O Sítio

By andre_s_silva

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Série literária de mistério e terror inspirado no Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato. Pedrinho é um... More

1x01 - Férias Fora de Época
1x02 - Lúcia
1x03 - Sonhos Inquietos
1x04 - As Plantas Mortas
1x06 - Dois Primos
1x07 - A Procissão Negra
1x08 - Monstros
1x09 - Emília
1x10 - A Marca de Carvão
1x11 - O Peão (Parte I)
1x11 - O Peão (Parte II)
1x12 - Montes Calmos (Parte I)
1x12 - Montes Calmos (Parte II)
1x13 - Pedro (Parte I)
1x13 - Pedro (Parte II)
1x14 - Massacre no Engenho Oliveira
1x15 - A Promessa (Parte I)
1x15 - A Promessa (Parte II)
1x16 - Lembrança Partida
1x17 - Comida de Porco
1x18 - Afogados (Parte I)
1x18 - Afogados (Parte II)
1x19 - A Curva Impossível (Parte I)
1x19 - A Curva Impossível (Parte II)
1x19 - A Curva Impossível (Parte III)
1x20 - O Véu
1x21 - Benta (Parte I)
*NOTA AOS LEITORES*
1x21 - Benta (Parte II)
1x21 - Benta (Parte III)
1x21 - Benta (Parte IV)
1x21 - Benta (Parte V)
1x21 - Benta (Parte VI)
1x21 - Benta (Parte VII)
1x22 - A Semente (Parte I)
1x22 - A Semente (Parte II)
1x22 - A Semente (Parte III)
1x22 - A Semente (Parte IV)
1x23 - Um Novo Lar
Se você gostou de "O Sítio"...

1x05 - O Esconderijo

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By andre_s_silva

Pedrinho seguiu os passos de Narizinho até a varanda da Casa Grande, onde lhes esperavam Dona Benta e Néia. A menina de nariz arrebitado caminhava com a convicção de quem não tinha nada a esconder nem a temer.

Quando alcançaram o primeiro degrau da escadaria, Néia, mantendo seu olhar austero sobre os dois, dirigiu-se a patroa e disse:

- Com licença, Dona Benta.

- Tem toda, Néia. - disse a senhora, pondo o grosso livro que vinha lendo sobre o colo. - Boa tarde, crianças.

Havia certa frieza em sua voz.

- Boa tarde, Dona Benta. - responderam, quase em uníssono.

- Colocou ração para as galinhas, Lúcia?

- Coloquei. - respondeu Narizinho prontamente. - E colhi todos os ovos, também. Mais de vinte.

- Muito bem. - disse Dona Benta, exibindo um sorriso mais contido que o de costume. - E você Pedrinho, como foi lá com Barnabé?

- Ajudei ele com a lavagem. Pra que o marquês não comesse tudo.

Pedrinho ficara tão nervoso que mal se deu conta da estranheza daquela sua última frase. Dona Benta, contudo, pareceu não se importar.

- Ótimo. Espero que Lucinha não tenha te colocado em nenhuma confusão.

- Não. - a menina apressou-se em responder. - Ficamos só brincando no cafezal, depois levei ele até as amoreiras. A gente tava lá até agora.

Dona Benta olhou para Narizinho por sobre os aros dos óculos. A menina continuou com a cara mais deslavada do mundo.

- Que bom. - disse por fim a senhora. - Agora vá tomar banho, Narizinho, que já é quase hora do almoço.

Os dois subiram as escadas. Narizinho passou por Dona Benta e dirigiu-se para a entrada. Pedrinho fez menção de segui-la, quando Dona Benta o chamou de volta.

- Posso falar com você um instante, Pedrinho?

Narizinho arregalou os olhos, mas não se deteve. Apenas pôs o dedo em riste nos lábios, como quem pede silêncio. No instante em que Dona Benta voltou-se para ela, a menina imediatamente dissimulou, saltitando para dentro da casa como quem não fizera nada de errado.

- Essa menina... - Dona Benta balançou a cabeça. - Diz a verdade pra mim, Pedrinho. Vocês foram em algum outro lugar, além das amoreiras?

Pedrinho estacou. Não estava acostumado a mentir, ainda mais para alguém que ele ainda mal conhecia como Dona Benta. Estavam enrascados, pensou. Alguém devia tê-los visto... Néia! Narizinho tinha dito que as irmãs dela viviam na vila da senzala. Com certeza elas tinham visto os dois saindo da casa de Anastácia e contaram tudo para Néia, que por sua vez contara a Dona Benta.

