Entre Muffins e Apostas | ✓

By rachelffernandes

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A regra é clara: se Érico conseguir chamar Isabel, a atendente mal humorada da cafeteria da faculdade de Dire... More

[sobre]
01. como num filme de john hughes
02. não é tão fácil assim, campeão
03. a fragilidade das alianças
04. interlúdio
05. miss capitalismo
06. feita de arte™
07. la campanella, a maldita
09. (quase) grand finale na ZS
10. a importância de ser honesto
[agradecimentos]

08. suíte master luxo

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By rachelffernandes

O carro apagou outra vez. Em menos de 20 minutos, era a segunda vez que o precioso automóvel de Cléber, um Siena prateado incrivelmente conservado, morria nas mãos geladas de Érico. Do banco do carona, o motorista recebeu apenas silêncio e o olhar fixo de Isabel. Nervoso, ele deu uma risadinha.

— Bah, até parece que não tenho carteira, mas eu tenho, ok? — disse ele, girando a chave na ignição. Novamente, seguiam pela rua apinhada de carros e pessoas naquela noite quente de sexta-feira. — Sou... meio péssimo como motorista. Me desculpa. Faz tempo que não faço isso.

Ela não respondeu. Quando Érico estava quase relaxado, quase deletando da memória que dirigia para um motel escolhido por Nando para ganhar 500 paus de uma aposta sem noção, Isabel disse:

— Achei que tu não sabia dirigir.

O rádio estava desligado, e mesmo com o aparelho auditivo num volume razoável, as palavras de Isabel saíram cristalinas feito champanhe em noite de véspera de Natal. Ele virou o rosto para ela, as mãos plantadas no volante bem encerado.

— Ah, eu tirei a carteira ano passado. — Érico fez uma pausa curta, como se passasse em revista as aulas teóricas insuportáveis e as aulas práticas que deixavam seus nervos em frangalhos. — Não tenho o costume de dirigir porque o carro é do meu padrasto. Ele usa pra trabalhar, e tal, mas me empresta quando preciso pra algo especial.

— Especial tipo levar as gurias pro motel?

Ele franziu os lábios, as bochechas ardendo.

— É — respondeu Érico, focado no trânsito para não ficar ainda mais encabulado diante de Isabel. — Aí ando de ônibus. Até prefiro, na real. Dá pra... pra encontrar as pessoas.

Ele se calou, deixando o que queria dizer no ar enclausurado do carro. Nenhum dos dois havia tocado na tarde bizarra de quinta-feira, na invasão de Érico num momento tão íntimo dela, na discussão com a avó, na parte do sobrenome quilométrico e da riqueza absurda que, apesar de tudo, obrigava Isabel a pegar o ônibus. Porque, dada a escolha, quem diabos preferiria andar de ônibus?

Ficaram em silêncio, e Érico pensou em como abordar o assunto "Tarde de Quinta-Feira" sem parecer intrometido. Mais intrometido. Vagar pela casa e ouvir atrás das portas já estava de bom tamanho. Ele pigarreou, dobrando a curva. Ela olhava pela janela, desinteressada em tudo.

Depois daquele olhar gelado de Isabel, da expressão assustada da avó e do mordomo, que surgiu na sala momentos depois, Érico foi arrastado pelas portas francesas que davam para a piscina pelas mãos firmes de Isabel. Ele não se lembrava ao certo o que havia gaguejado diante dela; possivelmente algo envolvendo "me perdoa", "vamos pro motel", "fiz esse muffin pra ti" e "preciso de uma calcinha tua pra aposta". Não exatamente nessa ordem. Isabel ouvira, impassível, pegara o muffin com curiosidade, e arrematara: "Eu falo contigo depois" antes de entrar na casa como se uma missão ultra secreta esperasse por sua presença.

E agora Érico estava ali, a caminho do motel escolhido por Nando, para que os 500 paus caíssem em sua mão e a Dona Dai tivesse o melhor presente de aniversário do mundo. Tudo aquilo valeria a pena.

— Parece que chegamos — disse Isabel. Havia um sorrisinho no canto de seus lábios. — Motel Imperial.

Érico desacelerou e olhou para cima. O Motel Imperial, conforme as letras caixa fixadas na fachada chique indicavam, era uma construção sólida para quem olhava de fora, com uma cerca alta de policarbonato, iluminada por luzes coloridas indiretas que refletiam a confusão dos sentimentos de Érico. Ele apertou o volante, engolindo em seco. A recepção, uma entradinha que mais parecia o início de um drive-thru, esperava por eles. Isabel tinha o cenho franzido para a fachada, avaliando tudo com olhos clínicos.

— Bah, quase que me esqueço — disse Érico, embocando o carro para frente. — Vou piscar os faróis pra mostrar pro Nando que sou eu.

— Nossa — disse ela. — Teu amigo realmente quer a minha calcinha.

Érico corou, piscando os faróis. Esperou, durante os breves segundos de silêncio que seu nervosismo piscou feito luzinhas de Natal, e sentiu o celular vibrar no bolso.


Nando: Já vi vocês. Boa foda, meu!!!!! :)
Mosca: É hoje que o Surdinho vai molhar o biscoito e nos extorquir dinheiro?
Nando: Vai!!!! E não esquece a calcinha, tchê!!!!!!


Érico apertou o celular, grunhindo para a mensagem, para os pontos de exclamação excessivos de Nando, e avançou para a recepção. Ali, parado ao lado de uma tela que passava, de novo e de novo, as suítes disponíveis, o sentimento de estranheza o dominou. Não havia uma pessoa na recepção, apenas um microfone, daqueles que utilizavam na bilheteria dos teatros modernos. Daqueles que deixavam a voz de todo mundo cortada, robótica, péssima de ouvir até para quem tinha os dois ouvidos funcionando perfeitamente. Érico apertou o volante quando ouviu ruídos e uma voz embolada de mulher através do microfonezinho. Ai, meu Deus. Não ouvir era a pior parte de todo o processo.

