Alma Minha

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Arthur! Arthur!

Clara gritava pelo nome, mas não havia quem a atendesse. A casa já estava abandonada há anos, desde o incidente. Nenhuma pessoa sabia dizer com exatidão o que acontecera naquele local além do incêndio e cada um contava histórias diferentes. Ela havia combinado de se encontrar com Arthur, um amigo da faculdade, mas ele já estava atrasado quase meia hora. Isso era comum de Arthur. Sempre atrasado. Sempre por ruas escuras. Sempre a assustar as garotas. Na verdade, ela tinha quase certeza que Arthur estava escondido em algum lugar, pronto para dar-lhe um susto a qualquer momento. Mesmo que ninguém a respondesse, ela chamou de novo.

De repente um clarão encheu a sala. Arthur estava ali no meio, com um capuz preto e um sorriso de uma orelha à outra.

— Bom noite, alma minha. Hoje falaremos com as dimensões ocultas.

— Ouija de novo? Essas coisas não existem, Arthur Ward. A gente já jogou isso semana passada e deu em nada.

— Mas hoje é sexta feira 13, alma minha. Hoje alguma coisa precisa acontecer. E essa casa... ela me é familiar... É como se eu já conhecesse o lugar. Sem contar a tragédia que aconteceu aqui há uns 40 anos.

— Você praticamente mora nessa casa, é lógico que ela é familiar para você.

— Última vez, prometo, se não der em nada não jogamos mais, pode ser?

— Promete?

— Prometo.

Ao começarem o jogo, nada aconteceu, como Clara havia previsto. Arthur acendeu mais velas, fez mais força para pensar... nada. Clara trouxera um vinho barato e a garrafa aos poucos acabou. O gosto era terrível, mas talvez aumentasse a sensibilidade ao local. "Cogumelos... você deveria ter trazido cogumelos" Arthur sugeriu. Clara revirou os olhos; às vezes ela se perguntava porque ainda andava com o rapaz. Arthur sempre tinha esse tipo de ideia absurda. Onde ele queria chegar com tais ideias, ninguém sabia ao certo. Por mais que, logo no primeiro dia em que se viram, Arthur grudara em Clara como uma sanguessuga faminta e insaciável, nem mesmo ele sabia o que queria com aquele relacionamento. Talvez, de algum modo eles fossem feitos pra ficar juntos, Clara pensava. Talvez eles seriam melhores amigos estranhos para sempre. Não havia como dizer.

— Eu dei uma pesquisada nessa casa. Parece que os únicos dois sobreviventes morreram pouco tempo depois do acidente, algo como um ou dois anos. A menina morreu e uns dois dias depois o primo dela, acho que era isso, teve uma overdose. - Clara comentou, distraída.

— Eu estou legitimamente surpreso por você se interessar por isso, Clara! Talvez se focarmos neles possamos invocar alguma coisa.

A ideia era absurda como todas as outras, porém, Clara sabia que nada aconteceria. Ver Arthur animado daquela forma a entretinha e era algo diferente para fazer em vez de ir em festas ou usar drogas na casa de alguém. Então, com todas as suas forças, o casal de amigos pensou naqueles dois parentes mortos. A princípio, nada aconteceu. Clara estava prestes a soltar as mãos de Arthur e sugerir que eles fossem ao cinema quando uma lembrança invadiu a mente dos dois.

Gritos de terror e dor. Arrepios de medo. Desespero. Clara sentiu se sua alma ser rasgada de seu corpo. O medo a fez querer largar o jogo, gritar, correr dali, mas ela não tinha forças para se mover. Arthur, pelo contrário, não sentiu nada. Ele olhava para a moça em sua frente, que suava frio, e apenas pensou o quanto ela era especial. O quanto ela o fazia sentir-se em casa naquele país estranho. O quanto sua mera presença era mais confortável que o abraço de seus pais e como tudo o que ela fazia lhe era especial. Clara era sua melhor amiga. Sua confidente. Sua. Enquanto Clara tentava gritar e pedir por ajuda, escuridão tomou a mente de Arthur.

Arthur sentiu um puxão em sua nuca.

Clara estava em transe profundo, seus olhos brancos.

Algo estava errado.

Arthur sentiu-se fora de seu corpo e de repente observava tudo de longe.

