Ainda temos, na história de Roma, outro caso extraordinário de um pequeno menino, filho de um senador, exposto às bestas feras do Coliseu. Idade, condição, ou sexo não eram salvaguarda contra a crueldade e a tirania. Hoje, nos hipódromos de Londres e Paris, as pessoas divertem-se vendo meninos realizar proezas de agilidade e destreza, saltando e fazendo acrobacias, como se seus corpos fossem de borracha, desafiando a lei da gravidade, e voando no ar. Gritos e aplausos saúdam os jovens ginastas, quando eles se retiram com uma graciosa inclinação.
O Coliseu também tinha seus jovens prodígios. Não que eles fossem treinados para divertir os romanos com surpreendentes façanhas na corda bamba, ou dando cambalhotas no ar; eram, isto sim, lançados na arena a fim de serem devorados pelas feras, para deleite da turba insensível. Sua coragem, habilidade e sucesso vinham de uma ordem superior à capacidade física; vinham do céu. Sua recompensa não era o salário miserável de um empregador, nem as ovações da audiência admirada; era a vida eterna dada por Deus.
Evoquemos um desses emocionantes episódios do Coliseu.
Um estranho acidente pusera os irmãos Carino e Numeriano à frente dos negócios. No ano 283, seu pai, Carus, partira numa expedição contra os persas. Ele era um soldado rude e bem-sucedido com as armas. A guerra civil enfraquecera o leste agitado, e Carus penetrou facilmente o centro do território inimigo. Havendo derrotado a Selêucia, e tomado posse de Ctesiphon acampou próximo ao rio Tigre. É estranho, mas havia uma ordem dos oráculos dizendo que não era para os exércitos romanos passar tão perto assim do território persa. Não nos deteremos a examinar a origem desta superstição, mas o fato é que desde o primeiro dia do acampamento, eles quase pereceram totalmente numa tempestade.
Uma noite repentina escureceu o céu, e um raio caiu no meio do acampamento, matando a muitos, e ateando fogo em tudo. Entre as vítimas da tempestade estava o imperador Carus. Em meio a confusão do escuro e o ruído dos trovões, a sua tenda foi vista queimando como uma imensa fogueira, e os soldados corriam de um lado para outro, gritando: — O imperador está morto!
Seus dois filhos, Carino e Numeriano, foram declarados imperadores. O primeiro ficou encarregado do oeste, e o segundo tomou o controle do leste.
Carino teve um reinado curto, porém cruel e sanguinolento. Ele nada tinha a ver com o significado de seu nome; a história o estigmatiza com brutalidade e ignorância. Não que ele adotasse um sistema uniforme de perseguição, mas usava a espada contra os cristãos movido pelo capricho e pela moda. Ele tinha amigo entre os cristãos, e talvez preferisse tolerar a crueldade de seus oficiais tirânicos a infligi-la ele próprio. Contudo, era um anjo de misericórdia, se comparado ao demônio que o sucedeu na terrível guerra contra o Crucificado. O evento que livrou o mundo do imperador Carino entregou as rédeas do governo a Deocleciano, o pior e mais brutal perseguidor da Igreja. Sob o comando de Numeriano e Carino, inumeráveis mártires foram enviados ao céu. Entre eles, o bravo jovem Marino – um dos santos mortos no Coliseu.
Marino era uma criança de aproximadamente dez anos. Quando se descobriu que ele era cristão, foi agarrado, trazido perante Marciano, o prefeito, açoitado, e lançado ao cárcere.
Em rápidas frases como estas, os Atos dão-nos a preliminar da história do jovem mártir. Mas elas contam o suficiente para preencher volumes. O que não deve ter sido o treinamento desta criança! O que não deve ter sido a inocência pura de sua alma imaculada! A fantasia leva-nos através do lapso dos séculos, e imaginamo-nos sentados no Fórum de mármore da poderosa cidade. A multidão avizinha-se, e alguns soldados conduzem rudemente um belo menino à corte do prefeito. Pesadas cadeias magoam-lhe as mãos, e a larga faixa dourada à volta de seu laticlavo púrpura revela que ele é filho de um senador. Que crime terá ele cometido? Poderia alguém tão jovem e bonito ser um homicida? Um murmúrio percorre a multidão sempre crescente: Ele é um cristão.
Entram no edifício onde o prefeito tinha o seu tribunal (provavelmente o Templo da Terra). Não se ouve uma queixa do jovem prisioneiro – nenhum medo infantil – nenhum soluço. Bravo e destemido, o pequeno seguidor de Cristo mantém-se ereto diante do tirano. De onde essa eloqüência, essa profundidade de erudição e pensamento, o som angelical de sua voz? Notem o auxílio sobrenatural prometido àqueles que são levados diante dos príncipes e tiranos. Observem a "sabedoria perfeita nos lábios do inocente".
