Inácio

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    Após a sua gloriosa transfiguração no Tabor, o Senhor Jesus retirou-se para a Galiléia com os discípulos. Havendo prenunciado sua paixão e morte, e os preparado para as tremendas cenas que se desenrolariam em alguns dias, Ele iniciou a sua última e memorável jornada a Jerusalém. Os discípulos seguiam-no a curta distância. Na estrada de Cafarnaum, entraram a discutir entre si qual deles seria o mais importante. Suas mentes ainda não estavam iluminadas pelo Santo Espírito, e eles ainda ignoravam as sublimes virtudes da moralidade cristā.
    Jesus, porém, sabia o que se passava entre eles. Ao chegarem a Cafarnaum, Ele entrou numa casa, fez os discípulos sentarem-se à sua volta, e pôs-se a ensinar-lhes aquelas maravlhosas lições de humildade, que são a fundação de toda real grandeza. Irradiando amor e bondade no semblante, Ele indagou: "De que é que vocês vinham tratando pelo caminho? Mas eles ficaram quietos".
    Um raio de luz penetrou-lhes o coração, enquanto as palavras de
Jesus lhes penetravam os ouvidos, e um rubor foi o reconhecimento de
seu orgulho. Perto do Senhor havia uma bela criança - um menininho de
olhos brilhantes, de quatro ou cinco anos, com os cabelos dourados caindo em cachos pelos ombros. Era o símbolo de tudo o é que belo e inocente. Jesus chamou o menino, e imprimindo-he um beijo na testa, colocou-o diante dos discípulos.Então, no doce tom de sua voz celeste, advertiu-os: "Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos fizerdes como crianças, de modo algum entrareis no Reino dos céus" (Mt 18.3).
    Segundo a tradição, aquele menino era Inácio! O garotinho abraçado por Cristo, e posto em sua inocência como modelo de tudo o que é verdadeiramente grande, seria, nos anos vindouros, o bispo de Antioquia, que foi devorado por bestas feras no Coliseu.
    Na verdade, nada se sabe da infância e juventude de Inácio. Ele aparece nas páginas da história já como o bispo de Antioquia, que nessa ocasião era uma das maiores cidades de Roma. A circunstáncia acima descrita, embora mencionada por alguns escritores antigos, não possui confirmação histórica além da tradição. Não a tomamos como certa, mas a apresentamos como uma introdução interessante aos Atos desse grande mártir, que são, indubitavelmente, genuínos.
    Inácio fora discípulo dos apóstolos Pedro e João. Aprendera desses mestres competentes a sublime ciência do amor de Deus, que fez dele um dos pilares e ornamentos da lgreja Primitiva. Depois dos apóstolos, ele foi um dos homens mais notáveis da igreja; seus contemporâneos, e os pais que viveram nos três séculos seguintes, mencionam-lhe o nome com a maior reverência. Policarpo e Crisóstomo fizeram dele o objeto de seu mais eloqüente panegírico. Após uma vida de mais de cinqüenta anos no episcopado de Antioquia, aprouve ao
Todo-Poderoso chamá-lo a receber sua coroa, por uma morte que deveria ser uma glória e um modelo para a Igreja. A história de seus labores e virtudes não foi escrita, mas todas as particularidades de sua morte foram registradas por testemunhas oculares, e distribuída em várias igrejas; por isto seus Atos são os mais autênticos na história do passado. O documento original, escrito em grego, acha-se preservado, e foi publicado por Ruinart, em Paris, em 1690. A cena de seu martírio começa, de acordo com a melhor autoridade, no ano 107 de Nosso Senhor. Trajano tinha nas mãos o cetro dos césares, e Evaristo sentava-se na cadeira do papa. A tempestade que atacara a Igreja durante o reinado de Domiciano fora acalmada. Relatam os historiadores que Trajano não amava naturalmente o derramamento de sangue, e possuía um sentimento de humanidade mais nobre que todos os imperadores que o precederam; era, no entanto, covarde e escravo da opinião pública. Ele reprimia os próprios sentimentos para favorecer o gosto brutal da plebe. A fim de ganhar popularidade, e sob o pretexto de devoção aos deuses do Império, dava continuidade, de tempos em tempos, às horríveis cenas de perseguição aos inofensivos cristãos. Inácio foi uma de suas vítimas.
