Os Duzentos e Sessenta Soldados

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Enquanto o ímpio Valeriano estava pagando a pena de seus crimes sob o chicote do vitorioso Sapor, rei da Pérsia, seu filho Galieno, devasso e imprestável, dava continuidade ao reinado de tirania. Sem afeição por seu pai, e sem interesse pelo Império, ele entregou-se aos mais vergonhosos excessos e libertinagens.
Cinco usurpadores levantaram-se quase simultaneamente para arrancar-lhe das mãos as rédeas do Império. Entre eles estava Macriano, cujo perverso conselho levara Valeriano a hostilizar os cristãos, e provocara a terrível retribuição do céu sobre o infortunado imperador. O rival mais bem-sucedido de Galieno foi o soldado Cláudio; no governo de Valeriano, ele passara de tribuno a comandante militar. Seu triunfo sobre os godos tornou-o famoso; prodigalizaram-lhe louvores, erigiram estátuas em seu nome, e ele tornou-se o ídolo do exército. A sua ambição acompanhou os passos de sua fortuna; ele visava o comando supremo.
Cláudio era um homem astucioso, e lançou mão de um estratagema para remover seu rival: escreveu os nomes de alguns dos mais bravos e audaciosos oficiais do exército de Galieno, imitando perfeitamente os caracteres e a caligrafia do imperador. O documento, que pretendia alistar os nomes de quem o tirano tencionava matar, foi enviado por um confidente ao campo de Galieno, que se achava sitiado pelo usurpador Aureolo, em Milão. Ele foi recebido por uma das supostas vítimas, que reuniu os demais à sua volta, e resolveram matar Galieno à noite. Quando escureceu, eles deram um alarme falso, e os soldados foram chamados às armas. Na confusão, o ignóbil imperador teve o corpo trespassado por um dardo, e um soldado partiu-lhe a cabeça em duas partes, com a espada. Cláudio foi declarado imperador por seu próprio exército, derrotou Aureolo, e veio a Roma para mergulhar as mãos no sangue dos cristãos, e manchar o próprio nome com a infâmia eterna.
Seu predecessor era demasiadamente destemperado para ser formidável. A crueldade, o derramamento de sangue e a imolação indiscriminada de vítimas inocentes não são as manchas encontradas na página da história que lhe menciona o nome. A sua impureza, intemperança, e visível tolerância das paixões brutais não lhe permitiram um momento de sobriedade para molestar os cristãos. Não obstante, as velhas leis de perseguição ainda estavam em vigor; havia juízes e governadores que usavam os terríveis decretos para satisfazer caprichos cruéis, e remover aqueles a quem consideravam detestáveis. Muitos martírios foram registrados nas províncias, enquanto em Roma a perseguição transcorria sem os horrores da matança. Os cristãos sofreram, mas não no Coliseu, nem na Petra Scelerata; não eram retalhados com chicotes nodosos, nem lançados em caldeirões de óleo fervente; não eram jogados no Tibre, nem decapitados no terceiro ou sétimo marco miliário. Outra perseguição, uma perseguição mais fatigante, os assolava. Eles eram lançados em prisões repugnantes, acorrentados às galeras, ou forçados a trabalhar como os malfeitores nas florestas e nos poços de areia, nas adjacências da cidade.
Assim, quando Cláudio entrou em Roma, já tinha as vítimas preparadas para si. Seu curto e sangrento reinado começou com uma das cenas mais cruéis e dolorosas encontradas nos contos de horror do Coliseu.
Nos Atos dos nobres persas Mário, Marta e seus filhos, apresentados nos Bolandistas, e datados em 9 de janeiro (e 1° de março), lemos o seguinte:
"Ao mesmo tempo, Cláudio ordenou que se algum cristão fosse encontrado, na prisão ou livre, deveria ser punido sem julgamento. Quando esta lei foi promulgada, foram detidos na Via Salária duzentos e sessenta cristãos que, pelo nome de Cristo, foram condenados a trabalhar nos areeiros. Eles foram confinados no depósito de um oleiro, e depois levados ao anfiteatro para serem assassinados com flechas. Quando isto aconteceu, Mário e sua esposa Marta, juntamente com os filhos Audifax e Abacuque, passaram por grande aflição. Foram com o abençoado sacerdote João ao lugar onde eles haviam sido assassinados, e descobriram que tinham tocado fogo nos corpos. Começaram a removê-los e a sepultá-los com unguentos e especiarias, pois eram pessoas abastadas. A quantos puderam resgatar, enterraram numa cripta da Via Salariana, perto de Clivum Cucumeris. Sepultaram também um certo tribuno de Cláudio, chamado Blasto, e passaram muitos dias naquele lugar, com João, em jejum e oração".