O juiz está confuso – silenciado por um garoto. Ele desafoga sua raiva impotente ordenando que Marino seja fustigado. Os lictores brutos e cruéis arrancam-lhe a pequena túnica, e logo seus ombros brancos e lisos tornam-se vermelhos e azulados com as escoriações da chibata. Não há choro nem movimento, exceto o choque convulsivo, que a cada lambada dolorosa, percorre-lhe a frágil estrutura.
— Tu irás sacrificar? — ecoa a pergunta pelo salão, a cada intervalo.
A resposta é um baixo e doce murmúrio do nome de Jesus. Frustrado e enraivecido, ordena que o menino seja lançado à prisão, enquanto prepara algum mecanismo infernal de tortura, capaz de abalar a constância do menino.
Pobre Marino! Sofrendo as dores do açoite, ele passa a noite na prisão escura; nenhum curativo para as suas feridas; não há uma gota d'água para a sua língua febril. Ele estava acostumado a um belo quarto e uma cama de plumas; agora, seus ossos doloridos estendem-se nas pedras úmidas e frias do assoalho. Pensava ele na mãe e nos colegas? Fantasiava como menino os fantasmas do medo? O sofrimento e temor o faziam duvidar de Deus? Não. Sabe que os anjos de Deus estão ao seu redor. Seu coração está iluminado e confiante. A sua alegria interior absorve as sensibilidades da carne, e o faz esquecer-se da dor. Nasce o sol da manhã. Em seu apogeu, ele testemunhará a derrota do poder das trevas e o triunfo do filho do senador.
O juiz já tomou assento, e Marino foi trazido perante ele. A roda, o fogo, e os demais instrumentos de tortura já estão prontos. O pequeno mártir olha aquilo tudo; sabe que foram preparados para ele. No entanto, não está assustado. Apesar de jovem na idade, é maduro nas sublimes lições do evangelho. Está preparado para morrer por Cristo.
Percebendo que o menino ainda está inabalável em sua resolução, o malvado juiz ordena que seja estirado na roda. Mas observem, o Deus Todo-poderoso não permitirá que seu servo puro e inocente seja desconjuntado ou rasgado pela brutalidade dos pagãos. Mal os executores lhe estiraram o corpo na máquina, e começaram a girar as polias para esticar as cordas, o medonho instrumento foi atingido por um raio, e rompeu-se em mil fragmentos. Os lictores e os curiosos que se achavam muito perto caíram. Marino, porém, levantou-se ileso no meio dos cavacos. Com um dedo, ele apontava os destroços do instrumento de tortura, com outro, apontava o céu, indicando que Jesus é o escudo e a força dos oprimidos.
O milagre, em vez de aterrorizar e converter o impiedoso Marciano, deixou-o mais ansioso para tirar a vida do menino. No entanto, uma vez mais ele seria malsucedido em sua crueldade. Mandou que Marino fosse posto num grande caldeirão, com fogo em baixo. Para o menino foi o mesmo que deitar num leio de rosas, e o calor intenso, que avermelhava o ferro, foi para ele uma brisa fresca, cheirando a orvalho.
Vendo que de nada adiantara, o tirano mandou que o pusessem num forno rubro de calor, e ali o mantivessem até o dia seguinte. Mas Deus protegeu e confortou Marino. Na manhã seguinte, ao abrirem o forno esperando vê-lo transformado em carvão e cinzas, encontraram-no de mãos postas em oração, e cantando hinos de louvor a Deus. Quando deram a notícia a Marciano, ele sapateou de raiva, e ordenou que o menino fosse jogado às feras, no Coliseu. Que os leões famintos dessem cabo daquela criança enfadonha. Novamente, porém, o poder de Deus seria mostrado através da vítima inocente e vulnerável, e Ele, que reina do alto haveria de rir das maquinações de seus inimigos.
No Coliseu, um leão foi solto primeiro. Ele correu para a criança trêmula, mas deitando-se à sua frente, parecia reverenciá-la. Depois, pondo-se de pé, pousou uma grande pata no ombro do garoto, e começou a lamber-lhe a face. Soltaram um leopardo, e ele também veio lamber-lhe os pés. Então foi a vez da fêmea do leopardo e de um tigre. Os animais pareciam competir entre si, na demonstração de afeto ao mártir. O povo gritava. Os tratadores fizeram de tudo para irritar as feras, mas tiveram de fugir da arena porque elas ameaçaram virar-se contra eles.
Ocasionalmente, o leão e o tigre encaminhavam-se para a ala onde estava Marciano, e olhando em sua direção, rosnavam enraivecidos. Depois voltavam correndo ao centro da arena, e prodigalizavam afagos ao menino cristão. Marino falava com eles e dava-lhes tapinhas, como se fossem animais de estimação criados em sua casa.
