O Senado era a maior instituição da Roma pagã. Excetuando-se a hierarquia da Igreja Católica, nunca houve uma assembléia mais poderosa, unida, e duradoura. Ele passou pelas guerras, tempestades e vicissitudes de vinte e cinco séculos, e ainda existe. Levantando da obscuridade, caminhou imperceptivelmente para o poder, até que governou o mundo. Surgiu de um bando de fugitivos, escravos ociosos, e ladrões de estrada – foi fundado por Rômulo, por volta de 750 a.C. Consistia, a princípio, de cem homens dentre os mais velhos e mais respeitáveis da pequena colônia de exilados e escravos, que se estabelecera entre as Sete Colinas; daí o nome Senado, ou assembléia dos idosos e pais. Foi aumentado para duzentos, quando o roubo da Sabina promoveu a união entre as duas tribos. Sob o comando de Tarquin, o número cresceu para trezentos, e sob o cetro dos imperadores, chegou a mil. O poder foi posto em suas mãos. O supremo magistrado, embora ostentasse o título de rei, era antes o comandante do exército, e presidia sobre a religião do Estado. Era o senado quem declarava guerra ou paz, e tratava com os embaixadores de outras nações. Os senadores usavam vestes diferentes das demais pessoas; tinham um lugar especialmente designado para eles, no Coliseu e em todas as funções públicas. Eram proibidos de negociar e se casar com pessoas de origem desprezível. Entre as mulheres proibidas estavam a atrizes, e as filhas e netas de atrizes.
Um escritor antigo fornece uma idéia detalhada dos poderes reservados ao senado. Nos seus dias de glória, era a única fonte e centro de poder e grandeza de Roma. "Nada", escreve Políbio, "podia entrar ou sair da tesouraria sem o seu consentimento. Ele era a mais elevada administração do Estado. Julgava as diferenças surgidas entre os cidadãos, ou entre as províncias submissas ao Império; corrigia-os, ou defendia-os, quando necessário; alistava homens para o exército, e supria-lhes o pagamento; enviava seus cônsules aos campos de batalha, e os chamava de volta, à vontade, ou enviava outros generais para os substituir; declarava o triunfo e mensurava a glória do conquistador; nenhum monumento era erguido em memória de alguém, sem o seu consentimento. Era, finalmente, a grande corte de apelação para as nações da terra – o único representante do povo romano".
Se adicionarmos ao seu ilimitado poder legal a ascendência que os senadores de Roma devem ter naturalmente obtido de sua riqueza, de seus méritos pessoais, seu patriotismo e sua união, poderemos entender facilmente como eles influenciavam o destino de tantas nações.
Quando lemos os anais desta grande instituição, ficamos perplexos com a gravidade de seus debates, e com a coragem e independência de seus atos, sempre combinados e dirigidos pela prudência e a previsão. Nenhuma autoridade era reconhecida entre eles, senão a razão; em vez de um espírito faccioso, ciumento, e partidário, o que presidia sobre a assembléia, e guiava-lhes as ações, era um nobre sentimento – o do bem público. Este era o segredo de seu triunfo e poder.
•2•
A história do início do senado acha-se entretecida com a história da própria Roma, e ambas são inseparáveis. Mas enquanto acompanhamos o desenrolar dos eventos naquela era de Roma – era do resplendor do Coliseu – devemos lançar o olhar sobre o papel do senado durante os dias de perseguição.
Após as convulsões políticas que abalaram o Império, levaram Cícero ao exílio, e pôs César no comando dos negócios do Estado, o senado recebeu um golpe do qual nunca se recuperou. A forma do governo romano foi completamente mudada; o povo, que vencera os aristocratas, entregou todos os seus direitos ao seu chefe, e todo o poder romano ficou concentrado num só homem. César assumiu o título de ditador e imperador, e também os direitos do Supremo Pontífice, e a autoridade dos censores e dos pretores. Assim ele controlava o tesouro – tinha o direito de declarar guerra ou paz – comandava a disposição das províncias e a eleição dos magistrados. Sua ambição foi fatal ao poder do senado, e embora os senadores continuassem a reunir-se, e a sustentar o esplendor de seu prestígio anterior, não passavam de uma assembléia política, um grande conselho de Estado, que desfrutava unicamente do poder que o seu ambicioso chefe consentia em dar-lhes.
