Capítulo 16

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     Olho para meu reflexo no espelho, vestido de preto da cabeça aos pés, rosto pálido e olheiras escuras. Pareço estranha, como se de um dia para outro tivesse envelhecido dez anos. Geralmente sou consideravelmente vaidosa, mas em uma situação como essa não consigo nem pensar em ficar bonita. Porque quem eu quero que esteja aqui para me ver, não está.

     Madame Daisy entra em meu quarto sem bater e caminha diretamente até as janelas para fechar as cortinas. Eu não me mexo quando ela murmura alguma coisa sobre a lareira e não respondo quando ela chama meu nome. Sinto que um buraco se abriu em meu peito e qualquer movimento que eu faça é doloroso e cansativo demais. Até pensar muito me deixa mal.

     Meu pai era tudo o que eu tinha. Era pai, era mãe, era irmão e era amigo. Nunca imaginei uma vida sem ele e agora ele se foi definitivamente. Como posso seguir em frente sem sua presença?

     - Querida - madame me envolve com seus braços e me dá um abraço suave. Uma lágrima escapa de meu olho. - Ele está em paz agora - ela sussurra.

     Eu suspiro. Queria que ele estivesse em paz aqui comigo.

     - A carruagem chegou - ouço alguém dizer à porta aberta. 

     Madame me solta devagar e segura meu queixo com as pontas dos dedos.

     - Pronta? - pergunta.

     Engulo em seco e dou de ombros. Não estou nada pronta para ir ao velório de papai, mas também não quero ficar em casa e deixar que outras pessoas se despeçam dele por mim.

     - Vamos - sussurro e deixo o quarto.

     Assim que chego à sala de estar, vejo Kai e Kieran sentados nas poltronas, conversando baixo. A expressão no rosto de Kieran é a mais miserável possível. Como se seu próprio pai tivesse falecido. Seu olhar encontra o meu e ele fica de pé, seguido por Kai.

     - Anna - seus lábios formam meu nome, mas não ouço sua voz.

     Olho para Kai.

     - Estou pronta.

     Ele assente.

     - A carruagem está esperando.

     - Irei acompanhá-la também - Kieran finalmente fala.

     Meu coração esfria sempre que penso que em breve estaremos casados - mesmo que eu tenha dito a mim mesma que já gostava dele. Talvez esses poucos dias em que Kieran esteve fora serviram para me provar que eu estava sendo precipitada ao pensar que ele já tem meu coração e eu o dele. Ou talvez eu esteja assim simplesmente por causa do luto por papai. Seja o que for, não quero pensar muito nisso.

     Kieran, Kai e madame Daisy me acompanham na carruagem até a igreja principal, que fica localizada na praça central de Liriel e onde são realizadas as cerimônias mais importantes. Como meu pai era o prefeito, é o costume velá-lo na igreja principal e abrir a cerimônia para todos os cidadãos da vila, então eu logo vejo os arredores cheios de gente. A maioria usa preto e carrega flores consigo, fazendo um contraste interessante com a neve alva que cobre o chão por toda parte.

     Olhos curiosos me observam quando desço da carruagem, escoltada por Kai e por dois oficiais que chegam para me ajudar a entrar na igreja. Ouço as pessoas dizerem que sentem muito por minha perda, que aquilo foi uma tragédia e que o prefeito era um bom homem, mas absolutamente nada daquilo me reconforta.

     Kai nota meu desconforto e apoia uma das mãos em meu ombro.

     - Você sabe que tem todo o direito de reagir a isso como bem quiser, não sabe? - ele pergunta, baixo, de forma que só eu posso ouvir. - Chore se quiser chorar. Ninguém vai repreendê-la por isso.

     Crispo os lábios. Ele me conhece bem. A verdade é que não quero chorar na frente de tanta gente que só conhece a mim e a meu pai de vista. Quero chorar sozinha em meu quarto, de forma que só eu e meu pai - onde quer que ele esteja - saibamos.

     Mas não consigo me conter e, assim que vejo o caixão de madeira no altar da igreja, irrompo em soluços. Agarro o braço de Kai e sinto a mão quente de Kieran apoiar minhas costas. Vejo através das minhas lágrimas madame Daisy se aproximar e ela me puxa pelas mãos até o banco da frente. Nós nos sentamos e eu cubro o rosto com as mãos enquanto choro.

     Não participo muito da cerimônia, que acaba sendo como qualquer outra. Assim que o sacerdote dá a palavra final, as pessoas se levantam de seus lugares e começam a ir embora. As que trouxeram flores, velas e lembranças, depositam tudo ao redor do caixão de papai, olham de soslaio para mim e vão embora. Uma ou duas se aproximam para me dizer palavras de conforto e eu agradeço, distante.

     - É hora de se despedir dele, querida - sussurra madame Daisy.

     Assinto e me coloco de pé.

     Caminho até o altar e fito o caixão. A tampa está fechada, então não parece que ele está realmente ali - embora eu saiba que está. Pouso uma das mãos sobre a madeira e surpreendo-me ao senti-la tão fria contra minha pele. É um caixão muito bonito. Papai teria apreciado.

     Com o fim da cerimônia, inicia-se uma marcha fúnebre até o único e pouco ocupado cemitério da cidade. Eu caminho logo atrás do caixão - que é carregado por oficiais - e Kieran está ao meu lado. Meu manto me mantém quente, mas é reconfortante caminhar sem neve caindo na cabeça.

     - Eu... eu deveria falar sobre isso mais tarde, mas... - Kieran diz.

     Olho para ele.

     - Mais cedo, mais tarde... não faz tanta diferença - presto atenção ao som de minhas botas esmagando terra e neve. - Diga.

     Kieran pigarreia.

     - Eu retornarei a Trollstone...

     Meus olhos voltam ao seu rosto.

     - ... e quero levá-la comigo - completa, correspondendo ao meu olhar.

     Desvio os olhos para as árvores secas e cobertas de neve do cemitério.

     - Por quê? - eu pergunto, após alguns passos.

     Kieran nem mesmo hesita.

     - Você é minha noiva e não está segura aqui. Meus pais sugeriram que viesse viver conosco em Trollstone por um tempo... para a sua proteção.

     - Ainda vamos nos casar? - minha voz soa fraca.

     Agora Kieran hesita.

     - Se nós vamos? - seus olhos castanhos se arregalam. - Por que não nos casaríamos?

     Dou uma sorriso amarga.

     - Não sou mais a filha do prefeito, sabe...

     Ousado, Kieran entrelaça os dedos de sua mão nos meus e surpreendentemente eu sinto meu rosto esquentar.

     - Você será minha esposa. Agora eu é que cuidarei de você.







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