    No oitavo ano de seu reinado, Trajano obteve uma gloriosa Vitória sobre Decébalo, o rei dos dácios, e anexou todo o seu teritório ao Império Romano. No ano seguinte, asentou uma expedição contra os partos e os armênios, aliados dos dácios. Chegando a Antioquia, ameaçou com as mais severas punições todos aqueles que não sacrificavam aos deuses. Os labores e as pregações do venerável bispo desta cidade fora tão coroado de sucesso, que a igreja forescera, e deixara de ser uma desprezível comunidade de uns poucos indivíduos. Os pagãos viam com maus olhos a igreja crescendo à sua volta, e aproveitaram a presença do imperador para pedir
a sua extinção. "0 magnânimo campeão de Jesus Cristo" dizem os Atos de Inácio, "receando que sua igreja se transformasse num cenário de massacre, voluntariamente entregou-se em suas mãos, para que saciassem nele a sua fúria, salvando assim o rebanho".
    Ele foi imediatamente conduzido à presença do imperador, e acusado de ser o cabeça e promotor do cristianismo na cidade. Trajano, assumindo um tom arrogante e desdenhoso, dirigiu-se ao idoso bispo, que se mantinha destemido perante ele, com estas palavras: - Quem és tu, espírito ímpio e mau, que te atreve não somente a transgredir nossas ordens, mas também a aplicar-te em carregar outros contigo para um fim miserável?
    Meigamente, Inácio replicou: - Os espíritos ímpios e perniciosos pertencem ao Inferno; eles nada têm a ver com o cristianismo. Tu não podes chamar-me de ímpio e mau, quando levo no coração o Deus verdadeiro. Os demônios tremem à simples presença dos servos do Deus a quem adoramos. Eu tenho Jesus Cristo, o Senhor universal e celestial, e Rei dos reis. Pelo seu poder, posso pisar todo o poder dos espíritos infernais.
    -E quem é que possui e carrega seu Deus no coraçãao?- indagou Trajano.
    - Todos os que crêem no Senhor Jesus Cristo, e o servem fielmente - foi a resposta daquele homem santo.
    -Então não acreditas que também carregamos dentro de nós os nossos deuses imortas? Não vês como eles nos favorecem com o seu auxílio, e que grande e gloriosa vitória obtivemos sobre os nossos inimigos?
-Vós estais enganados ao chamar de deuses aquelas coisas que adorais - replicou Inácio, majestosamente. -Eles são espírtos amaldiçoados, são os demônios. O Deus verdadeiro é apenas um, e foi Ele quem criou os céus, a terra, e o mar, e tudo o que existe. E apenas um é Jesus Cristo, o Filho primogênito do Deus Altíssimo, e a Ele eu oro humildemente, para levar-me um dia à possessão do seu reino eterno.
    -Quem é este Jesus Cristo? Não é Ele que foi posto à morte por Pôncio Pilatos?
    -É dele que eu falo - volveu Inácio.-  Ele, que foi cravado na cruz, que aniquilou o meu pecado e o inventor do pecado, e que, pela sua morte, pôs sob os pés daqueles que devotamente o levam no coração todo o poder e malícia de demônios.
-Então carregas dentro de ti este Jesus crucificado? -Perguntou o imperador com um sorriso sarcástico.
    - Assim é - afirmou lnácio. - Porque Ele nos diz em sua santa Escritura: "Neles habitarei e andarei entre eles" (2 Co 6.16).