Entretanto, não suponha o leitor que os senadores submeteram-se a estas mudanças sem murmurar. Um espírito de inveja e indignação revelava-se em suas ações públicas e privadas; e o primeiro imperador era perspicaz demais para não enxergar a vingança lampejando de cem punhais, dentro do próprio senado. Uma política de reconciliação apenas retardou o golpe fatal. O imperador conhecia o poder do senado através das memórias do passado, e embora houvesse triunfado sobre ele como o ídolo da plebe, não podia se dar ao luxo de pisar a nobreza e perder seu apoio.
A sua política consistia em neutralizar a oposição dos herdeiros do antigo poder aristocrata, acrescentando ao senado os seus próprios seguidores mais devotos. Assim fazendo, logo subiu o número dos senadores para novecentos; aumentou em proporção o número dos magistrados, e preencheu alguns dos postos mais importantes com os seus partidários. Foi por este meio que homens das províncias de Etrúria e Lucânia, e venezianos, insubrianos e outros, bárbaros e iletrados, foram introduzidos para deteriorar e corromper a grande instituição patriarcal da Cidade Imperatriz.
Isto suscitou mais que a indignação do partido aristocrata, e até mesmo o grande Cícero resmungou, e a sua pena poderosa acelerou a ruína que se aproximava. Suetônio conta que tudo o que se ouvia eram versos e canções ridicularizando os novos senadores; insinuações de que eram uma raça de bárbaros conquistada, e de que César os fizera trocar as peles pelo laticlavo, a túnica com orla de púrpura, usada pelos senadores. No Pasquim daquele tempo (muito provavelmente a mesma velha estátua desfigurada, que ainda se vê num dos ângulos do Palácio Braschi), eram fixados libelos do seguinte teor: "Não deixe ninguém mostrar aos estranhos o caminho do Fórum".
A indignação dos velhos patrícios continuava a crescer. Embora roubados e humilhados, eram resolutos e cheios de determinação. Seu descontentamento finalmente rompeu em fúria passional, e guiados pelo impetuoso Brutus, decidiram a morte de César. Ele caiu. Seu corpo ficou sangrando na base da estátua de Pompéia, no Fórum, enquanto os quarenta vilões que o haviam assassinado correram pelas ruas, levando nas mãos os punhais ainda sujos com o sangue do ditador, e gritando: "Morte a todos os tiranos!" Não obstante, o seu triunfo foi temporário. Aquele grupo venerável não recuperou seu poder e prestígio pela violência e pela matança; não o recuperará agora; os decreto da Providência são contra ele; ele pode existir, mas jamais governará o mundo outra vez.
A revolução dos Idos de Março, como é chamada, privou o mundo de seus maiores homens. Brutus orgulhava-se de haver eliminado um tirano, mas as províncias choraram a morte de César. O choro de luto e o lamento público que se levantou em todo o Império foi a condenação dos assassinos. Ficou evidente para todos que não foi o amor à liberdade, nem o zelo pelo bem-estar do Estado que causou a morte do imperador, mas o ciúme e a ambição de um grupo de cidadãos facciosos. "Eles se autodenominavam matadores de um tirano", escreve Dion Cássio, um senador que viveu cerca de um século após esses acontecimentos, "mas não eram mais que assassinos e homicidas" (Nº XLIV, I).
