Os Senadores

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   O  Senado  era  a  maior  instituição  da  Roma  pagã.  Excetuando-se  a  hierarquia  da  Igreja  Católica,  nunca  houve  uma  assembléia  mais  poderosa,  unida,  e duradoura.  Ele  passou  pelas  guerras,  tempestades  e  vicissitudes  de  vinte  e  cinco séculos,  e  ainda  existe.  Levantando   da   obscuridade,   caminhou imperceptivelmente  para  o  poder,  até  que  governou  o  mundo.  Surgiu  de  um bando  de  fugitivos,  escravos  ociosos,  e  ladrões  de  estrada  –  foi  fundado  por Rômulo,  por  volta  de  750  a.C.  Consistia,  a  princípio,  de  cem  homens  dentre  os mais  velhos  e  mais  respeitáveis  da  pequena  colônia  de  exilados  e  escravos,  que  se estabelecera  entre  as  Sete  Colinas;  daí  o  nome  Senado,  ou  assembléia  dos  idosos e  pais.  Foi  aumentado  para  duzentos,  quando  o  roubo  da  Sabina  promoveu  a união  entre  as  duas  tribos.  Sob  o  comando  de  Tarquin,  o  número  cresceu  para trezentos,  e  sob  o  cetro  dos  imperadores,  chegou  a  mil.  O  poder  foi  posto  em  suas mãos.  O  supremo  magistrado,  embora  ostentasse  o  título  de  rei,  era  antes  o comandante  do  exército,  e  presidia  sobre  a  religião  do  Estado.  Era  o  senado  quem declarava  guerra  ou  paz,  e  tratava  com  os  embaixadores  de  outras  nações.  Os senadores  usavam  vestes  diferentes  das  demais  pessoas;  tinham  um  lugar especialmente  designado  para  eles,  no  Coliseu  e  em  todas  as  funções  públicas. Eram  proibidos  de  negociar  e  se  casar  com  pessoas  de  origem  desprezível.  Entre as  mulheres  proibidas  estavam  a  atrizes,  e as  filhas  e  netas  de  atrizes.
   Um  escritor  antigo  fornece  uma  idéia  detalhada  dos  poderes  reservados  ao senado.  Nos  seus  dias  de  glória,  era  a  única  fonte  e  centro  de  poder  e  grandeza  de Roma.  "Nada",  escreve  Políbio,  "podia  entrar  ou  sair  da  tesouraria  sem  o  seu consentimento.  Ele  era  a  mais  elevada  administração  do  Estado.  Julgava  as diferenças  surgidas  entre  os  cidadãos,  ou  entre  as  províncias  submissas  ao Império;  corrigia-os,  ou  defendia-os,  quando  necessário;  alistava  homens  para  o exército,  e  supria-lhes  o  pagamento;  enviava  seus  cônsules  aos  campos  de batalha,  e  os  chamava  de  volta,  à  vontade,  ou  enviava  outros  generais  para  os substituir;  declarava  o  triunfo  e  mensurava  a  glória  do  conquistador;  nenhum monumento  era  erguido  em  memória  de  alguém,  sem  o  seu  consentimento.  Era, finalmente,  a  grande  corte  de  apelação  para  as  nações  da  terra    –  o  único representante  do  povo  romano".
   Se  adicionarmos  ao  seu  ilimitado  poder  legal  a  ascendência  que  os senadores  de  Roma  devem  ter  naturalmente  obtido  de  sua  riqueza,  de  seus méritos  pessoais,  seu  patriotismo  e  sua  união,  poderemos  entender  facilmente como  eles  influenciavam  o  destino  de  tantas  nações.
   Quando  lemos  os  anais  desta  grande  instituição,  ficamos  perplexos  com  a gravidade  de  seus  debates,  e  com  a  coragem  e  independência  de  seus  atos, sempre  combinados  e  dirigidos  pela  prudência  e  a  previsão.  Nenhuma  autoridade era  reconhecida  entre  eles,  senão  a  razão;  em  vez  de  um  espírito  faccioso, ciumento,  e  partidário,  o  que  presidia  sobre  a  assembléia,  e  guiava-lhes  as  ações, era  um  nobre  sentimento  –  o  do  bem  público.  Este  era  o  segredo  de  seu  triunfo  e poder.

•2•

   A  história  do  início  do  senado  acha-se  entretecida  com  a  história  da  própria Roma,  e  ambas  são  inseparáveis.  Mas  enquanto  acompanhamos  o  desenrolar  dos eventos  naquela  era  de  Roma  –  era  do  resplendor  do  Coliseu  –  devemos  lançar  o olhar  sobre  o  papel  do  senado  durante  os  dias  de  perseguição.