- Então? - insistiu Dona Benta.

Seu silêncio era um atestado de culpa. Seu primeiro dia no sítio e já ia levar uma bronca. Precisava dizer alguma coisa, qualquer coisa.

- Sim. - respondeu ele, com a voz trêmula.

- Não precisa ter medo, eu não vou brigar com vocês. - disse a senhora, em um tom dócil, mas que transparecia certa preocupação. - Me diz, aonde vocês foram?

- Para o milharal. - disse Pedrinho. - Estávamos brincando por lá, mas aí encontramos o espantalho, e a Narizinho começou a chorar..

- Ai meu Deus... ela se enfiou lá pras bandas do Visconde de novo?

- Então a senhora sabe? - perguntou Pedrinho, visivelmente surpreso. - Da história do... Visconde?

- Ah, claro. - respondeu Dona Benta. - O Visconde de Sabugosa está lá desde que eu era menina. Lucinha morre de medo, mas vive querendo brincar no milharal.

- A senhora me desculpa por não ter falado antes, mas é que...

- Não precisa se desculpar, Pedrinho. - atalhou Dona Benta. - Já tive sua idade, sei que nem tudo o que criança faz, “gente grande” pode saber. Mas é que a Lúcia é muito peralta, e vive aprontando. Sua mãe confiou sua segurança a mim, então você entende como é importante que eu não deixe que se machuque?

Pedrinho pôs as mãos para trás e abaixou a cabeça, envergonhado.

- Sendo assim, eu pergunto mais uma vez. Tem algum outro lugar pro qual vocês tenham ido hoje? Além das amoreiras e do milharal?

Dona Benta sabia, pensou Pedrinho. Sua insistência só podia significar isso.

Ainda havia tempo para ele contar a verdade. Afinal, até ali não havia mentido para Dona Benta, apenas omitido a passagem pelos dois pela vila a caminho de casa. O mesmo, contudo, não podia ser dito de Narizinho... Não, ele não faria isso. Estava decidido manter sua palavra.

- Não. A gente estava no milharal até agora. A Narizinho chorava tanto que eu não conseguia tirar ela de lá.

Dona Benta franziu os lábios e soltou um suspiro, no qual foi fácil para Pedrinho observar certo desapontamento. A senhora reclinou-se na cadeira de balanço e dirigiu-lhe um olhar afetuoso.

- Pedrinho, o sítio... - disse ela, com a mesma mistura de doçura e apreensão em sua voz. - O sítio é grande demais, e cheio de lugares esquecidos. Me promete que, não importa aonde Lúcia te leve, você vai tomar cuidado?

Ele assentiu com a cabeça, assumindo assim sua segunda promessa só naquele dia.

- Ficamos conversados, então. Agora é melhor que entre e tome um banho também. - sugeriu Dona Benta. - Daqui a pouco é hora de almoçar.

Pedrinho obedeceu, entrando na casa ao que Dona Benta retomava sua leitura. Não tomou as escadas para seu quarto ou para o banheiro, contudo. Ao invés disso, foi direto até o quarto de Narizinho nos fundos do primeiro andar. Precisava alertá-la para o fato de que suas visitas a Tia'Nastácia não eram mais segredo.

A porta do quarto estava entreaberta, e ele podia ouvir a voz de Narizinho lá dentro.

- …agora ele tá achando que fui eu.

Pedrinho olhou para os lados, certificando-se de que mais ninguém passava por ali. Então, encostou-se silenciosamente à abertura da porta e continuou a ouvir.

- Você não pode ficar zanzando por aí, menina. - continuava ela. - Vai acabar assustando ele. E ele já é tão medroso... viu como os olhos dele ficaram arregalados quando a gente chegou e a Dona Benta tava esperando?

A vontade de Pedrinho invadir o quarto para responder àquilo era grande. Mas como berrar no ouvido de Narizinho que ele não era medroso, quando naquele exato momento as palavras dela faziam seu coração bater mais acelerado?

- Tá bom, eu sei que ele me ajudou a escapar do Visconde. - Narizinho respondia ao silêncio. - É, eu também gosto dele. Quero que a gente seja amig... eu sei, EU SEI! Nós temos que ser amigos. Não precisa ficar repetindo toda hora. Ai, às vezes você fica muito chata, sabia?