César era querido nas províncias. Seus magistrados, o exército, e mesmo a maior parte do senado, lamentou-lhe a queda. O mundo exterior não se importava com a supremacia do senado. Que vantagens tirariam das políticas e das agitações do Fórum romano? Enquanto desfrutavam da liberdade, prosperidade, e justiça oferecida por seu chefe reconhecido, porque haveriam de esposar a causa do senado? Ademais, a própria assembléia caíra de sua integridade primitiva. A sua afeminação, sua parcialidade, e o afastamento do rigor e do patriotismo de sua antiga instituição, angariaram-lhe desprezo em vez de submissão e admiração. Bem antes da monarquia dos césares, o grande Cícero proferiu estas palavras notáveis, indicando a sua degeneração moral, bem como a política: "É por causa de nossos vícios, e não por um golpe do destino, que, embora preservemos o nome de uma república, há muito perdemos a realidade". "Nostris, non casu aliquo, republicam verbo retinemus, reipsa vero Jam pridem amisimus". — De Repub, v.i.
O sangue de César foi derramado em vão. A facção anárquica do senado nunca segurou as rédeas do governo; os punhais que o assassinaram começaram para o senado o período mais terrível e desastroso de sua carreira. Na guerra civil, e nas convulsões que se seguiram, eles não apenas perderam o último vestígio de seu poder anterior, como se tornaram as vítimas do capricho ou da vingança dos ambiciosos aspirantes ao poder supremo do Império.
Augusto assumiu o cetro de César. A sua reorganização do senado foi um dos mais esplêndidos feitos – porquanto um dos mais difíceis – de seu reinado bem-sucedido. Por influência dele, quase duzentos membros do senado renunciaram ao cargo por não se adequarem, por conta de seu nascimento ou falta de talento, à sua alta posição e honra. Ele aplacou-lhe as suspeitas, e ocultou a própria ambição, assumindo o modesto título de Príncipe do Senado. Todavia, durante todo o tempo em que se ocupou destas reformas, nunca apareceu entre eles sem ter junto a si nove ou dez de seus mais fiéis adeptos, secretamente armados; e ele mesmo levava sob a toga um punhal. Prudentemente, ele temia o ressentimento dos senadores. Onze anos depois, no ano 18 a.C, ele completou a organização, e reduziu-lhes o número para seiscentos, começando assim o senado imperial.
É desnecessário seguir a nobre instituição em sua carreira posterior de servilismo e degradação, durante o reinado de sucessivos imperadores.
Após a abdicação de Deoclécio, e o triunfo de Constantino, o senado debateu-se em sua existência hereditária. Seu nome foi arrancado do Capitólio e dos estandartes militares: em seu lugar foi posto o mais formidável e imperecível símbolo de redenção. A estátua e o altar de Vitória, que presidia como uma deidade tutelar sobre suas assembléias, foram removidos por ordem de Constance, postos de volta sob o governo do apóstata Juliano, e finalmente destruídos pelo consentimento unânime do próprio senado. Apesar de muitos entre eles ainda se apegarem aos velhos rituais do paganismo, eram sempre dóceis ao comando dos imperadores; a
adoração dos deuses do Capitólio foi proscrita no tempo de Teodósio, e o cristianismo, declarado a religião do senado e do povo romano. "Foi então", relata o sublime Prudens, "que vimos aqueles veneráveis pais, aquelas luzes mais brilhantes do mundo, o nobre conselho de Catos, lançar fora a insígnia do antigo sacerdócio, e humildemente vestir-se com o manto branco dos catecúmenos".
"Exultare Patres cideas, pulcherrima mundi
Lumina, concilium que senum gestire Catonum,
Candidiore toga niveum pietatis amictum
Sumere, et exuvias deponere pontificales."
Todavia, não devemos nos esquecer que, embora o poder e a independência do senado houvessem deixado de existir, ele ainda era o grupo mais elevado e influente do Império. Seus membros eram os nobres da terra, e possuíam imensa riqueza. De acordo com Dion Cássio, a fortuna de um senador chegava a um milhão de sestércios, antiga moeda de cobre romana. E se acreditamos em Suetônio, alguns deles tinham um retorno anual de dois milhões de sestércios, cerca de 105.000 libras, que devem ser multiplicadas por dez para que se tenha uma idéia aproximada do valor do dinheiro daquele tempo. Numa cidade de pelo menos 3.000.000 de pessoas, eles eram os principais. Os usurpadores do trono imperial os perseguia porque lhes conheciam o poder, e o temiam.