   Após  as  convulsões  políticas  que  abalaram  o  Império,  levaram  Cícero  ao exílio,  e  pôs  César  no  comando  dos  negócios  do  Estado,  o  senado  recebeu  um golpe  do  qual  nunca  se  recuperou.  A  forma  do  governo  romano  foi  completamente mudada;  o  povo,  que  vencera  os  aristocratas,  entregou  todos  os  seus  direitos  ao seu  chefe,  e  todo  o  poder  romano  ficou  concentrado  num  só  homem.  César assumiu  o  título  de  ditador  e  imperador,  e  também  os  direitos  do  Supremo Pontífice,  e  a  autoridade  dos  censores  e  dos  pretores.  Assim  ele  controlava  o tesouro  –  tinha  o  direito  de  declarar  guerra  ou  paz  –  comandava  a  disposição  das províncias  e  a  eleição  dos  magistrados.  Sua  ambição  foi  fatal  ao  poder  do  senado, e  embora  os  senadores  continuassem  a  reunir-se,  e  a  sustentar  o  esplendor  de seu  prestígio  anterior,  não  passavam  de  uma  assembléia  política,  um  grande conselho  de  Estado,  que  desfrutava  unicamente  do  poder  que  o  seu  ambicioso chefe  consentia  em  dar-lhes.
   Entretanto,  não  suponha  o  leitor  que  os  senadores  submeteram-se  a  estas  mudanças  sem  murmurar.  Um  espírito  de  inveja  e  indignação  revelava-se  em suas  ações  públicas  e  privadas;  e  o  primeiro  imperador  era  perspicaz  demais  para não  enxergar  a  vingança  lampejando  de  cem  punhais,  dentro  do  próprio  senado. Uma  política  de  reconciliação  apenas  retardou  o  golpe  fatal.  O  imperador  conhecia o  poder  do  senado  através  das  memórias  do  passado,  e  embora  houvesse triunfado  sobre  ele  como  o  ídolo  da  plebe,  não  podia  se  dar  ao  luxo  de  pisar  a nobreza  e  perder  seu  apoio.
   A  sua  política  consistia  em  neutralizar  a  oposição  dos  herdeiros  do  antigo poder  aristocrata,  acrescentando  ao  senado  os  seus  próprios  seguidores  mais devotos.  Assim  fazendo,  logo  subiu  o  número  dos  senadores  para  novecentos; aumentou  em  proporção  o  número  dos  magistrados,  e  preencheu  alguns  dos postos  mais  importantes  com  os  seus  partidários.  Foi  por  este  meio  que  homens das  províncias  de  Etrúria  e  Lucânia,  e  venezianos,  insubrianos  e  outros,  bárbaros e  iletrados,  foram  introduzidos  para  deteriorar  e  corromper  a  grande  instituição patriarcal  da  Cidade  Imperatriz.
   Isto  suscitou  mais  que  a  indignação  do  partido  aristocrata,  e  até  mesmo  o grande  Cícero  resmungou,  e  a  sua  pena  poderosa  acelerou  a  ruína  que  se aproximava.  Suetônio  conta  que  tudo  o  que  se  ouvia  eram  versos  e  canções ridicularizando  os  novos  senadores;  insinuações  de  que  eram  uma  raça  de bárbaros  conquistada,  e  de  que  César  os  fizera  trocar  as  peles  pelo  laticlavo,  a túnica  com  orla  de  púrpura,  usada  pelos  senadores.  No  Pasquim  daquele  tempo (muito  provavelmente  a  mesma  velha  estátua  desfigurada,  que  ainda  se  vê  num dos  ângulos  do  Palácio  Braschi),  eram  fixados  libelos  do  seguinte  teor:  "Não  deixe ninguém  mostrar  aos  estranhos  o  caminho  do  Fórum".
   A  indignação  dos  velhos  patrícios  continuava  a  crescer.  Embora  roubados  e humilhados,  eram  resolutos  e  cheios  de  determinação.  Seu  descontentamento finalmente   rompeu   em  fúria  passional,  e  guiados  pelo  impetuoso  Brutus, decidiram  a  morte  de  César.  Ele  caiu.  Seu  corpo  ficou  sangrando  na  base  da estátua  de  Pompéia,  no  Fórum,  enquanto  os  quarenta  vilões  que  o  haviam assassinado  correram  pelas  ruas,  levando  nas  mãos  os  punhais  ainda  sujos  com o  sangue  do  ditador,  e  gritando:  "Morte  a  todos  os  tiranos!"  Não  obstante,  o  seu triunfo   foi   temporário.  Aquele  grupo  venerável  não  recuperou  seu  poder  e prestígio  pela  violência  e  pela  matança;  não  o  recuperará  agora;  os  decreto  da Providência  são  contra  ele;  ele  pode  existir,  mas  jamais  governará  o  mundo  outra vez.
   A  revolução  dos  Idos  de  Março,  como  é  chamada,  privou  o  mundo  de  seus maiores  homens.  Brutus  orgulhava-se  de  haver  eliminado  um  tirano,  mas  as províncias  choraram  a  morte  de  César.  O  choro  de  luto  e  o  lamento  público  que  se levantou  em  todo  o  Império  foi  a  condenação  dos  assassinos.  Ficou  evidente  para todos  que  não  foi  o  amor  à  liberdade,  nem  o  zelo  pelo  bem-estar  do  Estado  que causou  a  morte  do  imperador,  mas  o  ciúme  e  a  ambição  de  um  grupo  de  cidadãos facciosos.  "Eles  se  autodenominavam  matadores  de  um  tirano",  escreve  Dion Cássio,  um  senador  que  viveu  cerca  de  um  século  após  esses  acontecimentos, "mas  não  eram  mais  que  assassinos  e  homicidas"  (Nº  XLIV,  I).
