1x03 - Sonhos Inquietos

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Pedrinho fitou a boneca a seus pés. Os fios amarelos e vermelhos que serviam de cabelo para Emília estavam embaraçados e sujos. O vestido, também amarelo e vermelho, estava desbotado e coberto de manchas de terra. Não era à toa que Dona Benta reclamava da presença dela pela casa.

Ainda temeroso, Pedrinho agachou-se para pegar a boneca, mas deteve-se ao que o lampião lançou luz sobre a estranha expressão no rosto de pano. Os olhos de Emília não eram pintados, mas sim feitos com dois botões pretos, cujos tamanhos diferentes causavam certa estranheza, como se fosse vesga ou algo assim. A boca mais parecia um corte cheio de pontos, como da vez em que ele machucara a perna jogando futebol.

De repente, uma sombra moveu-se no canto dos olhos de Pedrinho. Na mesma hora, ele se levantou, esticando o braço de forma a iluminar, o máximo que pudesse, o corredor à frente. A luz não era suficiente para ver nada após a escadaria que levava ao salão de entrada da casa, ainda assim, Pedrinho teve a nítida impressão de algum movimento mais além.

- Isso não tem graça, Narizinho! - disse ele, sem muita convicção. - Sei que está aí. Aparece logo!

Segurando a boneca com uma das mãos e o lampião com a outra, Pedrinho avançou pelo corredor em passos vagarosos, mas que ainda assim provocavam um ranger estridente no chão de madeira.

Alcançou por fim o ponto em que o corredor se abria para a escadaria principal da Casa Grande, antes de prosseguir até o outro lado da casa. Pedrinho debruçou-se no primeiro degrau, tentando iluminar o salão abaixo, mas era inútil. Forçou a vista o máximo que pôde, mas não viu ninguém.

A mão tocou-lhe o ombro sem aviso.

Pedrinho atirou-se para trás, em pânico, deixando Emília escapar-lhe das mãos.

- O que está fazendo, menino? - perguntou Néia, abaixando-se para pegar a boneca. - Ai, essa bonequinha horrorosa outra vez. Ainda jogo essa porcaria no lixo um dia desses. Mas anda, diz, o que está fazendo andando pela casa a essa hora? Não devia estar dormindo?

Pedrinho tentou articular alguma resposta, mas o coração parecia entalado na garganta. Só o que podia pensar era na sorte que tinha por ter ido ao banheiro logo após o jantar, do contrário, com certeza teria molhado as calças.

- Mas olha só, parece que está vendo assombração! - continuou a empregada. - Vem comigo, antes que acabe acordando a Dona Benta. E me dá esse lampião, daqui a pouco se queima, aí eu quero ver...

Ainda se recuperando do susto, Pedrinho foi conduzido por Néia de volta ao seu quarto. A empregada acabou ajudando-o a terminar de guardar suas roupas no armário, antes de colocá-lo na cama. Néia ainda recolheu as bolinhas de gude e o carrinho de brinquedo do chão e os colocou sobre o criado-mudo, certificando-se de que não havia mais nada fora do lugar antes de se despedir, levando consigo o lampião.

- Agora é melhor eu deixar essa coisa imunda na cama da Narizinho – disse ela, referindo-se a Emília – antes que aquela malcriada acorde a casa toda aos gritos como na última vez...

E com essas palavras, Néia se despediu, levando consigo o lampião. O quarto encheu-se do luar azulado que vazava pela janela entreaberta. O único som era o vozerio dos grilos vindo lá de fora.

Pouco a pouco a respiração de Pedrinho começava a se normalizar. Contudo, o susto que passara há pouco havia lhe roubado o sono completamente. Rolou de um lado para o outro na cama, evitando pensar na voz que ouvira mas ao mesmo tempo buscando uma explicação para ela. Tinha que ter sido Narizinho lhe pregando uma peça, sim, só podia ser isso.

Mas se era assim, por que continuava tão inquieto?

Pensar em sua casa, em sua mãe, nada disso o ajudava. Pelo contrário, só o deixava mais longe de pegar no sono. Sua primeira noite no Sítio do Pica Pau Amarelo prometia ser longa.

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