Boa... oite... qual... íte... sejam?

Enquanto Érico entrava num estado de paralisia nervosa, Isabel pigarreou. Ele virou o rosto. Ela estendeu-lhe o RG e disse:

— Pede a pernoite da suíte master luxo.

Érico não se moveu. Pegou o documento de identidade de Isabel e apoiou-se na janela do carro. Com metade do corpo para fora, disse da maneira mais clara que conseguiu:

— A... a pernoite da master luxo?

... mento do... aco... anhante, por... tileza.

Ele ficou estático antes de colocar o documento da acompanhante numa gavetinha preta que a atendente havia aberto. Como diabos Isabel sabia dos... procedimentos do lugar? Assim como evitava pensar nas calcinhas de Isabel, evitou pensar nisso também. A gavetinha foi aberta novamente. Junto ao documento, uma chave e um controle remoto com número.

... rigada, ...nhor. Suí... 45.

E antes que Érico pudesse questionar, a porta cinzenta da garagem rolou para cima e eles estavam dentro do Motel Imperial. Em silêncio, ele estacionou na vaga estipulada, uma garagem privativa que escondia o carro da vista dos outros como se todos ali estivessem fazendo coisas erradas. Érico sentiu-se esquisito quando fechou a porta da garagem da suíte e desligou o carro. Ele e Isabel ficaram em silêncio; ele, observando a escada de madeira que sumia para o andar de cima, para o quarto, ela, guardando o documento de identidade na mochila jeans surrada.

— Eu vou subindo — disse Isabel, pegando a chave e a mochila. Ele assentiu, abobalhado. — O que foi?

— O quê? — perguntou Érico, desviando os olhos da escada de madeira. Havia um escurinho esquisito na garagem, como se o cubículo fosse iluminado por uma daquelas lâmpadas amareladas que não se vendem mais no mercado. Isabel não respondeu de imediato. — Por que tu tá me olhando assim?

— Não sei. Tu tá olhando fixo pra escada. Parece que tá... chapado.

— Não tô. Eu só... — Ele se calou ao perceber o olhar inquisidor dela. Érico suspirou. — Deixa pra lá. Vamos terminar logo com isso.

Ele bateu a porta do carro e, com a pequena chave suando em suas mãos, subiu a escada de madeira. O lance dava num corredor minúsculo com duas portas distantes por não mais do que três passos. Numa delas havia um número adesivado com elegância. Érico engoliu em seco e girou a chave na fechadura.

O quarto não era o show de horrores que ele havia imaginado. Não havia correntes, camas redondas ou paredes pintadas de vermelho e pétalas de rosa em cima do lençol. Enquanto Isabel jogava a mochila em cima de uma mesinha e lavava as mãos, Érico deu uma boa olhada na suíte que era a própria definição de... normal. As paredes eram brancas, com detalhes em madeira e a cama era quadrada, com uma capa branca incrivelmente limpa sobre o colchão. A televisão de tela plana aguardava, a luzinha do stand-by acesa. O ar-condicionado, ligado numa temperatura boa, emitia um ronco baixinho, que dava sono. O banheiro, apertado ao lado do chuveiro com banheira de hidromassagem, era fechado por uma porta de vidro opaco. Se não fosse pelo espelho no teto e um par de camisinhas em cima da cama, Érico poderia jurar que estava num flat metido do Moinhos de Vento, e não num motel.

Ela fechou a torneira da pia, secou as mãos na toalha branca felpuda que estava dentro de uma cesta repleta de produtos no chão e sentou-se na cama. Érico, ainda parado com a mão na maçaneta do quarto, pigarreou enquanto Isabel lia a embalagem das camisinhas. Ela ergueu a cabeça, infeliz com a interrupção.

— Hm, o que a gente faz agora? — perguntou ele, nervoso. Érico deu um passo para a frente, deixando a marca do suor de seus dedos na maçaneta da porta da suíte. Ainda segurando a camisinha, Isabel deu de ombros. Ele fechou a cara. — O que isso significa?

— Sei lá — disse ela. — Tanto faz. A gente tem a noite inteira pra pensar nisso.

Érico sentou-se na pontinha do colchão, encarando o piso laminado cor de madeira. A noite inteira, trancafiado com Isabel naquela suíte. Apesar de não ser pequeno, o quarto era um pouquinho abafado. A ausência de janelas e a falta de paredes e de privacidade deixavam tudo menor, ainda mais com Isabel ali, vigiando-o sem cerimônia. Não havia como fugir de seus olhares inquisitivos, dos silêncios esquisitos, da falta de assunto. Por que diabos os motéis não tinham o mínimo de privacidade dentro das suítes? Porque ninguém quer privacidade quando tá com outra pessoa no motel, gênio.

Ele afundou os punhos no colchão, esticando-se, ainda de tênis, logo em seguida. Com as pernas cruzadas e as mãos atrás da cabeça na tentativa ridícula de simular conforto, Érico observou Isabel, que lia atentamente a embalagem do preservativo. Até que ela parou, ergueu a cabeça, as sobrancelhas espessas franzidas, e disse:

— Tira os tênis. — Érico abriu a boca. Ela explicou: — A gente vai dormir aqui. Não quero que o colchão fique sujo.

Ele demorou alguns segundos antes de atender ao pedido. Quando se virou, já com os tênis descansando ao lado da cama, Isabel tinha a atenção fixa no preservativo. Érico corou.

— Meu Deus, o que é que tu tanto lê aí, criatura? Nunca viu uma camisinha antes?

Ela sorriu com o canto dos lábios.

— Vi mais vezes do que tu imagina.

