1x01 - Férias Fora de Época

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O automóvel deixou a estrada e se embrenhou por uma trilha de terra batida que surgia súbita e seguia pelo meio da mata. Pedrinho olhou para os lados, espantado pela exuberância do cenário, tão incomum para um garoto da cidade grande. Em seguida, voltou-se para trás, observando a entrada da trilha afinar-se cada vez mais, até se tornar uma linha vertical de luz entre as imensas paredes de árvores.

Sentiu uma dor aguda em seu pescoço. Passara muitas horas deitado desconfortavelmente por sobre os três homens que o acompanhavam no banco traseiro do carro.

- Está doendo, Pedro? - perguntou um dos homens. Era um rapaz de menos de trinta anos, apesar da espessa e escura barba que o fazia aparentar ter mais de quarenta.

- Só um pouco.

- Já estamos quase chegando. - disse a mulher sentada no banco do carona. Era Letícia, sua mãe, de quem Pedrinho herdara os olhos azuis. - Está com fome?

- Não. - respondeu Pedrinho.

Fitando as figuras que o acompanhavam, o menino achou certa graça na noção de disfarce que pareciam compartilhar. Quatro homens em um carro, todos donos de uma mesma feição básica - cabelos mal-tratados, barba densa, olhar esquivo - acompanhados por uma única mulher que, apesar do tempo encoberto daquele dia, em instante algum removia os óculos escuros.

Mesmo se não soubesse quem aquelas pessoas eram, Pedrinho teria desconfiado, embora a culpa fosse mais dele por ser tão esperto para um garoto de onze anos. Apesar de tudo, parecia estar dando certo. Haviam deixado a cidade para trás e, se não fosse pela voz chiada e entrecortada que interrompeu a música no rádio, o plano original de seguirem até seu destino com um mínimo de conversa teria sido bem sucedido.

- De La Paz, Bolívia, chegam informes de que o líder revolucionário, Ernesto Che Guevara, foi capturado e morto por soldados bolivianos na aldeia de La Higuera, situada à 150 quilômetros de Santa Cruz de La Sierra.

Terminado o anúncio, todos dentro do Impala começaram a falar ao mesmo tempo. Estavam todos furiosos, sua mãe ainda mais do que os outros. Pedrinho já ouvira falar no tal homem que aparentemente havia morrido, mas diferente de seus pais, não se interessava em nada por política. Ainda assim, não pôde deixar de sentir que sua viagem não era a única coisa importante acontecendo naquele dia.

Quando o carro emergiu do outro lado do bosque, Pedrinho se viu no meio de um campo vasto e verdejante como jamais havia visto. Fizeram uma curva para a esquerda e tomaram uma trilha arcaica, em declive, a partir da qual surgiam outras trilhas que se cruzavam, espalhando-se do sopé da colina em todas as direções.

O homem sentado ao lado de Pedrinho chamou sua atenção, apontando para um riacho que corria distante e desaparecia atrás de outra colina. Pedrinho percebeu que às suas margens havia um vilarejo com pequenas casas de aparência rústica, mas nenhuma pessoa. O carro fez então uma curva brusca, e a visão do menino foi tomada por um mar de enormes espigas de milho, ao que seguiam por mais um caminho de terra, ladeando a plantação.

Eis que, surgido do nada, passou pela janela de Pedrinho um homem de expressão austera, conduzindo pelas correias uma mula. Era a primeira pessoa que o menino avistava após tantas horas de viagem, e ele observou curioso, especialmente pela forma como o sol resplandecia em sua tez negra. O homem, contudo, não retribuiu sua atenção, e continuou a tocar sua mula pela trilha a passos vagarosos, alheio a presença do carro ali, até desaparecer nas entranhas do gigantesco milharal.

Logo vieram outros. Homens, mulheres e crianças, todos de pele tão escura quanto aquele que Pedrinho acabara de ver. O carro havia chegado a uma vila, muito parecida com aquela à beira do riacho. Tinha cerca de trinta casebres, de aspecto humilde como seus habitantes que, como o homem de antes, procuravam não encarar diretamente o automóvel.

Uns poucos se atreviam a olhadelas rápidas e receosas, mas a maioria apenas desviava do caminho ou desaparecia no interior de um dos casebres. Apenas uma menininha se aproximou. Ficou na ponta dos pés ao lado da janela de Pedrinho e fitou o interior do carro, curiosa.

