SEGUNDA-FEIRA, 23 DE FEVEREIRO DE 2122.
Arthur e Lola Luporini atravessaram os portais automáticos do Advanced School nada empolgados para o início de mais um ano letivo. Como o esperado, os jornalistas voaram sobre eles quando desceram do carro, mas eles já haviam sido aconselhados na semana anterior a não dar ouvidos.
Passem reto e ignorem as perguntas, foi o que disse Rogério Castro, o Promotor de Justiça e amigo da família.
Logo na entrada do primeiro prédio, um enorme casarão de dois andares com grandes janelas, havia três bandeiras hasteadas. A primeira era dos Estados Unidos da América, a do meio era a bandeira do Brasil, e a terceira e última era a do estado de São Paulo. Na sacada do primeiro andar estavam os dizeres: FUNDAÇÃO ANGLO-BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO E CULTURA DE SÃO PAULO.
O Advanced School havia surgido após o fim da Terceira Guerra Mundial e após a Operação de Banimento — administrada por Giuseppe Specter —, em 2047, após a elaboração do novo Sistema Político Mundial.
Com a reforma, criou-se o que era conhecido como Poder Liderativo; e com isso, surgiu um cargo político de extrema importância: os Líderes Continentais. A liderança foi dividida entre cinco famílias de especialistas em relações políticas internacionais.
O objetivo do Advanced School era oferecer um ensino americano de qualidade. Apesar de possuir mais de setenta anos, a escola contava com uma estrutura moderna, funcionando em um campus com mais de quarenta mil metros quadrados. Os alunos tinham acesso a campos de futebol, quadras esportivas, estúdios de artes e laboratórios de informática de última geração.
Por se tratar de um colégio internacional, o aluno formado pelo Advanced School recebia três diplomas. O americano, o brasileiro e o bacharelado internacional.
Não vejo a hora disso tudo acabar, Arthur dizia a si mesmo. Ele não estava animado por estar se formando; sabia que teria que se dedicar para assumir a Presidência da Mineração Luporini quando chegasse a hora. Era para isso que havia passado todo o verão ao lado de Enrico, trancafiado no escritório.
Goste ou não, Arthur, esta é a nossa dinastia, era o que dizia seu tio Enrico, e você é o próximo na linha de sucessão. Lola, assim como ele, não estava com altas expectativas com relação ao novo ano escolar.
A família Luporini e Queiroz havia surgido aos arredores da cidade, sempre em grandes casas luxuosas na região dos condomínios do bairro Parque Alvorada. A dinastia deles começara quando Nelson Luporini, o patriarca, criou a mineração anos e anos atrás e investiu em depósitos de bauxita, desenvolvendo a utilização das rochas potássicas como adubo. Com o crescimento das exportações, a mineração se consolidou em nível nacional e internacional em função de seus produtos de alta qualidade e tecnologia à base de bauxita. Após a morte de Nelson, Alec assumiu a Presidência, mas agora o cargo estava nas mãos de Enrico.
Lola pegava seus horários no escritório de orientação quando percebeu algumas garotas cochichando pelos corredores, apontando para ela e Arthur.
— Eu tenho vontade de dar um soco nessas pessoas — Serena Albuquerque disse, ao esbarrar com os irmãos no corredor. — Será que eles não se tocam?
Lola cumprimentou Serena com um abraço. Elas eram amigas desde a terceira série, afinal, sempre moraram perto e estudaram juntas. Samuel, o pai dela, era o atual prefeito e havia ajudado muito no início das investigações. Na época das eleições, os Luporini o apoiaram e fizeram campanha. Serena era uma típica Albuquerque: cabelos ruivos, olhos claros e sardinhas espalhadas pelo rosto. Lola não entendia o porquê, mas Serena estava sempre com um batom vermelho.
— É bom ver vocês — ela disse, abraçando Arthur. — Vocês estão bem?
— Já estamos acostumados com as fofocas — Lola revirou os olhos.
Arthur não soube responder à pergunta de Serena. A situação era estranha, assustadora e incomoda. Não entendia como seus pais haviam desaparecido sem deixar rastros.
— Eu sabia que seria tenso voltar pro colégio desde que eles sumiram, mas... — Lola começou, mas parou sem finalizar a sentença, enxergando o mural de recados no fim do corredor. A foto dos pais estava ali com a palavra DESAPARECIDOS bem destacada.
— Se você não quiser, pode voltar para casa — Arthur disse de forma solidária, envolvendo a irmã nos braços.
— Não, tudo bem. Acho que a gente já se escondeu demais — Lola confessou, enquanto checava sua grade de aulas.
— Vai ficar bem mesmo? — Arthur soou lamurioso.
— Não se preocupa comigo — Lola sorriu.