No entanto, quando os historiadores fazem vastas asserções concernentes à imoralidade e efeminação da grande assembléia, deve haver entre eles brilhantes exceções. A própria história registra nomes de honra e valor, que florescia no senado em seus piores dias; muitos desses eram cristãos, e mesmo mártires, que derramaram seu sangue no Coliseu em defesa da fé.
•3•
Nosso próximo martírio ocorreu durante o império de Cômodo. Um tirano mais indigno nunca deve ter se sentado no trono imperial. Sua ambição insana instigou-o a apropriar-se de honras divinas. Não satisfeito com isto, erigiu um trono no meio do senado, e vestido numa pele de leão, e empunhando uma grande clava, exigia que os senadores oferecessem-lhe sacrifício, como se ele fosse Hércules, o filho de Júpiter. Emitiu um decreto convocando uma assembléia geral do senado no Templo da Terra. Um pregoeiro foi enviado às aldeias e cidades vizinhas, anunciando o decreto, a que todos deveriam atender sob pena de morte. Ninguém do povo, nem mesmo dos moradores de Roma, sabia a causa dessa assembléia extraordinária. Imaginavam que uma terrível calamidade ameaçava o império, que estourara uma revolução formidável, e que a guerra chegara aos portões da cidade imperial. Os senadores, acreditando que seu parecer e conselho estivessem sendo requerido para o bem público, apressaram se para lá; em meio ao forte calor do verão, deixaram suas recreações suburbanas, suas residências, fazendas e famílias, e afluíram às centenas pelas empoeiradas vias Tiburtina, Ápia, e Latina.
Desde a época de Augusto, as atas ordinárias do senado começavam com os sacrifícios a Júpiter ou a Vitória, cujas estátuas encontravam-se em seus salões. Por isto, como afirma Barônio (ano 192), nenhum senador podia continuar membro do senado após tornar-se cristão; ele era obrigado a renunciar o título, ou retirar-se para o exílio voluntário.
Os monstruosos absurdos de Cômodo, e o zelo dos cristãos, levaram muitos dos pagãos ao redil da Igreja. Encontramos nos Atos de Eusébio e de seus companheiros, que eles foram pelas ruas atraindo a atenção para o ridículo e a vergonha do povo. A sublime doutrina e a moralidade do cristianismo eram, em todo tempo, mais belas e poderosas que a adoração ridícula e sem sentido do paganismo. Quando foi expedida a ordem para que adorassem a um patife da espécie de Cômodo, muitos abriram os olhos à loucura da idolatria, renderam-se ao convite da graça, e tornaram-se cristãos. Dentre esses, achavam-se alguns senadores. Apolônio e Júlio aparecem na lista dos destemidos que ousaram negar a divindade do imperador. A espada era o único trovão que o deus vingativo podia comandar, e ele a usou para mostrar sua fraqueza.
Apolônio sofreu cerca de três anos antes de Júlio. Seu martírio não se deu no Coliseu, mas traduziremos um parágrafo interessante do Quinto Livro de Eusébio, conforme citado por Barônio no ano 189. Depois de falar da paz desfrutada pela Igreja antes desse período, ele acrescenta:
"Mas esta paz não agradou ao Diabo, que se empenhou em perturbar-nos por meio de muitos estratagemas. E ele logrou trazer a julgamento Apolônio, um homem muito celebrado entre os fiéis por seus estudos de literatura e filosofia. Um de seus servos, um canalha pervertido, foi induzido a trai-lo (pelo que sofreu severamente). Quando o mártir, amado de Deus, foi solicitado pelo juiz a dar aos companheiros do senado, pais da pátria, a razão de haver abraçado o cristianismo, ele leu perante todos uma longa e douta apologia à fé em Cristo. Eles, porém, pronunciaram contra Apolônio uma sentença, e ele perdeu a vida por um golpe de machado. Havia entre eles uma antiga lei que não permitia inocentar qualquer senador acusado de ser cristão, e que não mudasse sua profissão de fé".