O rapaz sentado em frente à Clara não era Arthur. Era Calvin. "Você não deveria ter feito isso. Você acabou de mexer com forças que eu morri para lacrar. E você não tem metade do meu poder. Você trocou tudo por um pouco de felicidade e acabou de jogar tudo fora. Sua morte é certa."

A tabuleiro rachou para dar lugar a um novo tipo de escuridão, cruel e faminta. Calvin vestiu o corpo de Arthur e se levantou. "Eu vou preciso morrer de novo por você Eva, me desculpe. Eu a encontrarei mais uma vez, por favor espere por mim." Calvin beijou a testa de Clara e se virou para a escuridão.


Quando Clara acordou, ela estava com fome. Com sede. O tabuleiro estava em pedaços no chão. Arthur não estava lá. Ela se perguntou se o rapaz por acaso fora buscar algo para comer enquanto se levantava. Contudo, seu corpo se sentia exausto. Sussurros preenchiam sua mente e uma voz a pedia por paciência. Uma certeza tomava seu corpo e ela sabia que Arthur estava escondido em algum lugar, prestes a assustá-la mais uma vez. Cansada, ela se sentou no chão. Havia um problema, porém. Ela não se lembrava de ter dormido, muito menos de Arthur ter deixado a casa; ele nunca a deixaria sozinho numa casa mal-assombrada como aquela. Sem saber muito bem o que fazer, Clara tocou as peças do tabuleiro de ouija.

Algo se quebrou em sua mente e lembranças tomaram sua consciência. Olhos terríveis e sangrentos, famintos, que apenas esperavam para devorar sua alma. Olhos azuis e vítreos que a pediam para esperar. O corpo de Arthur levado a uma escuridão eterna e perversa e só naquele momento ela sentiu o cheiro metálico que permeava a casa. Mas Arthur não poderia estar morto. Algo dentro dela lhe dizia que o rapaz não poderia morrer, sua alma não tinha esse direito e a voz em sua mente lhe pedia para esperar, Arthur voltaria.

Ela se levantou e começou a perambular por aquelas paredes velhas e escuras. O lugar cheirava à fuligem e Clara quase sentia o calor do fogo lamber sua pele. Ela gritou por Arthur, chamou seu nome, chorou em desespero. Sua mente não conseguia aceitar que ele não estava ali, mas depois de tanto tempo em busca do rapaz, Clara não o encontrou em lugar nenhum. Clara se desesperava ao tentar se lembrar de onde estava seu amigo. Ele precisava estar vivo, Clara não queria viver em um mundo onde ele não existisse. Ela sentou-se no chão, próxima ao tabuleiro, e chamou seu nome mais uma vez. Não era possível, mas Arthur estava vivo.

A polícia chegou três dias depois.

Arthur está vivo Arthur está vivo Arthur está vivo Arthur está vivo Arthur está vivo Arthur está

Clara não soube dizer o que aconteceu. Não havia corpo. Havia apenas sangue. Sangue no chão, pelas paredes, nas janelas. Um exame de DNA provou que vinha de Arthur.

vivo Arthur está vivo Arthur está vivo Arthur está vivo Arthur está vivo Arthur está vivo Arthur

Depois de meses de investigação, Clara foi presa. Ninguém mais entrou na casa naqueles três dias. Mesmo que ela se dissesse inocente, não havia outra opção. Ela seria presa. Contudo, a jovem não tinha condições de ser presa em uma prisão comum. O advogado alegou distúrbios mentais. Não houve vozes que a mandavam matar Arthur, mas a garota se recusava a acreditar que o rapaz não estava vivo. Era óbvio que tudo aquilo era apenas uma brincadeira, ele estava vivo e Clara poderia provar, ela poderia gritar e chamar por seu nome e ele responderia. "Distúrbios mentais" dissera o advogado. Clara iria para um asilo de criminosos insanos.

está vivo Arthur está vivo Arthur está vivo Arthur está vivo Arthur está vivo Arthur está vivo Arthur

Clara foi para um asilo.

Clara gritava dia e noite.

Clara perdeu sua vida.

Clara estava morta.

Mas Arthur está vivo.

"Não é o Arthur que está vivo, minha querida. Me chamam de Jack. E sou eu quem vivo."

Jack - PortuguêsWhere stories live. Discover now