Eles deram a volta em Pandora, passando por detrás do pequeno centro comercial para alcançar um dos portões do grande muro de pedra para sair da cidade. Ele era velho e enferrujado e a grama ao seu redor estava alta, o que fez Rebeca acreditar que eles eram os primeiros a passar por ali em alguns anos. Seguiram por uma estradinha estreita de cascalho, os muros e os pilares reluzentes de Esdom ficando cada vez mais distantes enquanto iam para dentro da floresta, que se alinhava em ambos os lados da estrada, impedindo que qualquer coisa além de árvores, troncos e arbustos pudesse ser vista.
– Eu realmente não entendo – resmungou Rebeca – Oen criou uma barreira para proteger a Terra, criou super-humanos e uma pedra mágica, mas não pode criar um único veículo que funcionasse aqui? Não que eu desgoste do Bolacha – ela acrescentou, repentinamente apavorada com a ideia de que Oreo pudesse ser tão sensível quanto Duquesa – Mas um carro anti-barreira seria bem útil.
– Possivelmente – disse Noah – Haviam preocupações maiores do que meios de transporte na época.
Ele estava falando daquele jeito que fazia com que cada sílaba soasse pior do que um xingamento. Rebeca detestava quando ele falava assim.
– Isso me fez lembrar de uma coisa – ela disse, ignorando-o. – Você sabe andar de táxi.
– Você jura?
– O que eu quero dizer – ela continuou, respirando fundo para não gritar com ele. – É que você sabe andar em Nova York, conhece as ruas e os lugares, e é literalmente de outro mundo. Como consegue?
– Realmente acha que tudo o que aprendemos em Pandora tem haver com exterminar e matar? – ele arquejou, fazendo Rebeca sentir a risada presa em seu peito através de suas costas. – Nós somos mandados para todos os cantos da Terra para cumprir nossas missões. Obviamente temos que saber nos movimentar e localizar no máximo de locais possíveis.
– Mas você parece conhecer Nova York tão bem...
– Isso é culpa de Neko – ele disse. – Nós tínhamos um acordo algum tempo atrás: Eu buscava e levava coisas para ele e, em troca, ele me mantinha informado sobre uma pessoa.
Rebeca notou a voz dele escurecendo, perdendo qualquer emoção ou sentimento.
– Que pessoa?
– Damion – disse Noah, respirando lentamente. – Eu estava convencido de que tinha de buscar justiça pelo meu clã, me achava um vingador.
– Foi ele quem destruiu seu clã – ela concluiu baixinho, baixando os olhos para as mãos que seguravam a sela firmemente. Não precisou olhar para trás para saber que ele estava balançando a cabeça, confirmando. – Lisandre disse que talvez ele já esteja morto...
– Não está, só espalharam essa história para não causar pânico. – Noah rebateu com convicção – Ele é praticamente um fantasma, nunca aparece e, quando o faz, suas aparições não duram mais do que poucos minutos. – Sua voz estremeceu de raiva. – Não é de hoje que ele está tramando alguma coisa, planejando algo, mas o Congresso tem medo demais de investigar e descobrir algo indesejado, preferem ignorar e fingir que não tem nada acontecendo.
– Ele já perdeu tudo, pelo que eu sei – disse ela, tentando soar tranquila – O que poderia estar querendo agora?
– Vingança, retaliação, extermínio em massa – ele suspirou – Você.
– Eu?
– Você é a única pessoa viva que pode ter alguma conexão com Algora, e era dela que ele estava atrás quando deu as caras pela última vez.
Rebeca se sentiu tonta, agradecendo pelos braços de Noah estarem ao seu redor, impedindo-a de cair de Oreo.
– Você quer matá-lo? – perguntou ela depois de uma breve hesitação.
– Desconheço alguém que não queira.
Ela podia ver a saída da floresta agora, uma estreita passagem pela qual luz irradiava, vários e vários metros à frente, levando até a grande clareira onde o casarão ficava.
– Você sabe onde está prestes a se meter, não sabe?
– Do que você está falando?