Chegara a manhã da grande assembléia do senado. A cidade fervilhava de excitação. Os veneráveis líderes da comunidade enchiam-se da esperança de que dias melhores se aproximavam, e de que eles estavam para recuperar seus direitos. Era a primeira vez, no império de Cômodo, que eles eram solenemente convocados juntos, e essas reuniões haviam-se tornado bem raras. Cada senador, trajando seu melhor laticlavo, levou consigo os filhos ao templo da deusa Terra, que ficava à sombra dos altos arcos do anfiteatro. Ao longo da Via Sacra, e em volta do arco do triunfo de Tito, pequenos grupos de senadores de barba branca discutiam a causa provável que induzira o Imperador a reinstalar o senado.
Alguns diziam que era medo, por causa da morte de Perrênio, chefe do senado, e da advertência que os deuses lhe haviam feito; isto o tornara ansioso para conciliar o senado, restaurando-o ao seu poder no Império.
— Eu estava presente — confidenciou um cidadão idoso a alguns de seus amigos que tinham acabado de chegar de Tiburtio. — Eu vi quando, em meio aos entretenimentos do teatro, entrou de repente um estranho. Ele estava vestido como um filósofo, com o cajado de peregrino na mão, e um saco no ombro. O estranho aproximou-se do trono do imperador, e pedindo silêncio com a mão, disse: "Não é tempo, Cômodo, de entregar-te a espetáculos teatrais e a vãs deleites, pois a espada de Perrênio pende sobre a tua cabeça, e se não tomas cuidado, já estás perdido. Ele já subornou teus inimigos, e corrompeu o exército na Ilíria. Treme, porque o perigo jaz à tua porta!"
— De fato, o imperador tremeu — continuou o velho senador. — E a fim de apaziguá-lo, todos gritamos: "Morte a Perrênio!" Ele foi assassinado, mas o imperador nunca mais foi o mesmo, desde aquele dia. Tornou-se mais cruel, mais desconfiado e insuportável. Suspeito que ele tem um plano terrível para reunir-nos aqui hoje. Vim com meu punhal de confiança! — rematou ele, puxando das dobras da toga um belo punhal dourado, e mostrando-o ao companheiro como um dos tesouros herdados de seus antepassados.
O homem que assim falava era o mesmo que, algum tempo depois, sob um dos arcos do Coliseu, puxaria o punhal, e brandindo-o diante da face de Cômodo, exclamaria: —Veja o que o senado preparou para ti!
Outro achava que a convocação era porque a praga que estourara na Etrúria e na Gália Cisalpina estava se estendendo rapidamente em direção à cidade, e espalhando desolação em seu caminho. Ele ouvira que o supremo pontífice do Capitólio sugerira sacrificar à irada Jove. Quem sabe, imaginava ele, o senado fora convocado para aquele propósito.
— Nada disso — interrompeu um senador alto e magro, vestido como um comandante militar, que parecia homem de grande importância, e falava com um sorriso sarcástico. — Nada disso. Ele pensa mais nas meretrizes dos seus banhos e lupanares que em seus súditos sofredores. O que ele quer é dinheiro. Ouvi de seu fiscal que ele não tem um óbolo para pagar a Caronte a travessia da barca sobre o Estige (Caronte era o barqueiro que, na mitologia grega, levava as almas na travessia do Estige, o rio do inferno). Sacrificar?! Para que? Só se for para ele mesmo, como o deus Hércules e filho de Júpiter.
Todos riram como se essa fora uma boa piada. Mas um jovem, que permanecera em silencioso e pensativo durante a conversa, sentiu um estremecimento percorrer-lhe o corpo enquanto Vitélio, o comandante da infantaria, falava aquelas coisas. Ele ocultou sua indignação, e o grupo seguiu junto para o templo da deusa planetária.