— Não mete essa — respondeu ele, dando uma risadinha cínica. Ficaram em silêncio, ouvindo o barulho do ar-condicionado. Isabel girou o pacote nas mãos. Érico deu de ombros, os olhos fixos na televisão desligada. — Não é errado nunca ter... ter visto. Ou usado. Tipo, é bem normal.

Érico nunca se acostumaria à maneira com a qual Isabel movia os olhos; havia algo de calculado no movimento, algo sutil feito as notas dentro de uma escala musical. Ela apertou os olhos, tentando ler as entrelinhas do discurso.

Mas como com Isabel nada era sutil, ela disparou:

— O que tu quer dizer com isso?

— Ah, que... que, tipo, é normal nunca ter... feito. — Conforme a segurança crescia por saber algo até então desconhecido a Isabel, Érico sentia-se estranhamente relaxado. Experiente. E cometeu o erro de quem assume que a situação está sob controle: — Tipo, olha o meu exemplo. Só tive uma namorada a vida toda, sabe? Não é... bizarro ser inexperiente.

Porra, que saudade da Lu. Mas ele mordeu a parte interna da bochecha; admitir aquilo preencheria boa parte de sua cota de humilhação do ano. Isabel apertou ainda mais os olhos. Agora, sua expressão era similar a do detetive de ficção que está a um passo da verdade.

— Por que tu assume que eu nunca transei ou namorei?

— Ah — disse ele, confuso pela mudança de assunto. — É que tu é meio... assim.

— Assim como?

— Meio...

— Meio...?

— Meio... fechadona — concluiu Érico, aliviado quando encontrou a palavra certa. Isabel ergueu as sobrancelhas, demandando explicações. Ele deu de ombros outra vez, as mãos cruzadas sobre o estômago. — Sei lá. Tu é bem reservada, e isso meio que difi...

— Na verdade, já namorei três vezes — interrompeu ela. E após uma pausa desconcertante, acrescentou: — Isso sem contar as transas casuais, que não se encaixam bem na categoria "namoro".

Isabel pegou o cardápio forrado de couro negro de cima da mesinha de cabeceira e se entreteve com os preços dos filés, peixes, frangos, doces e das saladas que o motel oferecia. Érico ficou estático, tentando formar uma ordem lógica nos próprios pensamentos. Há menos de três minutos era o Sr. Experiência, desfrutara da superioridade de saber mais do que alguém, e vira Isabel como alguém a ser ensinada.

Era incrível como tudo podia mudar em questão de 180 segundos.

— Transas... casuais? — balbuciou ele, incapaz de formular outra coisa.

— Morei dois anos fora do país — respondeu ela, sem erguer os olhos do cardápio. — Não podia prometer compromisso a ninguém.

Quantas embalagens de camisinha Isabel lera naqueles dois anos? Quantos caras haviam visto suas calcinhas? Érico corou com o pensamento, e corou ainda mais ao perceber que suas meias eram do Star Wars, estampadas com cabecinhas douradas do C3PO sobre um fundo azul vibrante. "Infantil" foi a palavra que cresceu diante de suas vistas.

Procurando mudar de assunto para encobrir a própria inexperiência, perguntou:

— Legal. E onde tu morou?

— Em Berlim.

— E o que tu fa...

— Estudava Música.

O tom foi o suficiente para Érico entender que mais nada sairia dali, pelo menos por enquanto. Ele suspirou, ergueu-se da cama e foi até o frigobar. Uma cestinha com batatas chips, bolachas recheadas, chocolates suíços e cookies chamaram sua atenção. Curioso, Érico pegou o pacote com as batatinhas e leu o rótulo. Mal havia chegado nos valores da gordura trans quando Isabel disse:

— Se comer, vai ter que pagar.

Ele virou-se para ela, o saco de salgadinho leve nas mãos.

— Ué, não é cortesia?

— Cortesia em motel é difícil. — Ela fez uma pausa gigantesca, repleta de significados ocultos. Érico girou as batatinhas, pensando se deveria ou não. Sentou-se na cama, deixando o saquinho em cima do lençol dobrado. — Bem que se vê que tu não costuma frequentar motel.

— A Lu, minha ex, era de Garibaldi. Ela morava sozinha — retrucou ele, seco. — A gente não precisava de motel.

Quantas noites de sexta e manhãs de sábado havia passado naquele apartamento minúsculo na José Bonifácio, agarradinho à ex, dividindo beijos enquanto comiam pizza em frente à televisão ou preparavam o café-da-manhã? Aquilo sim era vida. Qual era a força de um quarto de motel perto do perfume de Lu nos lençóis, da caneca do Batman quebrada — a preferida dela — e da liberdade de circular pelos cômodos como se dividissem um planeta só deles? Ele balançou a cabeça. Agora não era hora de pensar em Lu.

— Quanto é o salgadinho?

— Sete paus.

— Porra, que assalto — retrucou ele. — E nem é a versão gigante. Podia ser cortesia, né? Esses motéis custam o olho da cara.

— Na quinta vez eles te dão uma cortesia — disse ela, virando a página do cardápio sem prestar atenção no que fazia. — Acho que é um chá com bolinhos. Algo assim.

— Como assim "quinta vez"?

— Pelo cartão VIP. Eles vão carimbando conforme tu vem. — Isabel fez uma pausa, pensativa. — Acho que o quinto carimbo do Imperial é o chá de maçã com bolinhos de canela. Bem bom, até. Ou é uma barra de chocolate belga. Não lembro agora.

Ele a encarou. Isabel franziu o cenho.

— Cartão VIP de motel? — perguntou Érico. — Sério mesmo?

— O quê? — devolveu ela. Ele apertou os olhos. — Os descontos são bons. Principalmente aqui no Imperial.