Pedrinho ouviu os barulhos dos pés de Narizinho saltando da cama para o piso de madeira. Tratou logo de se afastar da porta, se escondendo onde o corredor do quarto da menina fazia uma curva em direção aos varais da Casa Grande.

Narizinho saiu do quarto e seguiu para o outro lado do corredor, onde ficava seu banheiro. Levava Emília em um braço e uma toalha encardida no outro. Quando ela sumiu de vista, Pedrinho abandonou seu esconderijo e foi até a porta do quarto, apenas para confirmar a certeza que seu coração receoso já trazia.

Não havia mais ninguém ali.

Pedrinho subiu correndo para seu próprio quarto e sentou-se na cama. Tentava convencer a si mesmo de que Narizinho era apenas uma doida varrida, e que por isso acreditava realmente que Emília falava com ela e o pior... que era capaz... que era capaz de... Não, era impossível! Se uma boneca falasse, se uma boneca andasse, isso faria dela um monstro. E sua mãe sempre lhe ensinou que os únicos monstros que existiam eram as pessoas más.

Sim, Narizinho só podia mesmo ser maluca, no fim das contas. Pedrinho voltou-se para a porta do quarto, imaginando o momento em que a menina se esgueirou sorrateira e colocou Emília no chão, antes de falar com aquela voz assustadora:

“Você não sabe de nada.”

A lembrança trouxe um arrepio gelado às costas do menino.

- Pedrinho, vem almoçar! - gritou Dona Benta da escada.

- Vou tomar banho! - respondeu ele, perguntando-se por quanto tempo já estava ali, sem fazer nada além de olhar para a parede e pensar.

- Rápido, a comida vai esfriar!

Pedrinho apressou-se para o banheiro. Deixou que a água fria lavasse seu corpo; desceu as escadas sem muita consciência de seus próprios passos e sentou-se à mesa, onde Dona Benta terminava de servir carne de panela com batatas no seu prato e no de Narizinho.

Ela olhou para ele e sorriu.

Pedrinho desviou seu olhar, concentrando-se na comida que passeava de um lado para o outro de sua boca, sem que ele prestasse atenção no sabor. Os minutos passavam e as mesmas ideias davam voltas em sua cabeça. Narizinho, Emília, monstros...

Terminada a refeição, Pedrinho ajudou Dona Benta a recolher a louça, o que muito agradou a senhorinha. Ela sorria e lhe afagava os cabelos, como se o episódio de antes tivesse ocorrido há muito tempo atrás.

O resto da tarde, Pedrinho passou trancado no quarto, tentando se distrair com as bolinhas de gude que haviam sido seu presente de boas-vindas. À certa altura, Narizinho bateu na porta com um convite:

- Vamos no pé de jabuticaba?

- Agora não, estou cansado. - respondeu Pedrinho. Abrira a porta o mínimo possível e agora usava o corpo para bloquear a passagem.

- Tá fazendo o quê?

- Nada.

Ela enfiou a cara para dentro do quarto.

- Posso brincar também?

- Bolinha de gude é brincadeira de menino.

- Não é nada. Eu sei brincar também.

- É, mas eu já parei. - ele mentia pela segunda vez naquele dia. - Tenho que arrumar umas coisas aqui. A gente brinca outra hora, tchau.

E fechou a porta. Ficou parado um tempo, percebendo como Narizinho fazia o mesmo, do outro lado. Mais de um minuto se passou, antes que ele ouvisse os passos dela se afastando e descendo as escadas.

Pedrinho sentiu-se culpado. Por mais que Narizinho fosse louca (e estava quaaase se convencendo de que ela era), não parecia certo tratá-la daquela maneira. Talvez ela só tratasse Emília como uma pessoa por não ter tido outra criança com quem brincar, até agora. Talvez, com o tempo, ela ficasse menos louca. Talvez...

Perdido nesses pensamentos, Pedrinho nem percebeu a chegada de sua segunda noite no Sítio do Picapau Amarelo. O sol já se punha atrás dos morros pra lá da mata quando Néia lhe chamou para jantar.

Quando chegou à sala de jantar, deparou-se com a mesa estranhamente vazia. Não havia ninguém além de Néia, que terminava de acender o lampião no centro da mesa.

- Cadê a Narizinho? - perguntou Pedrinho à empregada.

