estava presente. Naquele instante, suspirei para que o sentimento de solidão escapasse um tanto, porém segui o caminho de sempre não me importando muito com esta situação incomum. Ao meu lado, uma senhora ocupara o assento que Henry dividia comigo. Baixinho, pude ouvir a dama murmurando com bastante esforço uma indagação que dizia respeito a nós:

"Sinto muito se estiver lhe incomodando ao sentar-me aqui... Ah sim... Onde está aquele jovem que costumava andar com o senhor? Ele parecia um rapazinho deveras brilhante... Lembrava bastante o meu netinho... Adorava observar os dois conversando tão euforicamente..."

Quis lhe dar uma resposta satisfatória, porém a realidade era a de que eu sequer esperava por isto. Lamentando com um toque de compaixão por mim, a senhora de idade avançada e cabelos inteiramente prateados aproveitara para descansar em silêncio até que chegasse ao seu destino. Acompanhei-a em seu repouso, enquanto me indagava a mesma questão repetidas vezes...

Ao descer a escadaria inconveniente daquele veículo coletivo datado há décadas, caminhei em direção ao instituto no qual gastaria minhas horas úteis por mais outra manhã, tarde e, possivelmente, noite. Passos à frente, uma garota de aparência bastante peculiar escondia seu rosto apontando-o diretamente ao chão. Suas pisadas curtas e pouco vigorosas logo deram passagem a mim. Embora tenha a ultrapassado sem que percebesse, não pude deixar de absorver uma energia ligeiramente melancólica. Então lá iria eu prestar mais um serviço livre de taxas à juventude que me rodeava.

"Bom dia mocinha", diria eu. Resposta alguma ela me daria. Segui movendo-me em sintonia até receber da mesma um corte razoavelmente impetuoso. "O que o senhor quer?", dizia ela sob olhos azuis-turquesa afiados como uma lâmina oriental de eras longínquas. Encabulado, repliquei que olhos de tamanha beleza não deviam mirar abaixo. Friamente recebido por palavras que me forçariam a tomar cautela, talvez eu devesse ter considerado a minha posição neste diálogo... Ou talvez não, como o fiz.

"Sabe garotinha... Minha esposa tinha olhos semelhantes aos seus. Um azul intenso, esverdeado como o mais vasto oceano. Seus cabelos eram de tom amendoado no entanto, o que em minha opinião representavam uma combinação indisputável. Porém devo admitir que estes fios dourados portados dão luz a uma química sem igual. Não é adequado que eu lhe peça algo desta forma, mas tente ao máximo seguir com firmeza. E se não puder, busque derrubar aquilo que esteja afligindo-a. Apenas um conselho de alguém velho demais para cuidar dos próprios problemas ahaha..."

Contos de um ZeladorNơi câu chuyện tồn tại. Hãy khám phá bây giờ