A imaginação deve completar os detalhes horrendos deste massacre. De acordo com os Atos, eles foram mortos a flechadas, no Coliseu. A brutal soldadesca teve permissão para ocupar o lugar dos espectadores, e atirar flechas em seus companheiros, forçados a entrar na arena. Os arqueiros eram sempre os mais selvagens e violentos dentre os militares; os executores públicos eram geralmente escolhidos nesta unidade. Seus hábitos destemperados, sua aparência rude e bruta, e a sua falta de humanidade, faziam-nos odiados pelos próprios pagãos. Eles eram instrumentos de tortura nas mãos dos tiranos, para afligir os irmãos.
É doloroso contemplar estes bravos soldados, desarmados, amarrados e silenciosos, esperando que os dardos fatais os atravessassem. Em vão procuramos nos horrores dos naufrágios ou dos campos de batalha por algo que pudéssemos comparar a esta cena. No primeiro, os terrores são mais na antecipação que na realidade; a onda que engolfa sua vítima esconde até mesmo a agonia da morte; um grito ocasional de uma vítima debatendo-se rompe da tempestade; passado um momento, porém, tudo está acabado; nenhum vestígio do naufrágio é visto: os vagalhões rolam, e o vento uiva, como antes. Mas não assim na cena diante de nós, no Coliseu. Durante horas, os suspiros dos moribundos misturam-se às risadas dos arqueiros. Um grupo está de joelhos, mãos postas em oração; o zumbido das flechas voando é o seu dobre fúnebre. Eles caem um a um. Dois amigos agarram-se num último abraço, e caem juntos. O sangue de ambos mistura-se na mesma torrente. Nunca houve uma batalha maior vencida pelo bravo. Sua coragem foi um desafio à morte; o espólio de sua vitória, a maior riqueza já obtida.
Seriam esses pobres soldados estranhos a todos os laços de afeto e paixões da alma? Certamente que não. A graça de sofrer o martírio não significa o entorpecimento das sensibilidades humanas; as suas afeições, seus medos e dores são sentidos tão fortemente quanto no coração do soldado moribundo no campo de batalha. O lar, a família e os amigos eram amados pelo mártir, mas o bálsamo sobrenatural da graça amortecia a pontada da separação. Os pais idosos, o cônjuge amado, e os filhos queridos eram alegremente entregues à Providência paternal, que abençoa com o mesmo afago com que pune. Sem um murmúrio, sem um sinal de pesar, eles aguardam a coroa.
Dos horrores deste massacre, somos levados em espírito a outra cena, brilhante e consoladora. Podemos imaginar os espíritos dos soldados agonizantes elevando-se acima da abóbada grandiosa do anfiteatro, ostentando coroas de louro imarcescível; suas almas livres flutuam na alegria eternal. Quando a grande ruína é iluminada numa noite de verão por milhares de pirilampos, como estrelas flutuantes no céu escuro, vêm-nos à mente os anjos brilhantes enviados do céu para saudar aqueles soldados martirizados. É terrível o contraste entre a escuridão do massacre no mundo material, e o júbilo que ele causa nas regiões da felicidade verdadeira. Séculos de alegria imutável têm passado sobre aqueles heróis do Coliseu; curta foi a sua batalha; eterna a sua recompensa. As aflições terrenas são momentâneas; no além-túmulo, tornam-se manchas pequeninas no horizonte longínquo do passado. Os tormentos cruciantes do martírio, que a princípio fazem estremecer, são transições instantâneas para a alegria eterna. Não é, pois, com sentimentos de pena ou indignação, que afastamos desta cena de sangue o nosso pensamento; levantamos o olhar de nossa pequenez para elevá-lo à brilhante galáxia dos espíritos martirizados, nas regiões celestiais, e, viajores que somos neste vale de lágrimas, desejamos juntar-nos a eles em seu incessante hino de gratidão a Deus, por sua misericórdia e bondade.

Os Mártires do Coliseu - A. J. O'Reilly Where stories live. Discover now