Néia torceu a cara na mesma hora. Conservava no rosto o ar severo com o qual recepcionara os dois mais cedo.

- Ela me ajudou a preparar a comida e aproveitou pra se empanturrar na cozinha mesmo. Deve estar na cama, espero. - houve uma ênfase especial nessa última palavra.

- Ah... - disse Pedrinho, murcho. - E Dona Benta?

- Dona Benta não estava se sentindo bem e foi se deitar mais cedo. Agora deixa de perguntas e come logo.

- O que ela teve? - Pedrinho indagou entre uma garfada e outra.

- Não sei. Talvez tenha sido o susto que vocês pestinhas deram nela mais cedo.

A culpa atingiu Pedrinho com força dobrada, roubando-lhe o apetite. Empurrou as garfadas de carne de panela garganta abaixo, só mesmo para não fazer outra desfeita. Quanto terminou, Néia desfez a mesa e o mandou de volta para o quarto.

- Boa noite. - disse Pedrinho. Fazia uma última tentativa de deixar menos hostil o clima entre ele e a empregada.

- Boa noite. - respondeu Néia, com uma secura que atestava o fracasso das intenções de Pedrinho. - Leva esse lampião. E nada de ficar perambulando pela casa, ouviu?

- Sim, senhora.

O dia, quente como havia sido, trouxera mais mosquitos para o quarto de Pedrinho, dificultando ainda mais o seu sono. Perdeu a conta de quantas vezes se estapeara para afastar o zumzumzum irritante, até por fim desistir de dormir e se levantar. Como na noite anterior, Pedrinho pôs a cadeira diante da janela e lançou seu olhar para o oceano de estrelas lá fora.

Não percebera isso da primeira vez, mas no meio do oceano corria um rio. Visto de relance parecia uma nuvem esbranquiçada e muito fina, que nascia atrás dos morros e se esticava como um braço por toda a extensão do céu (ou ao menos até onde Pedrinho conseguia enxergar, debruçando-se na janela para vê-lo sumir além do telhado da Casa Grande).

Pedrinho não sabia o que era aquilo, embora tivesse certeza de que não se tratava de uma nuvem. Desejava que sua mãe estivesse ao seu lado para ver também. Inteligente como era, ela lhe diria tudo a respeito do belo e misterioso rio de luz que cortava o céu. Então, passariam horas e horas conversando a respeito. Mas só se ela estivesse ali...

Onde estaria ela naquela hora, Pedrinho perguntou-se, desviando, sem perceber, seu olhar de encontro à escuridão opressora da mata abaixo. A visão o atingiu com um baque, fazendo com que fechasse os olhos ao que, por um breve instante, imaginou-se vagando por aquele negrume silencioso, o nada no qual poderia existir qualquer coisa.

“Não importa que sinta medo.” - a voz da mãe ecoou em seus pensamentos.

“Todo mundo sente medo.” - era capaz de sentir o calor do seu abraço, e o perfume que ela usava toda vez que saíam para passear.

“O importante é sua coragem ser maior que o seu medo.”

Pedrinho abriu os olhos.

Era normal que sentisse medo da noite naquele lugar, afinal, nunca tinha vivido em um sítio antes. Mas agora que ele encarava a escuridão, conseguia observar os contornos dos arbustos e árvores, percebendo como nada havia mudado do dia para a noite, não mais do que mudava em seu quarto quando apagava as luzes antes de dormir.

Ele precisava ser corajoso. Não só por sua mãe, mas também por Narizinho. Não podia deixar que o receio que sentia por ela e sua boneca feiosa os impedissem de serem amigos. Pelo contrário, deveria ajudá-la. Assim, Pedrinho decidiu que, tão logo se encontrassem, pediria desculpas para ela, e até para Emília, se fosse preciso. Ele não se importava. A partir dali, seria um bom amigo.

- Boa noite, mãe. - ele disse, antes de soprar a chama do lampião e deitar para o que seria seu mais tranquilo sono em semanas.

Levantou com os galos cantando na manhã seguinte, e correu até o quarto de Narizinho antes mesmo que o chamassem para o café. A menina abriu a porta com a cara amassada e os cabelos mais parecendo um ninho de passarinhos (daqueles mal-feitos).

- Oi.. - disse Pedrinho.

- Oi.