— Qual sua primeira aula? — Arthur perguntou com interesse, olhando para o cartão da irmã. — A minha vai ser Inglês.
— História!
— Minha matéria favorita! — Arthur comentou. — A gente se vê no intervalo, então?
— Por favor!
Arthur se despediu delas e se afastou, subindo as escadas. Serena e Lola ficaram a sós. No ano passado, antes de tudo se tornar um caos, Serena havia se declarado para o primo de Lola, Rodrigo, e eles engataram um namoro. Depois disso, a relação delas aumentou ainda mais, afinal, Serena estava frequentemente na mansão dos Queiroz e vice-versa. Ela já era da família praticamente.
— Sabe que pode contar comigo, né? — Serena disse, segurando nos braços de Lola. — Não precisa guardar tudo para você, Lola.
Lola anuiu.
— Eu sei, Serena — ela respondeu, observando-a. — E eu sou muito grata por tudo.
A medida que andavam pelo corredor, Lola observou Tereza Kannenberg se aproximando. Ela era alta, preta, com lábios rosados, olhos escuros e usava tranças kanekalon lindíssimas. Ela carregava uma pilha de papéis num braço e um rolo de fita adesiva no outro. Tereza parou em frente ao mural e começou a colar os papéis.
Ela era a representante de turma do terceiro ano e melhor amiga de Serena. As duas eram grudadas, como unha e carne. Seus pais não eram tão influentes como os dela, mas tinham seu prestígio. Márcia era psicóloga no Sanatório Três Marias, em Vale Verde e ajudava a polícia vez ou outra, quando precisavam de uma consultoria ou quando precisavam traçar o perfil de um criminoso. Já André, viciado em trabalho, não saía da Mineração Luporini. Ele era o braço esquerdo de Enrico.
— O que é isso? — Lola perguntou quando chegou mais perto.
Tereza parou o que estava fazendo, virando-se.
— Haverá uma palestra na sexta-feira para os alunos do terceiro ano — Tereza explicou. — Leona e a Luma vão ceder a Mansão dos Nobres para um evento com algumas universidades em breve.
— Acho que vai ser bem bacana — Serena exclamou.
Lola apenas assentiu e se virou, seguindo seu caminho para a sala de aula no outro prédio, quando o sinal do Advanced School tocou alto no corredor.
Ela entrou na sala, mas o professor ainda não havia chegado. Lola varreu os olhos sobre o ambiente claro e ventilado procurando pelos gêmeos Queiroz. Com a bolsa vermelha caindo por seu ombro direito, ela caminhou em direção a eles. Rodrigo e Breno estavam sentados ao fundo da sala, conversando com Daniela Nacaratti.
Eles eram gêmeos idênticos.
Breno tinha cabelos castanhos curtos, assim como seu irmão Rodrigo, dono de belos e misteriosos olhos castanho-dourados. Apesar de serem os nerds da turma, os gêmeos haviam ganhado a inimizade da maioria dos estudantes e alguns professores. Três anos atrás, Rodrigo criara um perfil falso na rede social para expor alguns alunos e professores. A ideia deu muito errado quando uma publicação atingiu a filha de um dos professores. Um boletim de ocorrência foi feito e os investigadores descobriram o endereço de IP de quem usava aquele perfil falso e chegaram até Rodrigo e Breno. Os primos de Lola foram punidos e suspensos do AS por cerca de uma semana, sem mencionar o pedido de desculpas que precisaram fazer diante de todo o colégio.
— Eis que a pequena órfã volta para a escola! — Daniela provocou, chamando a atenção de Lola.
Ela soltou um suspiro sofrido e olhou em volta da sala. Encontrou a melhor amiga, Patrícia, do outro lado e correu para ocupar a mesa ao lado dela.
— Não liga pro que ela fala — Patrícia sussurrou. — Ela só quer provocar você.
Daniela e Lola não se suportavam desde o oitavo ano, quando tiveram uma briga feia e Lola armou para cima dela, roubando e escondendo o gabarito das provas finais nas coisas de Daniela.
— Bom dia, bom dia, bom dia! — A voz do professor reverberou por toda a sala numa estranha empolgação. — Quem aqui tá empolgado pra falarmos um pouco de história?
Ele se acomodou na mesa, abrindo o notebook e começou a rabiscar alguma coisa na lousa.
— Muito bem! — Micaías tornou a falar, virando-se para frente da sala. Atrás dele, na lousa, haviam cinco nomes rabiscados: CHERMONT, DUSKIN, SCOFIELD, SMITH E SPECTER. — Alguém aqui pode me dizer o que esses nomes significam?
— Poder. — Alguém em um canto da sala respondeu.
— Política. — Patrícia bradou.
— Dinheiro. — Rodrigo retorquiu.