Certa vez, num hospício da Inglaterra, uma cena curiosa aconteceu. Um louco disse aos seus companheiros, não tão loucos quanto ele, que ele era Deus. Por sua natureza violenta, amedrontou a todos, e eles consentiram em chamá-lo de Deus. Um dia, quando o número de assistentes na sala era insuficiente, o louco subiu numa cadeira, e ordenou que todos os demais o adorassem. Por medo, ou galhofa, eles reuniram-se à sua volta, e fingiram adorá-lo. Alguns beijaram o chão, outros, os seus pés; um afirmou ser o arcanjo Miguel, e que trazia a homenagem de todos os anjos; outro disse ser o rei da terra, e trazia o reconhecimento de todas as criaturas. A farsa continuou, até que outros assistentes chegaram, e removeram o homem iludido para uma cela escura e solitária.
Foi quase que precisamente esta a cena testemunhada em Roma, no ano 192. Não entre loucos, mas entre os mais educados, ricos, e poderosos membros do grande império, o Templo da Terra achava-se revestido de sempre-vivas e outras flores; nas paredes, viam-se as pinturas representando os fabulosos feitos de Hércules. Uma imensa pilha de madeira preciosa ardia numa fogueira, no centro do templo. Os sacerdotes envergavam mantos amarelos e dourados, e o sumo pontífice segurava na mão direita um tripé de ouro. Tudo estava preparado para o sacrifício. Mas quem era o deus que usurpara o trono do generoso planeta? Era o Hércules vivo, vestido numa pele de leão, e segurando na mão uma clave maciça: Cômodo.
Os senadores entraram um a um. O medo e a surpresa os atingiram. Alguns tiveram um assomo de riso, como se a coisa toda não passasse de uma brincadeira, e posteriormente pagaram por isto um alto preço. Outros empalideceram de consternação, pois havia lictores armados espalhados por todo o templo, e a expressão severa do tirano, tentando assumir a majestade de Hércules, lançava uma sombra fúnebre sobre os procedimentos. Sua figura diminuta, suas feições inchadas e mal-constituídas, e sobretudo a sua vida vergonhosa e infame, faziam um triste contraste com Hércules, o esplêndido e gigantesco herói das fábulas mitológicas.
O orgulhoso patife dirigiu-se aos pais da pátria. Declarou-lhes que os havia convocado para anunciar que, dali em diante, ele seria adorado como o filho de Júpiter. Nenhum historiador nos deixou por escrito as palavras que ele usou. Quem poderia registrar tal impiedade e contrasenso? Mas o senado, o fraco e decaído senado, prosseguiu com a farsa blasfema, oferecendo incenso e adulações, como fariam a um deus. Cenas semelhantes a esta eram freqüentes na grande Babilônia da Roma pagã, e mostravam quão fundo o homem descera na escuridão da idolatria e da infidelidade.
Pode parecer estranho, mas o cristianismo teve um longo e terrível combate com o poder das trevas. Dezoito séculos se passaram, e ele ainda está no campo de batalha pelas provações, tribulações, e sofrimento de toda espécie, ele vai, devagar, porém seguramente, abrindo caminho sob o estandarte da cruz. O seu triunfo completo será comemorado após o dia final, no céu. Entretanto, no segundo século da Igreja, de quando recordamos estes eventos, o ódio era tão intenso que, não obstante a força da razão que o sustinha, e os incontestáveis milagres que lhe confirmavam a origem divina, o senado, degradado e acovardado, preferiu adorar o orgulhoso e lascivo Cômodo, a expor-se ao perigo. Que infelicidade! Houve, porém, uma exceção: Júlio. Mais de setenta anciãos prestaram-se à tola zombaria. Somente Júlio teve a coragem de expressar seu desprezo, e recusou dobrar os joelhos.