Pedrinho sorriu, aliviado por haver ao menos uma pessoa ali que parecia não ter medo deles, e encostou a palma da sua mão no vidro. A menina negra sorriu de volta, e estava prestes a tocar o vidro, quando foi puxada para longe dele por uma mulher.

- Vamos lá, gente! - o motorista, impaciente, buzinou algumas vezes. Os poucos moradores que ainda restavam à frente do carro logo se afastaram, abrindo caminho.

A vila terminava onde começavam os campos de arroz, e daquele ponto já era possível avistar os andares superiores da Casa Grande. O acesso até se dava por um caminho calçado de pedras através do bem cuidado jardim, no qual rosas de muitas cores brotavam em meio ao vívido verde do gramado.

Quando o carro parou em frente da casa, todos em seu interior ficaram em silêncio por um instante. Então, Letícia suspirou, e havia dor em sua voz quando virou-se para Pedrinho e anunciou:

- Chegamos.

O menino foi o último a descer, trazido pela mão por sua mãe. Quando olhou para a plantação além do jardim, percebeu mais pessoas trabalhando lá. A maioria homens, de aparência mal-tratada, que olhavam para ele e os demais com o mesmo receio dos moradores da vila. Provavelmente moravam lá também, deduziu. Da mesma forma que presumiu que, na certa, haveria mais deles no cafezal que surgia no campo à esquerda da Casa Grande.

E se uma casa poderia ser chamada de grande, era aquela. Nem no bairro mais rico da cidade em que morava Pedrinho havia visto parecida. Sua fachada era de um bege amarelado, possuía três andares - sendo o terceiro e último um pouco mais estreito que os demais - e umas trinta janelas, só na parte da frente, todas feitas de madeira escura e envernizada. No centro do andar térreo se abria uma varanda, onde alguns vasos de plantas e uma cadeira de balanço vazia se colocavam entre as duas colunas de mármore que adornavam a entrada principal da casa, uma enorme porta dupla, feita com a mesma madeira escura das janelas.

Tudo parecia muito limpo e perfeitamente arrumado, mas o silêncio e a atmosfera sombria trazida pela falta de sol - as nuvens haviam tomado completamente o céu - conferiam ao lugar um certo ar de abandono. Pedrinho apertou com mais força a mão da mãe. Letícia e os quatro homens se entreolharam.

Um deles aproximou-se da varanda e bateu palmas. Uma voz saudou-os, subitamente:

- Bom dia.

Aproximava-se do quinteto um senhor negro e rechonchudo, de traços marcados e pele molhada de suor. Usava um velho e sujo macacão branco, um chapéu de palha, além de luvas e botas de couro.

- Bom dia. - respondeu o rapaz. - Estamos procurando a senhora Oliveira.

- Ah sim, ela estava esperando vocês. - respondeu o velho. - Ela está aqui nos fundos, dando uma olhada nas vacas. Espera só um segundinho que vou chamar.

- Tudo bem.

O rapaz retornou para onde estava Pedrinho e sua mãe, trazendo uma expressão desconfiada.

- Você tem certeza disso? - perguntou ele à Letícia. Ela hesitou por um instante, antes de responder.

- Tenho.

Pedrinho continuava quieto. Estivera assim desde antes de deixar sua casa, após a última das muitas conversas que teve com sua mãe sobre aquele assunto. Sentia que já havia falado muito. Ouvira mais do que falara, na verdade, e até chorou um pouco, baixinho, quando ela não estava olhando. Agora, não tinha mais nada a dizer ou a chorar. Sabia o que iria acontecer e também sabia que era o único jeito, do contrário estaria longe dali.

- Serão como férias fora de época, está bem, meu filho? - foram as palavras dela. - Vão cuidar de você lá, até eu voltar. E quando eu voltar, trarei seu pai comigo.

O velho negro retornou dos fundos do casarão acompanhado por uma senhora de baixa estatura e cabelos muito, muito brancos presos no alto da cabeça. Usava um vestido em tons de lilás e azul claro, e acabava de retirar um par de luvas de couro para passá-las a seu peão.

- Meus amores! - exclamou ela, ao que os braços se escancararam para um enlace caloroso, primeiro em sua mãe, depois em Pedrinho. - Qual o seu nome? - perguntou-lhe.

- Pedrinho.

- Muito prazer, Pedrinho. - o sorriso exibido pela senhorinha ao fitar seus olhos pareceu, por um breve instante, trazer o sol de volta para o lugar. - Eu sou a Dona Benta. Bem-vindo ao Sítio do Picapau Amarelo.

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