Ele revirou os olhos. O salgadinho, fechado próximo a seus pés, deu-lhe água na boca. Érico grunhiu. Isabel franziu o cenho, o cardápio pendendo de suas mãos.

— Que merda — resmungou ele. — Tô com fome, mas não quero me dobrar ao sistema e pagar sete paus pra comer essa porçãozinha mixuruca.

Ela soltou um grunhido, algo muito similar a uma risada aos ouvidos ruins de Érico, e se levantou da cama. Antes que ele pudesse perguntar o que diabos ela procurava na mochila, Isabel atirou um saco gigante de batatinhas sabor presunto, balas de iogurte e três barras de chocolate em cima do colchão. Os olhos de Érico brilharam para aquela comida que faria qualquer nutricionista se atirar de um penhasco. Ele encarou Isabel. Ela deu de ombros.

— Comida de motel sempre é muito cara. Gastar dinheiro com isso não vale a pena.

— Rico odeia gastar dinheiro, né? — Ele deu uma risadinha, esticando-se para pegar o salgadinho. Ainda de pé, Isabel franziu o cenho. Érico corou. — Meu Deus, me desculpa. Eu não quis... não quis te ofender. Acho que é a fome, sabe?

Ela ficou em silêncio. O rabo de cavalo de Isabel, sem um fio fora do lugar, brilhou debaixo das luzes brancas e invasivas da suíte. Ela sorriu, não de verdade, e disse:

— Imagino que sim.

E, novamente, o silêncio. Isabel voltou à cama, encolhendo as pernas enquanto lia o cardápio. As meias dela, de cano curto e brancas feito glacê recém batido, deixaram Érico ainda mais sem graça. Por que Isabel sempre parecia tão madura, tão preparada para tudo? Encabulado pela gafe, ele abriu o salgadinho e, com as costas apoiadas na cabeceira da cama, comeu em silêncio. Ao seu lado, Isabel estava na mesma posição; iguais, porém distantes em tantos níveis que soava até ridículo compartilharem uma cama. Érico esticou o saco de salgadinhos para ela. Isabel desviou a atenção do cardápio. A pergunta, silenciosa feito ninja experiente, não precisava de palavras.

Ela fechou o cardápio e pegou uma porção de salgadinho. Nenhum deles falou. Comeram na quietude do quarto, interrompidos apenas pelo som espalhafatoso do plástico sendo amassado por mãos que se chocavam entre uma batatinha e outra. O espelho no teto, cúmplice silencioso daquele encontro tão esquisito, refletiu o diálogo feito de silêncios.

Até que o motel não era tão ruim assim.

---

Ele fechou a torneira da pia — que, a título de curiosidade, ficava na parte de fora do banheiro — e, enquanto Isabel lia uma revista, verificou rapidamente se os dentes não estavam sujos. Abriu a boca, puxando o lábio superior para o lado, e sorriu ao confirmar que estava tudo em ordem após comerem metade do saco de salgadinho. Até que aquela escova de dente descartável, embalada debaixo da pia, não era nada mau. Érico virou-se, esbarrando na cesta de vime com alguns produtos. Isabel ergueu a cabeça. Ele riu, acocorando-se para examinar tudo mais de perto.

A cesta era um festival de produtos de sex shop. Óleos, géis, pomadas coloridas que prometiam ereções prolongadas, anulamento de sensações, lubrificação e sabores diversos, vibradores minúsculos e um número infinito de produtos saltavam da cesta feito flores do campo num buquê de noiva.

— Meu Deus. Nunca vi tanto pau de plástico junto — disse ele, rindo. Eram de todos os tamanhos, formatos e cores. Grandes, médios, pequenos, rosas, azuis, verdes; vasta escolha. Érico riu outra vez, mais de nervoso do que de qualquer outra coisa. Pegou uma embalagem, rosa feito o carro de corrida da Penélope Charmosa na Corrida Maluca, e virou-a para ler o verso. — Olha o tamanho disso, cara. Não é possível que entre numa pessoa. Eles vendem tudo o que tá na cesta?

— Sim. Os valores tão no cardápio.

— Bah, esse povo de motel não perde tempo. Querem ganhar dinheiro com tudo. — Érico aproximou a embalagem do rosto, apertou os olhos e leu o verso. — "Cinta Peniana, 25 cm, látex atóxico." Cinta? Achei que fosse só um... um... igual aos outros. Enfim.

Estranhamente, Érico não conseguia dizer o nome do objeto para Isabel. Conseguia rir para si mesmo e dizer o nome em voz, mas não para ela. Havia certo desconforto em ter um pênis de plástico gigantesco na mão enquanto falava com alguém do sexo oposto. Isabel ergueu as sobrancelhas, um sorrisinho brincando em seus lábios finos.

— É igual aos outros, mas... diferente.

— Ué, diferente como?

— Ele vem com uma cinta. É pra eu usar em ti.

Ele franziu o cenho, rindo.

— Usar em mim? Como é que tu... — Então Érico parou, a realização atingindo-o feito tapa na cara de vilão de novela. O rubor subiu por seu rosto. — Ah. Entendi.

— Parece ser bem interessante...

— É. Acho melhor... não. — Sem graça, ele enfiou a tal da cinta de volta na cesta. Isabel encenou aquele sorriso oblíquo que deixava seu rosto sério ainda mais assustador. Érico coçou a nuca, ajeitando o aparelho auditivo no caminho. — Então, acho melhor a gente começar a ver os negócios do Nando, né? As fotos, e tal.

— Pode ser. Eles te falaram mais alguma coisa?

Érico voltou à cama, pegando o celular da mesinha. Havia uma infinidade de mensagem dos dois, todas relacionadas à Isabel. Entre emojis e GIFs, pediam fotos, imaginavam a estampa da calcinha e bombardeavam o grupo com mensagens. Puta merda.