Quando disseram a Cômodo que Júlio não viera oferecer incenso à sua divindade, ele mandou que fosse trazido pelos lictores. Todos os olhares estavam fixos no senador, quando ele, caminhando entre os lictores, dirigiu-se à tribuna do templo, onde estava o trono do imperador. Cessou o zumbido das conversas, e aqueles que, secretamente, ridicularizavam e desprezavam o governador demente, silenciaram avidamente para assistir o destino de Júlio.
— Como te tomaste tão louco a ponto de não sacrificar a Júpiter e a seu filho Hércules? — indagou Cômodo. (Citação dos Atos escritos pelos Bolandistas.)
Por um instante, Júlio pareceu demasiadamente indignado para responder, mas olhando desdenhosamente para o orgulhoso tirano, declarou:
— Tu perecerás como eles, porque mentes da mesma forma que eles.
Foi o suficiente. O tirano chamou Vitélio, o comandante da infantaria, e ordenou-lhe, com gritos enraivecidos, que lhe tirasse das vistas o insolente senador: — Confisca-lhe os bens, até o último centavo, e açoita-o até que resolva sacrificar à nossa divindade.
Os julgamentos de Deus são diferentes dos julgamentos dos homens. Se o nosso Pai amoroso e misericordioso fosse capaz de irar-se, e punir imediatamente cada insulto dirigido à sua divina majestade, a raça humana há muito teria deixado de existir. Cômodo não poderia ter pensado em alguém mais cruel e miserável que Vitélio para executar-lhe as ordens. Ele fez Júlio ser levado dali acorrentado, e o lançou na prisão, possivelmente a Marmetina.
Após alguns dias de confinamento privado de alimentação e de todo conforto físico Júlio foi trazido perante Vitélio, no mesmo templo. Por ordens dele, veio nu e acorrentado. Quando o mártir de Cristo chegou diante da banca do juiz, sob a estátua que Cômodo erigira, Vitélio perguntou-lhe:
— Ainda persistes em tua loucura? Não obedecerás agora as ordens do imperador, e sacrificarás a Júpiter e a seu filho Hércules?
— Nunca! — respondeu Júlio. — Tu e teu príncipe perecereis igualmente.
— E quem te salvará, e nos fará perecer? — indagou Vitélio, sarcasticamente?
—Jesus Cristo — declarou Júlio, apontando solenemente um dedo ao céu, e acrescentando depois de uma pausa: — Ele, que condena à ruína eterna a ti e ao teu soberano insensato.
Vitélio mandou que o levassem a Petra Scelerata, e o chicoteassem. O corpo do mártir estava exausto, e enquanto os executores o açoitavam brutalmente com pesados azorragues, ele expirou. O vil juiz, querendo desafogar sobre os restos inanimados a ira e a vingança que a morte prematura da vítima deixara insatisfeitas, ordenou que o corpo de Júlio fosse jogado diante da estátua do sol, quase sob os arcos do Coliseu, para que os cães o devorassem, e o povo lhe visse a infâmia.
O que pode esperar a plebe desamparada, quando um julgamento tão terrível cai sobre os próprios senadores?
Guardas foram destacados para vigiar o corpo, a fim de que ninguém o removesse, e uma nota foi fixada na parede do Coliseu, anunciando que ele morrera por não sacrificar ao grande deus que acabara de chegar para viver entre eles. Até parece que anjos velavam sobre o cadáver do servo de Deus: nenhum insulto foi proferido; o povo estremecia, e seguia adiante. Milhares lamentaram a sorte do destemido homem que tivera a coragem de opor-se aos absurdos do cruel imperador. Desprezo e ódio ao deus-tirano, que se gloriava no sangue de vítimas humanas, foi o resultado obtido pela maldade de Vitélio.
Na noite seguinte, enquanto os guardas dormiam, Eusébio e seus companheiros deslizaram furtivamente sob as arcadas do Coliseu, e levando o corpo do mártir, sepultaram-no nas catacumbas de Calepódio, na Via Aurélia. Hoje, parte de seus restos mortais encontram-se na Igreja de Santo Inácio, em Roma.