   César  era  querido  nas  províncias.  Seus  magistrados,  o  exército,  e  mesmo  a maior   parte  do  senado,  lamentou-lhe  a  queda.  O  mundo  exterior  não  se importava  com  a  supremacia  do  senado.  Que  vantagens  tirariam  das  políticas  e das   agitações   do   Fórum   romano?   Enquanto   desfrutavam   da   liberdade, prosperidade,  e  justiça  oferecida  por  seu  chefe  reconhecido,  porque  haveriam  de esposar   a  causa  do  senado?  Ademais,  a  própria  assembléia  caíra  de  sua  integridade  primitiva.  A  sua  afeminação,  sua  parcialidade,  e  o  afastamento  do rigor  e  do  patriotismo  de  sua  antiga  instituição,  angariaram-lhe  desprezo  em  vez de  submissão  e  admiração.  Bem  antes  da  monarquia  dos  césares,  o  grande Cícero  proferiu  estas  palavras  notáveis,  indicando  a  sua  degeneração  moral,  bem como  a  política:  "É  por  causa  de  nossos  vícios,  e  não  por  um  golpe  do  destino, que,  embora  preservemos  o  nome  de  uma  república, há muito perdemos a realidade". "Nostris,  non  casu  aliquo,  republicam  verbo  retinemus,  reipsa  vero  Jam pridem  amisimus".  —  De  Repub,  v.i.
   O  sangue  de  César  foi  derramado  em  vão.  A  facção  anárquica  do  senado nunca  segurou  as  rédeas  do  governo;  os  punhais  que  o  assassinaram  começaram para  o  senado  o  período  mais  terrível  e  desastroso  de  sua  carreira.  Na  guerra civil,  e  nas  convulsões  que  se  seguiram,  eles  não  apenas  perderam  o  último vestígio  de  seu  poder  anterior,  como  se  tornaram  as  vítimas  do  capricho  ou  da vingança  dos  ambiciosos  aspirantes  ao  poder  supremo  do  Império.
   Augusto  assumiu  o  cetro  de  César.  A  sua  reorganização  do  senado  foi  um dos  mais  esplêndidos  feitos  – porquanto  um  dos  mais  difíceis –   de  seu  reinado bem-sucedido.   Por   influência   dele,   quase   duzentos   membros   do   senado renunciaram  ao  cargo  por  não  se  adequarem,  por  conta  de  seu  nascimento  ou falta  de  talento,  à  sua  alta  posição  e  honra.  Ele  aplacou-lhe  as  suspeitas,  e ocultou  a  própria  ambição,  assumindo  o  modesto  título  de  Príncipe  do  Senado. Todavia,  durante  todo  o  tempo  em  que  se  ocupou  destas  reformas,  nunca apareceu  entre  eles  sem  ter  junto  a  si  nove  ou  dez  de  seus  mais  fiéis  adeptos, secretamente   armados;   e   ele   mesmo   levava   sob   a   toga   um   punhal. Prudentemente,  ele  temia  o  ressentimento  dos  senadores.  Onze  anos  depois,  no ano  18  a.C,  ele  completou  a  organização,  e  reduziu-lhes  o  número  para seiscentos,  começando  assim  o  senado  imperial.
   É  desnecessário  seguir  a  nobre  instituição  em  sua  carreira  posterior  de servilismo  e  degradação,  durante  o  reinado  de  sucessivos  imperadores.
   Após  a  abdicação  de  Deoclécio,  e  o  triunfo  de  Constantino,  o  senado debateu-se  em  sua  existência  hereditária.  Seu  nome  foi  arrancado  do  Capitólio  e dos  estandartes  militares:  em  seu  lugar  foi  posto  o  mais  formidável  e  imperecível símbolo  de  redenção.  A  estátua  e  o  altar  de  Vitória,  que  presidia  como  uma deidade   tutelar   sobre   suas   assembléias,   foram   removidos   por   ordem   de Constance,  postos  de  volta  sob  o  governo  do  apóstata  Juliano,  e  finalmente destruídos  pelo  consentimento  unânime  do  próprio  senado.  Apesar  de  muitos entre  eles  ainda  se  apegarem  aos  velhos  rituais  do  paganismo,  eram  sempre dóceis  ao  comando  dos  imperadores;  a
adoração  dos  deuses  do  Capitólio  foi proscrita  no  tempo  de  Teodósio,  e  o  cristianismo,  declarado  a  religião  do  senado  e do  povo  romano.   "Foi  então",  relata  o  sublime  Prudens,  "que  vimos  aqueles veneráveis  pais,  aquelas  luzes  mais  brilhantes  do  mundo,  o  nobre  conselho  de Catos,  lançar  fora  a  insígnia  do  antigo  sacerdócio,  e  humildemente  vestir-se  com o  manto  branco  dos  catecúmenos".

Os Mártires do Coliseu - A. J. O'Reilly Onde as histórias ganham vida. Descobre agora