– O casarão está vazio há anos. Depois do que aconteceu, ninguém quis ficar com a propriedade. Dizem que é terra amaldiçoada, que as almas daquelas que foram mortas ali vagam em busca de vingança. – Informou Noah, se esforçando para soar como um narrador de uma história de terror. – Algum tempo atrás, uns Inferiores tentaram ocupar o lugar, mas fugiram apavorados horas depois de chegarem aqui, dizendo que ouviam vozes e passos ecoando pelos cômodos.
– Essa é a maior idiotice que eu já ouvi – disse Rebeca.
– Talvez, mas não muda o fato de que o lugar foi saqueado e tomado inúmeras vezes. – Ele disse. – Não da pra saber o que ou quem está lá agora, apenas esperando por um curioso.
– Falando assim – zombou ela – Faz parecer que você tem medo de fantasmas.
– Não seja ridícula – rebateu Noah – Há anos que ninguém tem medo de fantasmas.
Rebeca viu sua tentativa de descontração evaporar. Ela cruzou os braços, pensando em qual seria a probabilidade de encontrar o Gasparzinho e o Trio Assombro em alguma esquina de Clanos quando eles finalmente chegaram na entrada da clareia – que era basicamente um arco desforme de galhos retorcidos e quebrados, resultante de anos de chuvas e ventos fortes.
A primeira coisa que ela viu ao atravessar a passagem foi a cerca circular de ferro gasto e enferrujado, que estava, literalmente, caindo aos pedaços. As barras de ferro estavam retorcidas e espetando para diversas direções – como se alguém muito grande e forte tivesse forçado passagem em vários lugares diferentes. O portão já não existia mais. No lugar dele havia apenas um arco de pedra presa ao que sobrara da cerca. Do lado de dentro da cerca, a estrada de cascalho se transformava em um caminho de paralelepípedos outrora claros, cheios de musgo e grama, levando até um pátio que tinha uma fonte seca e suja e que se dividia em outras três direções, formando uma cruz embolorada e desgastada sobre a grama alta. Duas desapareciam pelos contornos da propriedade e uma levava até o casarão – este que tinha a maioria das janelas completamente destruídas ou obstruídas, samambaias e vinhas escuras subindo pelas paredes de pedra escura e partes do telhado faltando. A porta de entrada não existia mais, parecia ter sido arrancada das dobradiças. Em seu lugar, diversas tábuas de madeira estavam pregadas.
Não era possível ver toda a propriedade, mas haviam vestígios de uma pequena horta perto de uns arbustos e um balanço de madeira quebrado perto de um salgueiro junto de outros destroços que um dia formaram um parquinho.
Rebeca sentiu uma agitação tocar sua barriga enquanto observava a construção que caía aos pedaços. Talvez Noah estivesse dizendo alguma coisa atrás dela, talvez não. Ela sequer tinha vontade de saber. A mãe que não tinha conhecido tinha vivido e morrido ali. A avó que não tinha conhecido tinha vivido e morrido ali. E o mesmo tinha acontecido com a irmã e sabe-se com quantas outras mais. As palavras de Narisa a atingiram com força. Ele mandou que Nébulos assassinassem todos que estavam no lugar. Sua mãe, sua avó e as empregadas que estavam lá, todas morreram.
A única sobrevivente, foi você.
Ela se encolheu como se as palavras a machucassem e só então percebeu a mão de Noah tocando seu antebraço. Ele já tinha descido de Oreo e o amarrado em uma árvore, e estava chamando por ela já havia algum tempo.
– Rebeca – ele chamou outra vez – Tudo bem?
Com luz do sol, percebeu ela, seus olhos ficavam ainda mais claros.
– Eu só... – ela impediu e sacudiu a cabeça, tentando se livrar das vozes que rodavam sua cabeça. – Esquece, vamos lá.