Sem saber exatamente o que dizer, Pedrinho apenas esticou sua mão fechada para ela como quem ofertava um presente. Narizinho estendeu a sua, recebendo dele meia dúzia de bolinhas de gude.

- Isso é pra você ir praticando. - disse Pedrinho, sorrindo. - Mais tarde a gente brinca.

E saiu, deixando Narizinho à porta do quarto, esfregando os olhos que ainda não haviam despertado totalmente. A menina fitou as bolinhas de gude em sua mão e um leve sorriso brotou em seu rosto. Voltou-se feliz para dentro do quarto, tratando logo de contar para Emília a novidade.

De fato os dois brincaram naquela tarde. Logo após Pedrinho ajudar Barnabé com os porcos (e também com as vacas, dessa vez) e Narizinho passar o espanador pela casa. Narizinho, porém, era péssima nas bolinhas de gude, e Pedrinho se viu mais de uma vez deixando que ela ganhasse, só para manter a menina na brincadeira.

Foi assim, entre pequenas tarefas e muitas brincadeiras, que se passaram os dias no Sítio do Picapau Amarelo. Pedrinho acostumou-se à rotina de dormir cedo para acordar cedo, tanto quanto se acostumou com as trilhas e passagens escondidas nos arredores da Casa Grande. Seus pés de garoto da cidade, acostumados a sola de sapatos e asfalto, logo criaram a capa de terra própria de quem vive com os dedos enfiados na terra. Ele e Narizinho passavam horas e horas perambulando pelos pastos e plantações, às vezes caminhando em silêncio lentamente, outras correndo e gritando quando decidiam brincar de pique-pega ou pique-esconde.

Só tomavam cuidado com o milharal. Depois daquela primeira experiência, Pedrinho rejeitava toda e qualquer sugestão de Narizinho para se aventurarem por lá, mesmo quando a menina garantiu que conhecia caminhos ao redor do Visconde de Sabugosa, por onde poderiam passar por ele escondidos. A recusa de Pedrinho lhe rendeu várias acusações de “medroso” e “maricas” por parte de Narizinho, mas ele não ligava. Assim como também não ligou quando ela insistiu para que fossem visitar Tia'Nastácia na vila.

Mantendo sua promessa, Pedrinho não contou a qualquer pessoa, em especial Dona Benta, o que Narizinho havia feito. Para não levantarem suspeitas, combinaram de se reencontrar à sombra do pé-de-jabuticaba, antes de voltarem juntos para a Casa Grande.

A manhã do nono dia trouxe uma forte chuva de primavera, a primeira da estadia de Pedrinho no sítio. Dona Benta o dispensou dos trabalhos externos, e ele acabou ajudando Narizinho a terminar mais rápido a limpeza da mobília. Uma vez concluída a tarefa, Pedrinho propôs a Narizinho a ideia que havia tido desde que Dona Benta o apresentara a Casa Grande pela primeira vez.

- …noventa e sete, noventa e oito, noventa e nove, CEM! - anunciou ele, abandonando o cantinho da sala de estar e começando a procurar pela amiga.

Pedrinho estivera de ouvidos atentos durante toda a contagem, assim, sabia que Narizinho continuava no andar térreo. Do contrário, certamente teria escutado as tábuas de madeira da escada, que costumavam ranger não importava quão de leve alguém pisasse sobre elas.

O primeiro lugar em que procurou foi a própria sala de estar. Nas suas rodadas de pique-esconde na escola, aprendera bem a técnica de se esconder o mais perto possível de quem estivesse procurando, para assim surpreender a pessoa quando ela menos esperasse. Olhou atrás dos sofás e das cortinas, e no espaço que havia entre a enorme estante de livros de Dona Benta e a parede, mas Narizinho não estava ali.

Seguiu depois para a sala de jantar, mas sem nunca desviar seu olhar completamente de onde viera. Narizinho ainda podia surgir de algum canto escondido e correr para ganhar a partida. Pedrinho fitou as cortinas, percebendo que o tecido delas era tão fino que logo veria se Narizinho estivesse escondida ali. Afastou então a toalha da mesa e olhou embaixo. Nada.

A partir daí Pedrinho poderia ter continuado para além da sala de jantar, procurando na ala dos empregados, mas decidiu diferente. Conhecendo a Casa Grande como já conhecia, resolveu conservar sua distância em relação a sala de estar, atravessando-a novamente para assim investigar os aposentos no lado oposto ao da sala de jantar.