— Nada de novo. Querem as fotos e a... calcinha.

— As tuas amizades são muito nojentas.

— Não posso nem dizer que me surpreendo. — Érico deu de ombros. — O Mosca é mais de boa, mas o Nando tem umas coisas que... bah.

Ficaram em silêncio. Érico pigarreou, a atenção fixa nas meias.

— E como a gente vai fazer? — perguntou ela.

— O quê?

— As fotos.

— Bah, nem ideia. Ele quer uma coisa mais... espontânea, acho.

— "Espontânea" tipo...? — perguntou ela, apertando os olhos.

— Ah, nada íntimo. Não te preocupa. — Ele corou, devolvendo o celular à mesinha. — Essa foi uma das minhas exigências. Não vou te expôr assim.

Um agradecimento silencioso de Isabel trouxe um pequeno sorriso ao rosto de Érico. Ela coçou o queixo, encarando a televisão desligada.

— Ele quer algo que comprove que viemos aqui. Algo que... pessoas nessa situação fariam. Fotos que indicam intimidade, mas sem... vulgaridade.

— É, acho que sim — disse Érico, sem graça pela linha de raciocínio dela. — Ele até sugeriu tu usar minha camiseta, e tal, mas sei lá. Isso não prova nada. Às vezes acho que o Mosca tem razão quando diz que os anabolizantes vão foder a cabeça do Nando.

Isabel assentiu sem ouvir e pegou o próprio celular. Érico suspirou. Os polegares dela voaram no teclado, digitando as palavras como se fossem velhas conhecidas. Érico piscou quando Isabel virou a tela em sua direção.

— O que tu acha de uma foto assim?

Era uma moça de camisetão e calcinha, cabelos ruivos bagunçados e expressão maliciosa em cima de uma cama revirada. A luz da fotografia era amarelada, o que deixava o cenário muito mais alternativo do que o necessário. Se Érico abrisse aqueles blogs de hipsters, tinha certeza de que encontraria a imagem em dois tempos.

(Aliás, qual era a fascinação das pessoas por ruivas? Era só uma porra de cor de cabelo feito qualquer outra.)

— Parece legal — concordou ele, apertando os olhos para a tela do celular. — Quer fazer tipo isso?

— Pode ser.

Então, como se fosse o mais simples dos gestos, Isabel tirou a própria camiseta cinzenta, ficando de sutiã diante de Érico. A pele dela era pálida, da cor de quem passa muito tempo dentro de casa, de quem aceita a luz do sol como uma conhecida distante que fica para lá das janelas. O sutiã, de renda preta, contrastava com o tom de sua pele branquinha, ressaltando os seios de Isabel. Érico tentou não olhar para o colo dela, para a descida sinuosa que os seios configuravam, para o abdômen de quem não se dá ao trabalho de malhar, mas que foi abençoado com a virtude de ser magro. Érico tentou, entretanto, não era de ferro. Enquanto ela atirava o jeans longe, por respeito, ele olhou para o lado, mas de nada adiantou.

Havia um espelho acima da cabeceira da cama, cobrindo quase a parede inteira. Por que os motéis gostavam tanto de espelhos? Que narcisismo besta aquele de querer sempre ter a visão periférica de tudo; espelhos no teto, acima da cabeceira da cama, na parede oposta ao chuveiro. Érico pigarreou, corando ao receber o olhar fixo de Isabel.

— Me dá tua camiseta, né? — perguntou ela, como se fosse óbvio.

— Claro. Que idiota que eu sou.

Ele tirou a camiseta azul marinho estampada com aviõezinhos — presente de Nando, escolhida especialmente para ser reconhecida na fotografia — e entregou a ela. Isabel enfiou a camiseta, que caiu em seu corpo magricela feito uma luva grande demais, e disse:

— Ajoelha ali e tira a foto.

Abobalhado, sem camisa e só um pouquinho nervoso, ele se afastou, ajoelhando-se na cama com o celular em mãos. Isabel desfez o rabo de cavalo, ajeitou os cabelos castanhos e sorriu para a câmera. Érico não conseguiu tirar a foto.

O sorriso de Isabel através da lente era de verdade. Havia algo de real naquele sorriso que em nada se assemelhava aos sorrisos frios e oblíquos que ele estava acostumado; na pose de modelo indie, Isabel sorria como se estivesse ao piano, como se quisesse estar ali, posando para a câmera ruim do celular de Érico num quarto de motel qualquer. Ele piscou, excitado pelo clima íntimo da suíte, e entendeu por que não conseguiria tirar a foto; não queria mostrar aos guris algo tão íntimo e raro feito um sorriso real dela. Que chamassem de egoísmo, mas não queria dividir aquilo com ninguém. Nem por 500 paus, nem por todo o dinheiro do mundo.

Ela desmanchou o sorriso e a aura se desfez. Érico, ainda na posição para fotografar, esperou, o coração ansioso pela conclusão e o ouvido surdo pulsando.

— Tirou a foto? — perguntou Isabel.

— Hm, aham. Tirei sim.

— Deixa eu ver.

Puta merda.

— Ah, depois. — Esmigalhando os neurônios para sair daquela situação, Érico sugeriu: — Vamos tirar mais algumas.

— Ideias?

Com o sorriso de Isabel fixo em sua mente, Érico sorriu sem graça. Ah, ideias era o que mais tinha naquele momento. Entretanto, para não pensar que ela estava só de calcinha, vestindo sua camiseta, direcionou todos os esforços para a tarefa que tinham em mente.

— Tive algumas ideias de poses, na real. Levanta e vai ali na pia pra...

E a sessão de fotos, graças a Deus, começou de fato.

---

Os dois caíram na cama, exaustos.