Noah a ajudou a descer do cavalo e acariciou a crina dele antes de se afastar. Eles foram juntos e em silêncio até o portão. Rebeca estava sentindo um espasmo desagradável e contínuo no estômago, deixando-a ainda mais apreensiva e nervosa. Apenas perto da cerca pode notar o mastro quebrado e caído sobre a grama alta. Uma bandeira que, anos antes tinha sido branca, estava presa em uma das pontas dele. Estava cheia de buracos e descosturando, mas um círculo negro podia ser identificado nela.
– É o símbolo das Romanblacks – explicou Noah, notando o olhar dela. – Uma representação da pedra de Algora.
Ela assentiu, sentindo que a língua áspera demais para falar, e seguiu com ele até a varanda, passando pelo pátio e pela fonte seca. Subiram a escadinha de madeira, que rangeu preguiçosamente abaixo de seus pés, e Noah se aproximou do arco onde a porta de entrada um dia tinha ficado, inspecionando as madeiras pregadas ali. Ele suspirou.
– Foram pregadas por dentro, vai demorar muito tentar entrar por aqui – disse sem qualquer entusiasmo. – Vamos ter de entrar por uma janela.
Noah desceu da varanda, circulando o casarão até encontrar uma janela em pedaços. Ele terminou de quebrá-la com o cotovelo, afastando os cacos de vidro para longe. Sem cerimônia, se apoiou nas mãos e saltou para dentro com um único movimento silencioso. Rebeca pensou em tentar fazer o mesmo, mas sabia que acabaria o salto com a cara enfiada no chão. Com um resmungou envergonhado, sentou no parapeito vazio com um impulso, girando o corpo e sendo puxada por Noah para dentro.
Mesmo com o sol reluzindo do lado de fora, era difícil ver mais do que os contornos de um cômodo espaçoso e vazio. Apertou os olhos, percebendo almofadas e fronhas mofadas reunidas perto de uma parede e restos de móveis destruídos em outra. Fora isso, não havia nada além de poeira seca.
– Não é de se admirar que acham que isso é mal-assombrando – resmungou Noah, sacudindo a mão na frente do rosto para afastar as partículas flutuantes de poeira. – Alguma ideia de por onde começar a procurar?
– O quarto da minha mãe era no segundo andar – ela informou, lembrando-se da memória que tinha visto. – Ela o guardava em uma escrivaninha.
– Temos de achar uma escada, então – murmurou Noah antes de olhar ao redor. – Fique perto.
Rebeca assentiu, passando os braços ao redor do próprio corpo enquanto ia com Noah para o próximo cômodo, um corredor curto, estreito e igualmente vazio que desembocou em uma cozinha deteriorada. Haviam bancadas faltando e uma mesa partida ao meio. Rebeca parou de andar, tendo a impressão de ter visto um movimento pelas sombras, mas estava tão escuro que era difícil ter certeza.
– Você não tem nenhuma lanterna aí? – perguntou, sentindo-se angustiada em meia a tanta escuridão e sujeira.
– Nunca precisei de uma – Noah resmungou de volta. Rebeca olhou de soslaio para ele.
– Que tipo de pessoa nunca precisou de uma lanterna?
– Shhh – ele sibilou, sorrindo travesso para ela. – Tente não fazer tanto barulho. Não queremos assustador os ratos.
Continuaram andando cegamente, passando por mais cômodos fantasmagoricamente vazios e destruídos. Algumas paredes tinham buracos gigantescos, como se alguma coisa muito grande tivesse sido arremessada contra ela. Depois de alguns minutos, saíram no saguão de entrada do casarão, onde uma escadaria larga de madeira estava. O cômodo espaçoso tinha uma tapeçaria escura pendendo apodrecida, bamba e rasgada do teto, tampando parcialmente uma lareira de pedra. Pedaços de taco e madeira estavam espalhados pelo chão. O carpete da escadaria parecia ter sido arrancado, deixando suas farpas e buracos a vista. Rebeca ansiosamente tomou a dianteira até a escada.
Estava perto, tão, tão perto...
– Invasores... – uma voz sibilou das sombras.
– Vocês não deveriam... – outra voz continuou.
– ... ter entrado aqui – uma terceira completou a sentença.