A passagem logo se abriu para o escritório onde havia a estante de livros envidraçada e a mesa de madeira escura. Aquele sim era um ótimo esconderijo! Pisando de leve sobre o piso acarpetado, Pedrinho se esgueirou para trás da mesa, sob os olhares dos pais de Dona Benta, cujos rostos envelhecidos e amarelados pendiam da parede à esquerda da entrada. Aproximando-se da mesa, Pedrinho deu o bote.

Nada.

O vão sob a mesa estava vazio, o que não significava que não havia nada de interessante para ser visto. Repousando ao lado de alguns cadernos, uma caneta tinteiro e um abridor de cartas, todos tão cuidadosamente espanados quanto a mesa, havia um terceiro retrato dos pais de Dona Benta.

Desta vez, o casal aparecia de braços dados, posando diante da fachada da Casa Grande. A mulher, cujos fartos cabelos negros estavam amarrados em um coque, sorria levemente. Se o homem fazia o mesmo, Pedrinho não saberia dizer, já que a boca dele praticamente desaparecia sob o grosso bigode.

Entre os dois, havia uma menina, não muito mais velha do que a própria Narizinho. Porém, muito diferente dela, cujos vestidos pareciam estar sempre sujos de terra, a menina na foto trajava um delicado vestido de renda, impecavelmente branco, combinando com seu chapéu. Pedrinho observou suas feições, fascinando-se ao reconhecer, apesar das muitas décadas, os olhos de Dona Benta.

Era até engraçado ver como os cabelos brancos de Dona Benta já haviam sido tão negros e que ela, agora uma senhorinha, já fora um dia uma criança sorridente, fazendo pose para um retrato ao lado de sua mãe... e de seu pai... Sim, pareciam tempos felizes.

Mas ele ainda precisava encontrar Narizinho.

A próxima sala na qual entrou era a que continha o piano de Dona Benta. De cara Pedrinho bateu os olhos pelo aposento e saiu, afinal, não havia mais nada exceto o enorme instrumento, coberto por uma lona preta. Sim, uma lona... que parecia estranhamente deslocada para um dos lados do piano, agora que Pedrinho, tendo sua atenção chamada para o fato, retornava a sala.

Como fizera antes, no escritório, Pedrinho aproximou-se do possível esconderijo no mais completo silêncio. Deu a volta ao redor do piano, confirmando sua primeira impressão: a lona tinha mesmo sido movida e então puxada de volta, provavelmente no mesmo movimento que tornara a fechar a tampa do piano. Por isso caíra toda desajeitada daquele lado, deixando uma sobra maior do outro.

Assim, em dois movimentos rápidos, Pedrinho empurrou a lona outra vez e ergueu a tampa do piano, surpreendendo Narizinho lá dentro. Na mesma hora, correu com toda a força das pernas de volta para a parede em que fizera a contagem regressiva e bateu nela três vezes.

- Um dois três NARIZINHO! - bradou Pedrinho, triunfante.

Para a surpresa dele, contudo, Narizinho não fizera qualquer menção de persegui-lo. Confuso, Pedrinho retornou a outra sala, reencontrando a menina na mesmíssima posição em que a havia deixado, dentro do piano.

- O que foi? - perguntou ele, percebendo como Narizinho parecia sequer notar a presença dele ali.

A menina tinha toda sua atenção voltada para uma folha de papel em suas mãos. Esperta, Narizinho colocara Emília sob os joelhos, para que assim não se ferisse nas cordas do piano.

- Olha... - disse Narizinho, estendendo a folha a Pedrinho.

Era uma página manuscrita, bastante amassada. Uma fina camada de poeira cobria o papel, que por baixo revelava-se amarelado e quebradiço. Um dos lados da página estava rasgado, como se tivesse sido arrancada de um caderno.

- Conseguiu ler o que diz? - perguntou Pedrinho.

- Só umas partes. Essa letrinha é confusa. Tem muitas curvas nela.

Pedrinho percorreu os olhos pelo papel. De fato a caligrafia era bonita e cheia de floreios, ainda assim parecia pertencer a uma criança, por vezes espalhando-se pelo espaço da página mais do que o necessário.

- Lê pra fora! - disse Narizinho. - Também quero saber.

E assim, Pedrinho começou a ler em voz alta aquele segredo, escondido dentro de um piano quebrado e então esquecido, oitenta anos atrás.

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