The Last of Us - Parte II (04/01/2021)

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Sempre admirei Hideo Kojima, criador da série Metal Gear, por sua proposta pacifista e antimilitarista de subverter a violência usada pelo jogador contra ele mesmo, tornando seu emprego questionável. "The Last of Us – Parte II" parte de um princípio muito similar, mas vai além.

No jogo, a ameaça dos infectados, embora exista, é colocada em segundo plano. Como a maioria das melhores histórias de apocalipse zumbi, o conflito humano toma o holofote. A grande questão que tudo permeia é: quais os limites? Até que ponto os personagens podem ir para compensar as dores que sofreram, infligindo mais e mais dor?

Percebam que todo mínimo inimigo humano no jogo tem nome – e a inteligência artificial inclusive grita de forma angustiante pelos companheiros toda vez que os derrubamos. Até os cachorros são nomeados. Cada morte causada pelo jogador tem peso. Bem rápido um roteiro supostamente preto e branco, no qual somos induzidos a tomar partido da Ellie tentando se vingar merecidamente da tortura e morte do Joel pela Abby, ganha inúmeros tons cinzentos.

Isso só fica ainda mais genial quando, na metade da experiência, tomamos controle da Abby. Quem me conhece sabe que adoro histórias em que os mesmos acontecimentos são contados por pontos de vista diferentes – razão de eu adorar tanto Resident Evil 2 e seus cenários A e B, nos quais jogamos alternadamente com os personagens. The Last of Us II faz algo parecido ao mostrar os três dias em Seattle tanto pela óptica da Ellie quanto da Abby, revelando que as duas são em grande parte iguais – vitimadas por perdas próximas e perigosamente tentadas à vingança para preencherem o vazio que as tomou.

Se Ellie gosta de viagens espaciais, cards de super-heróis e tocar violão, Abby é uma leitora voraz, entendida em medicina e colecionadora de moedas antigas. Ambas são extremamente humanas, capazes de amar e odiar, edificar e destruir. Ao término do jogo, é impossível pensar que a Ellie não faria o mesmo que a Abby caso fosse filha do médico morto pelo Joel no hospital. E, o mais intrigante: ao confrontar os Lobos para salvar Lev, Abby torna-se o próprio Joel, fazendo uma difícil escolha moral para proteger alguém a quem se afeiçoou. Indo contra tudo que acreditava ou considerava certo até então.

A autodestruição pela violência também surge pela luta entre as próprias facções em Seattle, cada vez mais exauridas pelo conflito contínuo; ou entre os Lobos, nos quais o líder Isaac torna-se mais cruel e autoritário do que a FEDRA (antes por eles combatida) jamais fora. Um cenário sanguinário e desesperador, criando no jogador a expectativa de quando os raios de sol retornarão em meio à tempestade – recuperando a inocência que considerávamos, principalmente no primeiro jogo, ainda passível de existência naquele mundo.

Também é bacana o quanto isso tudo é trabalhado via sutilezas. Não é preciso que um personagem se pegue refletindo "Oh, o que foi que me tornei?", ou tudo seja exposto em diálogos. A alternância de pontos de vista, flashbacks bem situados e dilemas vividos pelos personagens se encarregam, por si mesmos, de expor as transformações dos personagens e o sentido da narrativa. É um jogo escrito magistralmente.

Como mencionei a escrita, acho importante mencionar dois pontos do enredo muito criticados pelos jogadores na Internet – e a razão de eu discordar totalmente dessas implicâncias:

- A morte do Joel foi apontada como "forçada", havendo argumentos quanto a ele jamais ser capaz de cair numa armadilha como a da Abby. Antes de jogar, acreditei que a morte havia se dado num contexto de "Oi, somos um grupo de sobreviventes. Venha conhecer nosso esconderijo!" ou situação similar – que aí sim seria forçada. Porém, jogando, descobri que o encontro do Joel e da Abby se dá numa nevasca, com uma horda de infectados passando pela região. A urgência da situação permeia todo o gameplay, e o roteiro toma inclusive o cuidado de colocar a Abby salvando Joel e Tommy de uma situação difícil (na estação de bondinhos), estabelecendo um vínculo de confiança. Dadas as circunstâncias, faria sentido, sim, eles a seguirem. Absolutamente nenhum problema aqui.

