Sétima Parte

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Em agosto Pistel fez três anos.

Minha irmã havia conseguido uma câmera fotográfica, ainda de filmes a serem revelados. Pude tirar fotos dele: duas, no total. Na época o rolo de filmes era caríssimo e, diferentemente de hoje, as fotografias eram regradas.

De qualquer forma, fiquei tão contente por ter um registro do meu querido hamster, a pequena bolinha cinzenta que me acompanhara em tantos momentos de descoberta nas brumas de minha infância, ainda que ele não estivesse mais no ápice da beleza e vigor. 

Suas tonalidades pardacentas já não se contrastavam tanto quanto antes, e na parte de trás o pelo começava a cair. Não obstante, salvei o registro. 

Os meses seguiam seu fluxo, e Pistel ia se distanciando. Pelas manhãs saía de sua casinha, tomava água e comia as sementes de girassol. Depois ficava absorto no canto da gaiola, admirando o azul do céu e seus mistérios quando era colocado para aproveitar o revigorante ar das frescas manhãs de primavera.

Minha mãe já sabia que ele não ia durar mais tanto tempo, e tentava preparar meu coração para o dia em o chamasse e ele não atendesse.

Ela seguia colocando sua gaiola ao sol pelas horas matinais, e eu continuava apanhando a serragem na carpintaria para forrar o fundo de seu quintal. 

Apesar dos cuidados, Pistel não queria mais ser pego por nenhum de nós. Embora ainda gostasse da nossa presença e de ouvir nossa voz conversando perto de sua casinha.

Enfim, chegara o natal.

Época de festas e confraternização em família. Recebemos um convite para passarmos a virada na casa de parentes que moravam em outra cidade.

— Iremos aceitar, mas não levaremos o Pistel — disse minha mãe.

Nada de anormal. Ele já havia ficado sozinho outras vezes e tudo ocorrera perfeitamente bem. Porém, agora estava com três anos e meio.

— O que for para ser, será. Não podemos levá-lo. E você sabe disso... É inviável — ela completou.

— Sim, eu entendo! — E realmente entendia, mas uma tristeza inexplicável  fantasiada de nuances opacas durantes as horas do dia consumia o meu coração.

Por sorte, a cabeça de uma criança é facilmente distraída. Arrumei as malas e me despedi daquela bolinha pelas grades da gaiola abastecida de mantimentos.

— Até mais, Pistel. Daqui a pouco eu volto, viu?!

Tentava deixar minha consciência leve. A ausência duraria dois dias. 

Então saí do quarto e o avistei para fora da casinha olhando para mim. "Também está se despedindo", pensei. E realmente estava.

O ano virou e voltamos para casa. Antes de qualquer coisa, fomos direto para o ambiente onde ficara a gaiola. E lá estava ele, estendido em seu quintal de serragem.

Morrera em nossa ausência. 

O destino foi tão bom comigo que me privou de presenciar sua morte. Partiu em paz, esperando-nos reaparecer.

Saiu de sua casinha e andou pelo quintal na esperança de ouvir uma voz amiga, mas nada encontrou senão a solidão de seus últimos instantes. 

E enquanto a noite se iluminava pelos fogos de artifício avistados da sacada onde eu estava, o coração de Pistel parava de bater na solidão do mesmo quartinho em que vivera seus últimos dias.

Nunca pensei em como reagiria àquele episódio antes de tê-lo vivido. Minha reação foi mais madura do que o esperado. Olhei para minha mãe e vi seus olhos marejados de lagrima. 

— Temos que enterrá-lo — comentou pegando a gaiola nas mãos.

Então enrolamos o corpo em papel e fizemos um pequeno buraco no vaso de planta em que ele costumava brincar e cavar seus túneis de outrora.

Lá o introduzimos, dando fim a uma fase da minha vida. Uma fase perpetuada pelo amor e aconchego de um serzinho que nada mais sabia fazer do que compartilhar a gratidão por seus dias triviais.

Depois, suas coisas foram doadas e várias reflexões vieram em minha cabeça de menino. Viveu e morreu em uma simples gaiola, mas com alegria e amor. Fizemos tudo aquilo que estava ao nosso alcance.

O que começou como um sonho de criança, transformou-se numa lição de vida cuja mensagem elucida o cultivo do carinho e o desenvolvimento da responsabilidade.

Hoje Pistel poderia ter a melhor rodinha, bem como a melhor gaiola para morar... Mas o hoje para ele se fez em um passado de dificuldades e desafios sem muitas perspectivas, tendo sido meu escape para os espinhos que enfrentava diariamente. 

Partiu em uma época difícil, expressando toda profundidade em seus olhos negros e úmidos para mostrar que a vida é feita de fases. E que a fase em que me encontrava iria acabar para dar início a uma nova. 

Na manhã seguinte o dia nos presenteou com um sol ameno e acolhedor, mas a gaiola de Pistel não estava para fora. 

O fato de eu saber que alguém carecia dos meus cuidados me amadureceu imensuravelmente. Pistel se foi, mas plantou aquilo que um animal de estimação sempre planta no seio de uma família: as virtudes da despretensão, a beleza da simplicidade, o afeto reciproco, o desapego das conquistas ilusórias e, é claro, o amor do animal para quem lhe estende a mão, sem cobrar nada em troca.

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