— Nossa — disse ela, virando o rosto para Érico após um breve silêncio. Isabel ainda usava sua camiseta e tinha os cabelos soltos. — Acho que nunca tirei tantas fotos antes.

Ele riu, escondendo o rosto com um dos braços. Em seu celular havia, pelo menos, umas 40 fotos de Isabel... agindo como um ser humano normal. As ações eram banais; escovar os dentes, assistir televisão, ler o cardápio e vasculhar a cesta de produtos. Érico fizera questão de pedir para Isabel não olhar para a câmera, como se ele estivesse registrando os momentos sem seu consentimento.

— Nasci pra ser papparazzi — comentou ele, sorrindo. — Se a Gastronomia não prestar, já encontramos minha outra vocação.

Isabel sorriu daquela maneira que não suscitava graça. Estavam ali há quase três horas, e Érico não aguentava mais. O silêncio que se intrometia entre eles era incômodo, repleto de perguntas sem respostas; a noite inteira, naquele ritmo, seria uma verdadeira tortura. Ele torceu os lábios, encarando o próprio reflexo no espelho do teto. Para sua surpresa, o olhar de Isabel encontrou o seu no espelho. Havia um sorrisinho em seu rosto. Outro.

— O que foi agora? — perguntou ele.

— Tu é uma das pessoas mais transparentes que já conheci.

— O que diabos isso quer dizer?

— Tu quer conversar, não quer? — devolveu ela, apertando os olhos para o reflexo dos dois no espelho. — Conversar sobre a tarde de quinta-feira.

— É claro que não — respondeu ele, ligeiramente ofendido por ser lido feito um mapa astral online. Érico ficou em silêncio durante breves segundos. Como é que essa guria sempre sabe, porra? — Talvez. Tá, na real, quero sim.

Ela girou o corpo, apoiando o cotovelo na cama e a cabeça nas mãos. Érico teve um déja-vu esquisito ao vê-la naquela posição; Lu sempre ficava daquele jeito ao lado dele na cama. Era isto, as similaridades gritantes mesmo na mais essencial diferença. Érico evitou pensar na ex. Não era mais ela quem estava ao seu lado.

— Na verdade, não quero conversar — esclareceu ele. — Quero fazer perguntas. Várias. Tu tá me devendo uma pá de respostas, né, Isabel? E nem adianta fazer essa cara pra mim. Tu sabe que eu tô certo.

(Ela, obviamente, já estava com os olhos espremidos.)

— Que respostas tu quer?

Ele deu uma risadinha debochada.

— Tipo, primeiro que tu é rica pra cacete. Podre de rica. Por que tu não me falou? Segundo: pra que entrar nessa aposta se tu tem dinheiro? Terceiro: o piano e o emprego, né? Por que tu trabalha de pianista no São Ralph se tu não precisa? E o trabalho de caixa no bar do Direito? — As perguntas escapavam da boca de Érico feito balas de metralhadora. Apesar de ciente do cenho franzido de Isabel, ele era incapaz de se controlar. — Tu pega ônibus e mora na Boa Vista, naquela casa gigante. Tu anda de ônibus, criatura! De ônibus! Tu é uma contradição ambulante.

Ela ficou em silêncio. Ele respirava com dificuldade, assistindo enquanto o próprio peito subia e descia no reflexo do espelho. Érico virou o rosto para Isabel.

— Deu? — perguntou ela.

— Deu. Eu acho.

— Posso responder tudo junto, ou...?

— Como tu preferir. — Ele fez outra pausa. — Menos a do ônibus. Essa tu vai ter que me explicar direitinho.

Isabel deu de ombros, sem desfazer a posição em que estava, e disse:

— Meus pais eram músicos bem reconhecidos no meio clássico. Os dois se conheceram na Filarmônica de Viena, num concerto em que minha mãe foi a solista convidada, e logo começaram um projeto próprio, um dueto entre piano e violino. Eles viajavam bastante, tocando nos maiores teatros, e eu viajava com eles. Cresci nesse meio. Não tinha como fugir disso.

Ela disse aquilo com um pontinha de orgulho quase imperceptível. E fez uma pausa.

— Ah, então é por isso — disse Érico.

— O quê?

— Por isso que tu é boa pra cacete — completou ele. Ela sorriu com o canto dos lábios. — Tá, continua. Não quero te interromper.

— Meus pais morreram num acidente de avião quando eu tinha 10 anos. Eu passava uma temporada no Brasil com a minha avó materna, e foi assim desde então. A família sempre foi rica, mas a música traz muito dinheiro quando existe reconhecimento internacional. E acho que é isso.

E ela silenciou. Érico não conseguiu nem dizer que sentia muito pelos pais dela, ser compreensivo com uma perda tão dolorosa que alterava tanto a vida de alguém. A resposta da pergunta estava incompleta, e aquilo era a cara de Isabel; respostas evasivas que não levavam a nada.

— Mas e o resto? Por que o trabalho no São Ralph, no bar do Direito, e a aposta? E o ônibus? — perguntou ele, franzindo o cenho. — Isso aí tá mal contado.

— Não sei dirigir.

Isabel fez uma pausa.

— Tá, mas tu não tem motorista?

— Tenho. Minha avó tem, na verdade.

Érico ficou em silêncio. Isabel deu de ombros.

— Minha avó foi pianista clássica também, e como tu invadiu minha casa, deve ter percebido como ela é com o piano. Trabalho pra me livrar dela, porque se eu ficasse em casa, ela me obrigaria a ensaiar o dia inteiro, sem descanso.

Só podia. Aquela avó dela, toda metida, olhara para Érico e para o aparelho auditivo em seu ouvido esquerdo como se ele fosse possuidor de uma doença mortal, daquelas que se espalham com a facilidade de um apocalipse zumbi. Era óbvio que ela seria pianista clássica; maneiras metidas como aquelas denunciavam qualquer um. Mas Érico não repreendia a avó dela pelo olhar frio e enojado; de que adiantaria, afinal?