- O final. Também por exagero e distorção dos comentaristas de Facebook, acreditei que a Ellie deixava Abby e Lev fugirem sem mais nem menos, inclusive com a frase "Eu te perdoo!". Mais uma vez, o roteiro tem o cuidado de encaminhar muito bem os acontecimentos, inclusive a Abby poupar a Ellie durante o confronto no teatro – já abrindo caminho à recíproca – e a seção final do enredo ser carregada de tensão e perdas, com o ciclo de violência entre as duas chegando às últimas consequências. A Ellie simplesmente tinha que interromper a espiral de ódio ali. Isso, aliás, é respeitar seu desenvolvimento como personagem. A verdadeira maneira de honrar a lembrança do Joel. E, como sempre, o jogo tem coragem de trazer consequências às escolhas de seus protagonistas. Depois de tudo, restam a Ellie lembranças e solidão. E confesso estar muito curioso quanto a como desenrolarão isso numa eventual Parte III.

Para não falar que não há defeitos, acredito que a campanha se estende um pouco além da conta. A mesma tônica do final poderia ser mantida com a trama terminando em Seattle. Abby capturada pelos Lobos ao invés dos Cascavéis, talvez? Embora considere o salto de anos importante, mostrando Ellie na fazenda com Dina e o bebê para reforçar o que ela perde ao escolher novamente a vingança, confesso que a trama poderia ser encurtada.

Este jogo também foi acusado de "lacração", como ocorre com diversas obras da cultura pop atualmente. Ele nada faz além de narrar uma história num mundo em que pessoas LGBTQI+ existem – igual ao mundo real, quem diria? Além disso, as questões de representatividade sequer compõem o enredo central – baseado nas repercussões da vingança e violência, como já comentado.

O ponto da narrativa em que há uma crítica social mais palpável é a introdução dos Serafitas (chamados pejorativamente pelos Lobos de "Cicatrizes"), uma das facções lutando pela Seattle pós-apocalíptica que consiste num culto religioso milenarista. Ao abordá-lo (principalmente no gameplay da Abby, quando encontramos Lev, perseguido por ser transgênero), há diversas discussões sobre fanatismo religioso – embora, como tudo que o jogo se propõe a debater, de forma sutil e contida; transmitindo o básico da mensagem sem sequer se aproximar de uma proposta panfletária. Até mesmo o arco de Lev é subentendido, por boa parte do jogo, como sua decisão de raspar os cabelos – questão que inclusive permeia segmentos religiosos reais e acaba se tornando outra ótima sacada do roteiro.

Vejo a polêmica em torno deste jogo como algo muito parecido com o que rolou em relação ao filme "Star Wars: Os Últimos Jedi" (o que previ desde antes do lançamento): uma obra mais ousada e menos previsível em termos de narrativa, também marcada por questões de representatividade, execrada pelos "nerds" em grande parte devido a esse segundo ponto, que torna o primeiro alvo de pedradas muitas vezes injustificadas.

Se por um lado vemos o quanto o meio, infelizmente, tornou-se preconceituoso, por outro é clara a tendência que a cultura de fã quer cada vez menos ser surpreendida e instigada, sempre exigindo a mesma narrativa feijão-com-arroz – por mais que, por trás de um molho pouco usual, esteja uma refeição bem mais apetitosa.

Aos que se propuserem a prová-lo, acredito vivenciarem uma das melhores experiências em games dos últimos anos. E que me fez encarar essa série com olhos bem mais interessados que antes.

No aguardo da Parte III. E que os roteiristas não se acovardem, contando as histórias que realmente tenham paixão em contar.

GOLDFIELD - Nerdices e análisesWhere stories live. Discover now