Capítulo 36

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     Passo o dia todo deitada, tomada por um cansaço que me deixa fraca e abatida. Os ensinamentos de Ghia e Kawel - dois sujeitos que, aliás, não vejo há bastante tempo - não me prepararam para isso. A responsabilidade de governar um país em crise é esmagadora e sufocante e, como se isso não bastasse, as minhas terríveis oscilações de humor parecem cada vez mais constantes.

     Não vejo rei Kilian desde nossa pequena discussão mais cedo e não sei se quero vê-lo. Talvez precisemos de um tempo separados para espairecer e colocar nossos sentimentos em ordem. Saber que ele e a criada terão um filho não muda o que sinto por ele, mas deixa meu coração em estado caótico. Eu não sei o que fazer. Devo ignorar e fingir que não me importo? Devo simplesmente esquecer?

     Meu bebê se agita dentro de mim, provavelmente sentindo minha inquietude.

     - Está tudo bem - asseguro com ternura. - Nós dois estamos bem.

     Caminho até a janela e observo a paisagem fascinante de fim de tarde que só pode ser encontrada aqui em Coronte. A brisa que acaricia meu rosto é fria, mas nem se compara com a brisa gelada de Liriel. Sinto saudades da neve, do inverno e das flores que só crescem lá. Sinto saudades de minha casa, que vi destruída em meu sonho. Sinto saudades do passado que vivi com tanta intensidade.

     Minha vida agora parece previsível e já determinada. Permanecerei ao lado do rei e lhe darei mais um ou dois filhos - cujos destinos também já estão decididos antes mesmo que nasçam - e passarei o resto dos meus dias dentro desse palácio até me despedir do mundo. Sem grandes expectativas, sem grandes desafios, sem grandes aventuras.

     Lembro-me de que o que eu mais queria era deixar Liriel e começar uma vida na corte, comparecer a grandes bailes e eventos e ser cortejada por uma centena de nobres até decidir me casar. Eu queria ser um espírito livre, alguém que iria aonde quisesse quando quisesse e seria feliz. Até mesmo a ideia de assumir a identidade de Sonya pareceu eletrizante no momento que Ghia e Kawel me fizeram essa proposta. Eu estive esse tempo todo atrás de aventuras?

     Eu traí a mim mesma quando matei Anna e me tornei Sonya. Devia ter encontrado outra maneira de sobreviver como eu mesma. Devia ter voltado e procurado por Kieran até não suportar o cansaço. Devia ter recusado essa nova vida.

     Agarro as cortinas com uma das mãos, sentindo tontura. O peso do remorso é ainda mais esmagador do que o peso das minhas responsabilidades. Estou com medo, essa é a verdade. Tenho vivido com medo de absolutamente tudo desde que papai morreu e esse medo só cresce conforme faço minhas escolhas baseadas nele. Medo de ser desmascarada. Medo de falhar como a última esperança de Avival. Medo de não ser uma boa mãe. Medo de nunca ganhar o coração do homem que amo. Estou cheia e transbordando de medo.

     Eu me forço a comparecer ao jantar especial do Dia da Caça só porque sei que é uma ocasião importante para rei Kilian e para nossos súditos. O jantar acontece no pátio principal do palácio e é aberto ao povo como forma de gratidão a todos pela caça que sustenta o reino. Esse talvez seja um dos aspectos que eu mais admiro na cultura de Coronte: eles são gratos por tudo e sabem valorizar o trabalho duro. Não é o reino mais rico, mas ninguém aqui é miserável. As pessoas aqui têm problemas como em qualquer outro lugar do mundo, mas buscam uma solução para resolvê-los ao invés de ficarem se lamentando. Creio que preciso começar a fazer isso também.

     Sou escoltada por um quarteto de guardas reais que o próprio rei designou para me proteger e logo chego com eles ao pátio. O lugar está bastante iluminado e barulhento, como um verdadeiro festival. Vejo pessoas conversando, dançando, comendo e bebendo e todos me reverenciam quando passo, olhando com expectativa para meu ventre. Vejo duque Elmo e duquesa Dandara rindo e conversando com um jovem casal de nobres e rei Rupert e rainha Irene sentados à mesa real. Rei Kilian está com eles, tão absorto em seus pensamentos que parece mais distante do que nunca. Lembro-me do que ele disse sobre estar ofendido pela maneira como penso que ele é e concluo que meu marido parece não ter ideia da intensidade de meus sentimentos por ele.

Amor e Liberdade #1Where stories live. Discover now