    Por um momento, Trajano silenciou; pensamentos conflitantes passaram-lhe pela mente. Estava ansioso para ouvir mais sobre a religião dos cristãos, e tocado pela venerável aparência do servo de Cristo, esteve para mandá-lo de volta ao seu povo com uma leve reprimenda, mas o demônio do orgulho e da infidelidade levantou-se de um salto em seu coração, e recordou-lhe que qualquer parcialidade para com a seita odiada seria um sinal de fraqueza, uma perda de popularidade, e uma falta de lealdade aos deuses. Ademais, a hesitação trairia o falso zelo de seu coração hipócrita, então, sentando-se no trono, pronunciou a sentença contra o bispo de Antioquia:
-Ordenamos que Inácio, que afirma  carregar consigo o Jesus crucificado, seja levado em cadeias à grande cidade de Roma, e em meio aos jogos do anfiteatro, como um prazeroso espetáculo ao povo  romano, seja dado em alimento às bestas feras.
   Quando Inácio ouviu sua sentença, caiu de joelhos, e erguendo os braços ao céu, bradou num êxtase de alegria: - Oh, Senhor, agradeço-te haver-me honrado com o mais precioso sinal da tua caridade, e permitido que eu seja acorrentado por teu amor, como foi o apóstolo Paulo.
   Ele permaneceu na mesma posição, os braços levantados, os olhos fixos no céu; parecia haver tido um vislumbre daquela inefável alegria que tão ardentemente desejava, e que logo desfrutaria. Foi  arrancado de seu devaneio pelas garras de um soldado que agarrou-lhe a frágil mão, e a prendeu numa algema de criminoso. Seu crime foi "carregar dentro de si Jesus crucificado". Ele não ofereceu resistência; cheio de alegria, e orando por seu pobre rebanho, foi com os guardas para uma das celas da prisão pública onde aguardaria a partida para Roma.
   Uma multidão agrupara-se no pátio do Palácio do Governo, onde residia o Imperador. Quando viram um venerável bispo algemado e condenado à morte, um murmúrio de compaixão rompeu de cada lábio; havia muita gente com lágrimas nos olhos, e no peito um soluço reprimido. Eram cristãos assistindo o seu amado bispo e pai ser arrastado para uma morte ignominiosa.
   João crisóstomo reflete com muita eloquência e piedade sobre a razão de Inácio haver sido levado a Roma. Os mártires eram geralmente mandados do tribunal para o cadafalso, e frequentemente tornavam-se vítimas da ira impotente dos tiranos, e eram torturados e postos à morte na própria corte de justiça. Trajano, porém, não era homem de disposição brutal, e teria suspendido a perseguição contra os cristãos, não fosse o temor da indignação popular. Quando ordenou que o velho bispo fosse levado a Roma, e exposto às feras perante dezenas de milhares de espectadores, foi para que seu Império inteiro pudesse louvar-lhe o zelo a serviço dos deuses, e o povo fosse dissuadido de abraçar o cristianismo ao testemunhar a terrível sorte de seus líderes. Entretanto, a divina Providência, que pode tirar o bem das más ações humanas, destinou essa jornada à edificação da igreja e à salvação de inúmeras almas. A constância, a piedade, e eloquência do mártir em seu caminho para a morte espalharam amplamente a verdade da lei divina; ele despejou de seu coração o fogo do amor que queimava dentro de si. Por onde ele passava, os cristãos eram animados a um novo fervor, e muitos infiéis reconheceram no respeitável prelado um reflexo da divindade do evangelho que ele pregava; abjurando os falsos deuses do paganismo, tornaram-se filhos de Deus.
   Durante sua viagem a Roma, a sua felicidade e a sua paz de espírito foram além de qualquer descrição. A cada dia crescia o seu desejo pelo martírio. Ele foi levado de Antioquia a Selêucia, e lá embarcou para Esmirna. Aportaram seguramente após longa e penosa viagem marítima, e Inácio imediatamente empenhou-se para ter um encontro com o bispo Policarpo, seu condiscípulo de João. Pelo esforço dos cristãos que o acompanharam, e que provavelmente subornaram os guardas, foi-lhe dado este privilégio, e ele passou alguns dias com Policarpo.