— Liderança! — Daniela ergueu a mão ao responder a pergunta, olhando para Lola de soslaio. — São as cinco famílias que lideram os continentes desde que houve a reforma do Sistema Político Mundial.
Os olhos do professor brilharam cheios de emoção.
— Pois muito bem, Daniela! — Ele celebrou. — E quem aqui pode me dizer qual é a família que lidera a América?
— Os Specter — Lola respondeu. — O nosso líder atual é o Hanvey Specter.
— Mas não por muito tempo! — O professor vibrou, e apertou um botão no controle remoto. Na TV sobre a lousa, surgiu a imagem de uma mulher. Ela era ruiva, lindíssima e tinha os olhos verdes, como se fossem grandes esmeraldas. Parecia uma Albuquerque. — Alguém aqui sabe quem ela é?
— Samantha Marie Specter — Breno disse ao lado do irmão, conseguindo a atenção do professor. — É a filha do nosso atual Líder Continental.
— E o que acontecerá no próximo ano? — O professor questionou os alunos com curiosidade.
— Ela assumirá a América! — Lola disparou. — Samantha será a voz representante de todo o Continente na União. O dever dela, assim como o dever de todos os líderes, é garantir que as guerras fiquem no passado.
— E qual é o lema do 5QUAD? — Ele incentivou.
— Paz e crescimento! — Lola elucidou.
— Muito bom! E qual é o significado de 5QUAD?
Lola engoliu em seco, sentindo que todos os olhares da sala estavam caindo sobre ela.
— O 5QUAD nasceu a partir de uma aliança entre os cinco maiores continentes do mundo. — Lola se sentiu tensa. — O governo estadunidense assumiu a América, a África e a Oceania, enquanto o governo russo e coreano assumiram a Ásia e a Europa. Ano que vem, Samantha Specter será uma das mulheres mais poderosas do mundo inteiro.
— Meus parabéns, Lola! — O professor elogiou. — Qual foi o primeiro feito do 5QUAD?
Micaías perguntou e voltou a andar pela sala de aula.
— A Operação de Banimento — Daniela se fez ouvir. — Giuseppe Specter, na época o Líder da América, foi o comandante do processo. Eles passaram um pente fino no mundo inteiro, e baniram todos os grupos de pessoas que representavam ameaça à paz, apoiando ou tendo relações com a prática do terrorismo.
— Mas para uma União que levanta a bandeira da Paz Mundial, pagar morte com morte não me parece uma opção muito ética, não acham? — O professor lançou em tom de desafio. A sala toda ficou em silêncio, mas ele andou na direção do corredor da mesa de Lola Luporini. — O que tem a me dizer sobre isso?
— Os grupos não foram executados — Patrícia exclamou, lembrando-se do que havia lido e estudado nas férias. Os livros de História não escondiam a verdade. Os primeiros anos foram difíceis, nada pacíficos. Uma última guerra foi necessária para findar de vez com os conflitos. Muito sangue foi derramado para que o 5QUAD salvasse as pessoas e os países que estavam sendo destruídos. — Os grupos foram banidos de todo o território sob domínio do 5QUAD.
— As nações que reivindicavam território na Antártida concordaram em anular o tratado — Daniela interrompeu. — E o continente que antes era aberto à exploração científica, hoje abriga as ameaças banidas.
— Mas eles precisavam de um líder — Lola volveu a falar, tomando as rédeas da situação. — Omar Haddad era seu nome, um grande líder extremista. Ele adquiriu respeito e poder sobre seu povo.
— Mas ele nunca foi reconhecido como um dos Líderes Continentais! — Daniela parafraseou, recebendo a atenção do professor.
Micaías vincou o cenho.
Ele abriu a boca para falar, mas Lola foi mais rápida.
— Errado! — Lola exclamou com vigor. Daniela havia transformado aquilo tudo em uma competição sobre quem sabia mais. Sobre quem era a mais inteligente. — A diretoria da Constituição Intercontinental reconheceu sim Omar Haddad como um dos Líderes Continentais, mas isso só foi acontecer trinta anos depois. — Ela parou de falar, virando-se na cadeira para olhar Daniela. — Você saberia disso se estudasse um pouco mais.
***
Naquela tarde, após o término do primeiro dia de aula, Rodrigo seguiu Lola pelo corredor. Ela parou em seu armário e guardou os novos livros que havia recebido dos professores, seguindo o primo em direção ao refeitório. Na lanchonete, encontrou Arthur, Leonardo, Serena, Tulio e Tereza todos juntos na mesma mesa, jogando conversa fora.
— E aí, sobreviveu ao primeiro dia? — Tulio perguntou para Lola.