— Já tô acostumada à rigidez dos ensaios — continuou ela. — Faço faculdade de Música.

— Eu sabia! — exclamou ele, rindo. — Aqueles teus livros em alemão não enganavam ninguém no ônibus, cara. Aliás, tu toca super bem.

— Tu é surdo. Tua opinião sobre música não é tão confiável assim.

— Ei, Mozart também era surdo e ninguém...

— Beethoven era o surdo.

Érico ficou em silêncio.

— Tava só te testando. Tá afiada, hein? Mas enfim, a aposta...

— Também tenho perguntas.

O silêncio cresceu. Érico virou o rosto, deixando de encará-la pelo espelho no teto.

— Também exijo algumas explicações — disse ela.

Agora que ele sabia da condição financeira de Isabel, o tom de menina riquinha fazia muito mais sentido. Os pedidos dela, todos eles, soavam como ordens; ai de quem inventasse de não obedecer às vontades de Isabel.

— Não tenho nada a esconder — disse ele. — Diferente de certas pessoas...

As sobrancelhas de Isabel se uniram.

— Sempre que tu me vê, tu me dá um cupcake.

— Não é um... pera aí, tu comeu?

Ela sempre pegava o muffin, mas vê-la comendo era uma lenda para ele. Aparentemente, estava na hora da verdade.

Com Isabel deitada naquela posição que lembrava tanto a intimidade dividida com a ex, Érico corou enquanto esperava pela resposta. Isabel tinha os cabelos soltos, usava a camiseta dele e tudo naquela suíte sem graça de motel completava o quadro e a intimidade que existia apenas na imaginação. Ela ficou em silêncio antes de dar de ombros.

— Comi. Ninguém recusa comida de graça.

— E tu gostou?

— Gostei — disse ela, os olhos fixos nos dele. — Mas uma vez tu me disse que tinha uma questão filosófica por trás disso, que eram os muffins que importavam, apesar de todo mundo preferir cupcakes. O que isso quer dizer?

Érico ficou curioso por Isabel reter aquela bobagem que para ele era tão importante. Ele piscou e abriu a boca, mesmo sem saber o que dizer em seguida. Preferiu, para não ficar tão encabulado, voltar sua atenção para o espelho no teto.

— Ah, é bobagem.

— Me conta.

Ele ficou em silêncio, de repente envergonhado. Isabel riria; qualquer um riria daquela ideia idiota. Filosofias idiotas, quando ditas em voz alta, soavam ainda mais imbecis e vazias. Entretanto, assim como Isabel compartilhara a história sobre os pais, ele também queria dividir algo com ela, algo tão íntimo quanto uma filosofia imbecil.

— Uma vez eu li que os cupcakes eram os muffins que tiveram a coragem de seguir os próprios sonhos. — Érico fez uma pausa. — E isso me incomodou de um jeito meio... esquisito. Sei que parece idiota porque é só uma frase ridícula na internet, mas me incomodou. Do dia pra noite a gente começou a ter aulas sobre cupcakes, sobre a importância deles, sobre como era fundamental saber decorar um cupcake porque "eles tiveram a coragem de seguir os próprios sonhos".

Érico deixou a voz morrer. Assim como Isabel, fugia da questão porque tinha vergonha de respondê-la, de se expôr. Mas tanto faz agora, pensou ele. Estava deitado ao lado dela numa cama de motel, sem camiseta, falando sobre muffins, pais mortos e avós tiranas. Daquela perspectiva, a exposição já não se configurava mais num problema.

— O sonho da minha mãe era ser bailarina — continuou ele, olhando para o reflexo de suas meias do Star Wars no espelho do teto. Isabel tinha o rosto e o corpo virados em sua direção, contudo Érico não tinha coragem para encará-la. Era melhor assim. Ele sorriu ao se lembrar do sorriso da mãe. — Tipo, ela queria ser bailarina clássica mesmo. Daquelas que dançam na pontinha no pé, de coque e tudo. Só que... só que daí eu nasci.

Érico sabia que não fora planejado, e a culpa não era da mãe; a culpa, na verdade, não era de ninguém. O pai que ele não conhecia, um biólogo-barra-velejador alemão de passagem por Porto Alegre, também não podia ser enquadrado no papel de homem maléfico que engravida uma moça em cada porto e some no dia seguinte. Os dois eram só pessoas; pessoas que erram, que acertam e que vão vivendo conforme um dia acaba e outro começa.

No início da adolescência, quando o rancor pelo abandono do pai biológico dominou a existência de Érico, a Dona Dai foi certeira em acabar com o sentimento. "Eu amei muito o teu pai, Érico. Amei em um mês o que pareceram anos, uma vida inteira. Não tem nenhum culpado nessa história, filho. Só tem tu, o meu maior presente", dizia ela, sorrindo e beijando a cabeça de Érico. Ao lado de Isabel, ele fechou a cara; não queria chorar ou ficar emocionado na frente dela.

— Meu pai biológico era um marinheiro alemão, desses que velejam pelos continentes fazendo pesquisas. Não conheci o cara. — Ele fez outra pausa. — Sei lá. Pra mim o meu pai sempre foi o meu padrasto, o Cléber. Ele meio que me assumiu, e o cara é doido pela minha mãe. Mas isso não é importante. O importante é a tal da frase lá. "Os cupcakes são os muffins que tiveram coragem de seguir os próprios sonhos." Ela me incomoda porque nem todo sonho depende de coragem, entende? A minha mãe não é menos corajosa porque trabalha de recepcionista. No fundo, os sonhos são superestimados. É bobagem acreditar que a felicidade da gente depende de uma coisa só. Os muffins podem até não seguir os próprios sonhos, mas são tão bons quanto os cupcakes. É só ter alguém que acredite neles.