O Coliseu ressoava com os gritos de "Libertas", "Maleficium", "Mors", "Ut quid plus?", e expressões semelhantes a estas, familiares à multidão do anfiteatro.
O prefeito, confuso e derrotado, não sabia o que fazer. Enquanto o tumulto aumentava no meio do populacho, ele mandou que os lictores removessem o mártir, mas eles recusaram entrar na arena enquanto as feras lá estivessem. Até os tratadores sabiam que elas os fariam em pedaços, se eles se metessem com o garoto. Finalmente, fizeram sinais para que Marino saísse de lá, e a nobre criança guiou os animais aos seus covis. Assim que os pesados portões se fecharam sobre as bestas, os lictores apressaram-se em algemar as mãos do menino indefeso, e levá-lo embora como se fora um criminoso infame.
A nossa história de milagre, triunfo, e crueldade, ainda não terminou. Outros milagres ainda trariam honras ao nome de Deus. Toda a Roma deveria testemunhá-los, uma vez mais, como prova da verdade divina do cristianismo. Após a preservação milagrosa de Marino no Coliseu, cresceu o interesse público por seu destino.
Marciano, temendo que a simpatia do povo lhe suscitasse também a indignação contra ele, empenhou-se em convencê-los de que era justiça a sua crueldade contra o menino. Ordenou que ele fosse levado à estátua de Serapis, a fim de oferecer-lhe sacrifício. Milhares de pessoas arrojaram-se do Coliseu para lá; todos queriam ver de perto o pequeno herói, e apressaram-se em direção à estátua do deus pagão, erigida na vizinhança do anfiteatro. Uma imensa multidão cercou o ídolo; todos estavam ansiosos para ver o fim do filho do senador. Suas feições bonitas e amáveis, sua juventude, sua modéstia e dignidade, haviam despertado a admiração geral. Alguns cristãos, misturados à multidão, quase choravam audívelmente de alegria, ao ver a constância do pequeno mártir.
Chegando à estátua, Marino ficou no meio de um círculo formado pelos soldados. Uma grande caçoula de carvão queimava ao pé do ídolo, e o sumo sacerdote do Capitólio, de pé ali perto, segurava numa das mãos o tripé, e na outra, uma vasilha de incenso. O silêncio foi exigido com um grito, e Marciano, num tom alto e áspero, mandou que o menino oferecesse sacrifício.
Vejam! Marino está se ajoelhando! Teria ele consentido em orar ao ídolo inconsciente? Estaria com medo de novas provações? Ou a graça de Deus o teria abandonado?
Um silêncio sem fôlego reina à volta. O prefeito acredita que, finalmente, subjugou o espírito altivo do pequeno cristão. Tolo pensamento! Marino está orando ao Deus verdadeiro. Sua oração já atravessou as nuvens do firmamento; sua resposta é o disparo do relâmpago que atingiu a imagem de Serapis. O povo viu o deus desfazer-se em pedaços aos pés do menino. Alguns fugiram aterrorizados. Outros, de espantados que estavam, não saíram do lugar. E muitos deles bradavam: — Grande é o Deus dos cristãos!
Nesse dia, muita gente conheceu a luz de Cristo, porque Deus usa as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes.
Marciano mandou que removessem o mártir ao presídio. O Todo-Poderoso ouviu o pedido do menino para livrá-lo das mãos do inimigo, e preparou para ele uma coroa eterna. O prefeito tentou novamente tirar a vida do pequeno servo de Deus, ordenando que fosse decapitado. Dessa vez, conseguiu seu intento. No dia 26 de dezembro, de 284, a alma pura do corajoso Marino alçou vôo para o reino da bem-aventurança.
O malvado prefeito ordenou que o corpo de Marino fosse jogado com os cadáveres de criminosos, escravos, e gladiadores assassinados no Coliseu. À noite, alguns cristãos zelosos foram buscá-lo, mas toparam com os guardas que vigiavam o local. Por providência divina, uma tempestade com raios e trovoadas assustou os guardas, fazendo-os fugir dali. E os cristãos transportaram para as catacumbas o corpo do pequeno mártir.
Próximo ao Coliseu, sobre as ruínas do Templo de Vênus e Roma, erigido pelo extravagante Adriano, foi construída, na Idade Média, uma bela igreja, hoje conhecida como a igreja de Santa France de Roma. Nesta pequena igreja, estão hoje preservados os restos mortais de Marino, o pequeno mártir de Cristo.
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Os Mártires do Coliseu - A. J. O'Reilly
RandomA história da famosa arena de Roma, onde milhares de cristãos primitivos encontraram um fim cruel e sangrento. porém muito mais que isto, é a história de famosos e santos heróis de Cristo, que aceitaram de bom grado a morte, testemunhando a verdade...