Ele era um Gutemberg, uma das famílias mais antigas e tradicionais de Cipriano. Seu pai, Conrado, era o dono do Alvorada Country Clube. Iracema, sua mãe, era uma das melhores advogadas da cidade, e seu escritório cuidava do setor jurídico da Mineração Luporini. Tulio e Arthur jogavam no mesmo time e sempre saíam para correr juntos aos finais de semana. Ele tinha a pele da cor de canela, olhos dourados vibrantes, sobrancelhas grossas e uma barba que chamava atenção. Ele e Patrícia namoravam fazia três anos e sempre topava as aventuras doidas que ela propunha. O fato dele ser bissexual não atrapalhava em nada a relação deles.
— Foi um saco — Lola respondeu com voz desanimada, jogando-se na cadeira vaga. — Daniela transformou a aula do Micaías numa competição de quem sabia mais. Nossa, eu não suporto aquela menina!
— É só ignorar que ela para com isso — Patrícia disse, surgindo por trás deles com uma bandeja.
— Acho que ela faz essas coisas pra chamar atenção — Tereza comentou.
— Todo mundo sabe que a Leona não dá a mínima para ela — Leonardo completou.
Lola gostaria de acreditar que seu desentendimento no passado com Daniela tivesse sido superado, mas a verdade era que ela ainda continuava alimentando seu ódio por Lola.
— Quem anima ir pro clube hoje? — Tulio convidou.
— Eu tô dentro! — Patrícia exclamou.
— Eu topo! — Serena se empolgou. — A gente pode jogar vôlei.
— Se o meu tio me liberar do trabalho — Arthur deu com os ombros.
— Ele está sendo treinado pra assumir a mineração — Lola evidenciou. — Passou as férias indo e vindo do escritório com o Enrico. Ele odeia esse mundo corporativo.
Arthur revirou os olhos.
— Não sei por que não treinam você — ele lançou. — Você sim sempre gostou disso, vivia seguindo o papai e sempre se interessou pelos negócios da família bem mais do que eu.
Naquele momento, entretanto, antes que Lola pudesse responder, Breno, o outro gêmeo, correu na direção deles. Lola tentava encontrar algum traço que os diferenciasse, mas até mesmo as orelhas pequenas de Breno e os perfeitos e alinhados dentes brancos eram idênticos aos de Rodrigo. Ele se aproximou. Flexionou os joelhos, apoiando-se neles com as mãos. Respirava com dificuldade.
— Vocês precisam vir comigo! — Breno disse com a respiração acelerada. De repente, todos que estavam na lanchonete começaram a correr para a escadaria principal ao ouvir o som das sirenes.
As viaturas da polícia corriam a toda velocidade pelas ruas de Cipriano. Os carros invadiram a rua do colégio, e em seguida a ambulância do hospital passou zunindo entre as pessoas aglomeradas.
— O que está acontecendo? — Arthur perguntou, olhando para o movimento desenfreado das viaturas.
Uma multidão de curiosos se formou diante do Advanced School quando Rafaela, a tia de Arthur e Lola, caminhou na direção dos sobrinhos escoltada por um homem fardado.
Rafaela se jogou nos braços de Lola, abraçando-a tão forte que a garota se sentiu sufocada por um momento. Depois de se afastar da sobrinha, Rafaela envolveu Arthur em um abraço de urso. Os olhos dela estavam vermelhos e úmidos.
— O que foi? — Lola indagou com a testa franzida. — O que está acontecendo?
— Eles encontraram seus pais. — Rafaela engoliu em seco, segurando a mão deles.
— O quê? — Lola a encarou com os olhos arregalados.
O coração começou a bater mais forte.
Lola deu um passo para trás desnorteada, sentindo o mundo ao seu redor rodopiar. Ela se afastou de Rafaela, abraçando Arthur.
Eu sabia que eles voltariam, o gesto anunciava.
Alec e Rebecca estavam de volta, como se nada tivesse acontecido. A paz seria reestabelecida. Seu peito se encheu com um pouco de esperança e ela se sentiu aliviada.
— Eu sempre soube, Rafa! — disse Lola com a voz animada. — Eu sabia que eles voltariam. Eu sabia!
— Onde eles estão? — Arthur perguntou com os olhos brilhando. Um sorriso largo nasceu, e, de repente, ele ficou inquieto. — Onde eles estavam todo esse tempo? Eles estão bem? O que aconteceu?
Rafaela pegou a mão de Lola novamente.
— Eles encontraram o corpo deles. — Lola deixou a mão cair. — Eu tentei ligar para vocês, mas só dava caixa postal.
Lola encarou a tia com as sobrancelhas franzidas. Ela teve de repetir o que Rafaela dissera três vezes, até que as coisas fizessem sentido. O coração de Lola disparou.
Eles estão mortos.