E ele ficou em silêncio. Sentia o rosto afogueado e o coração pulsando nas orelhas. Olhou com o canto dos olhos para Isabel, que o encarava sem demonstrar expressão. A quietude transformou-se em anos e séculos que duraram minutos intragáveis.

— É um bom argumento. Mas acho que tu não vai gostar de saber que foi por causa de um sonho que entrei nessa aposta — disse ela. Érico virou o rosto para encará-la, agora de verdade, e esperou. — Vou ser pianista, mas não do jeito que a minha avó quer, como solista nas maiores orquestras do mundo. Meu sonho é ir pra Nova Orleans tocar jazz e fazer música de verdade, não tocar essas peças de quem tá morto há mais de um século. Tô trabalhando pra isso, pra não depender da minha avó e do dinheiro dela. Essa aposta caiu como uma luva.

Érico sorriu. Isabel era mesmo feita de arte, da cabeça aos pés, de dentro para fora.

— Isso não é um sonho, Isabel. Tu já é uma puta pianista. Até eu que sou surdo me senti diferente quando te vi tocando no São Ralph.

Ela sorriu em agradecimento, um daqueles sorrisos de verdade, leves e suaves feito o beijo da brisa de primavera, e foi aí que Érico cometeu o maior erro da noite. Animado por se abrir com quem antes era tão inatingível e por rever o sorriso real, o sorriso de jazz, como ele agora reconhecia na curva dos lábios dela, Érico disse:

— Tu deveria sorrir mais, cara. Tu fica linda quando sorri assim. — Ele se calou quando ela desmanchou o sorriso e franziu o cenho. Érico corou. — Meu Deus, me desculpa. Que horror. Não foi isso que... que eu quis dizer. Tipo, eu só disse que... que tu deveria sorrir mais porque tu, tipo, tu fica muito, tipo, tu fica... tu fica muito mais linda do que tu já é quando... tu sorri assim.

O mundo inteiro ficou em silêncio enquanto Érico desmoronava. Viu, pelo reflexo no espelho, os olhos de Isabel fixos nos seus. Devagar, como se ela fosse um urso pardo enlouquecido, Érico virou o rosto. Ela estava mais próxima, irradiando mais calor, ou seria apenas a imaginação excitada pregando-lhe peças? Érico estava pronto para pedir mais um milhão de desculpas, prestes a dizer que ela deveria sorrir quando bem entendesse, que foi um mal entendido, mas não deu tempo. Isabel cortou a pequena distância entre eles com um beijo, puxando o rosto dele com a mão esquerda. Érico demorou a fechar os olhos, assustado pela reação dela, e só o fez quando Isabel subiu em cima de seu corpo.

O beijo dela era bom demais para ser apreciado aos pouquinhos. Érico abraçou Isabel com força, puxando o lábio inferior dela entre o seu. O calor do corpo de Isabel o questionava sobre o tempo com uma urgência que beirava a insanidade. Haviam se beijado há poucos dias, e agora, debaixo dela, Érico se perguntava como demoraram tanto tempo para fazer o reencontro acontecer. O gosto da boca da Isabel, a maneira como ela suspirava entre um beijo e outro, puxando os cabelos dele como se fosse sua dona, era demais para Érico. Ele queria tanto, tanto, tanto que doía; até o ouvido surdo, imprestável, queria Isabel.

Ela se afastou, apoiando os braços ao lado da cabeça de Érico, os cabelos castanhos quase tocando o nariz dele. Nas pupilas dilatadas de Isabel, ele viu refletido o desejo que sentia por cada pedaço dela. Isabel sorriu, ofegante, e perguntou:

— Mas já?

Ele achou que era por causa das próprias mãos, que descansavam no traseiro dela sem cerimônia alguma, porém o problema era de outra natureza. Isabel olhava para baixo, e Érico corou. O corpo, muito mais ágil do que a mente, refletia o estado de seus pensamentos com a precisão de um relógio suíço bem ajustado.

— Eu... me desculpa. É que... é que faz tempo que eu não... não faço isso, aí qualquer beijo um pouco mais... mais forte já deixa a gente meio...

Érico deixou a frase morrer. Isabel o encarava com os olhos em fogo, e nada daquele falatório todo importava. Debaixo dela, rendido a qualquer ação de Isabel, Érico estava entregue. De repente, não era difícil imaginá-la namorando ou tendo quatro, dez ou um milhões de transas casuais. Isabel era perfeita; os ângulos duros de seu rosto de princesa guerreira, as mãos de pintura antiga e os olhos castanhos profundos seriam a perdição de qualquer um. Isabel desceu outra vez, ameaçando beijá-lo.

— Tudo bem por mim — disse ela. — Tudo bem por ti?

Érico assentiu abobalhado, a atenção fixa no formato dos lábios dela. O que mais poderia responder com Isabel olhando-o daquele jeito infinito, usando sua camiseta azul marinho repleta de aviõezinhos brancos e beijando-o como se nada mais importasse? Seria sacrilégio escolher qualquer outra opção.

— Só... só não fala nada no meu ouvido esquerdo — pediu ele, tirando o aparelho auditivo. — Ele é meio... inútil.

Isabel mordeu a pontinha da orelha direita de Érico. Ele fechou os olhos. O hálito dela, quente feito abraço apertado, foi o suficiente para deixá-lo louco quando Isabel disse:

— Vou tentar me lembrar disso.

E a trilha de beijos desceu pela mandíbula dele, fazendo uma pausa deliciosa no pomo-de-adão, descendo pelo peito, descendo, descendo, descendo infinitamente. Ele fechou os olhos e abriu a boca.

As mãos de Isabel não seriam os únicos vícios de Érico a partir de agora.

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