   Os estudiosos da história eclesiástica acharão, talvez, à primeira vista, alguma dificuldade em trazer para a mesma página os notáveis nomes de João, Inácio e Policarpo. João foi o discípulo amado, que reclinou-se no peito do Senhor; Inácio foi martirizado no ano 107; e quanto a Policarpo, Supoe-se que sofreu o martírio no final de 167. Inácio exerceu o bispado antes que Policarpo houvesse nascido; contudo, ambos foram discípulos de João. Estes fatos são facilmente conciliados: João viveu até a idade de 101 anos. Ele consagrou Policarpo ao bispado de Esmirna por volta do ano 90 de Nosso Senhor, antes de ter as misteriosas visões do Apocalipse, na ilha de Patmos. Viveu alguns anos na Ásia Menor, e deve ter estado
frequentemente na cidade de Antioquia, quando Inácio era o seu bispo. Além disso, no primeiro século, aqueles que podiam consultar os apóstolos por cartas, ou entrevista, sobre as dúvidas que surgiam acerca dos discípulos ou dos ensinamentos da Igreja, eram chamados discípulos desses apóstolos. Assim sendo, Inácio e Policarpo foram condiscípulos de João.
   Da residência de Policarpo, Inácio escreveu algumas cartas maravilhosas e sublimes, solicitando aos cristãos de diferentes igrejas, especialmente de Roma, que não Ihe impedisse o martírio. Não que os cristãos fossem acostumados a resgatar seus mártires das mãos dos tiranos por meio da força física, mas Inácio bem sabia que eles possuíam armas mais poderosas que aquelas ostentadas pelos exércitos nas batalhas: era a invisível, irresistível, e poderosa arma da oração. Por ela, a ira dos tiranos era desviada, e a morte, frustrada. E Inácio suplicou-lhes, com todo o fervor de seu coração, que o deixassem receber sua coroa, e partir agora, em sua idade avançada, de uma enfadonha vida de inquéritos judiciais para a bem-aventurança inefável do reino celestial. Os cristãos consentiram, e o mártir ganhou sua coroa.
   "Obtive do Deus Todo-Poderoso", escreveu ele em sua carta aos romanos, "O que há longo tempo venho desejando: ir ver-vos, a vós. verdadeiros servos de Deus; e mais que isto, espero alcançar sua misericórdia. Vou a Vós algemado pelo amor de Jesus Cristo, e algemado, espero chegar logo à vossa cidade para receber vosso abraço e despedidas para o fim. As coisas começaram de modo auspicioso, e eu oro sinceramente para que o Senhor remova todo impedimento ou atraso para o glorioso fim que Ele parece me haver destinado. Mas, oh! Um medo terrível arrefece-me a esperança, e vós, meus irmãos, sois a causa deste temor. Temo que a vossa caridade se interponha entre mim e a minha coroa. Se vós desejásseis impedir-me de receber a coroa do martírio, ser-vos-ia fácil fazê-lo. Mas que tristeza e dor seria para mim essa bondade que me privaria da oportunidade de sacrificar a minha vida - oportunidade que talvez eu nunca mais tivesse. Permitindo que eu me vá sossegadamente ao meu fim, vós me ajudais naquilo que me é mais caro. Se, todavia, em vossa caridade mal orientada, quisésseis salvar-me, estaríeis-vos pondo como os mais cruéis inimigos no próprio portal do céu, e arremessando-me de volta ao profundo e tempestuoso mar da vida, para ser novamente atirado de um lado para outro em seus vagalhoes de aflição.
 

Os Mártires do Coliseu - A. J. O'Reilly Where stories live. Discover now