Rua Dornelas, 45

By SilvioAlencar

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Há lugares que são santuários de memórias. Há casas que tiveram bons ocupantes, que se amavam e se respeitav... More

Serelepências
Floresta de cinzas
O poder do esconjuro
Só por hoje
Envelhecer
Floresta de sangue
Gaio
Comichão
Floresta de pedras

A casa

205 19 10
By SilvioAlencar

Há lugares que são santuários de memórias.

Cada cômodo, cada pequeno objeto e reentrância recheados de momentos especiais de alguém. Um beijo roubado atrás de uma cortina, um pedido de casamento feito em um sofá da sala e até as primeiras noites de um casal. Em algumas dessas casas, foram diversos momentos de gerações de uma mesma família. Noutras foram vários de famílias diferentes. Quando entramos em um lugar desses, podemos sentir a vibração dos tempos passados. Fica impregnado no ar que se respira e na luz refletida das paredes. Os sentimentos permeiam tudo, mesclando-se com lajotas e reboco, exalando perfumes antigos e matizando a luz do ambiente.

A casa observa seus ocupantes, aprendendo a ser e criando sua própria identidade e vida. Não é apenas aquela casa, daquele número, é a casa amarela das buganvílias, ou a casa dos Pereiras, ou até mesmo a casa charmosa e bonita da esquina. Há noites chuvosas, daquelas que se acende lareiras, em que os ocupantes se reúnem para ler para si mesmos em voz alta histórias de amor que quase se pode ouvir o coração bater dentro das paredes.

Há casas que tiveram bons ocupantes, que se amavam e se respeitavam, mas também havia casas como a que ficava na rua Dornelas, 45, que, por uma série de desventuras e infortúnios, nunca teve boa sorte na escolha de seus moradores e não chegou a conhecer coisas boas para se recordar.






Eduardo havia parado ao batente da porta e encarado o capacho por um tempo. Nele não havia o tradicional "Bem Vindo", com cerdas macias para se limpar os pés, mas sim uma chapa de madeira com diversas tampas de garrafa pregadas. Não havia sujeira ou barro nelas, seja quem for que tenha morado ali parecia ter preferido pular o capacho a ter a experiência faquir de limpar os sapatos ali. Ou então já fazia tempo que este capacho tinha visto algum calçado para tê-lo sujado. De qualquer forma, não era uma boa maneira de receber seus novos moradores, pensou.

"Não vamos entrar?", perguntou Denise atrás de Eduardo.

"Claro", respondeu ele pegando-a no colo e atravessando-a pela porta. Não era tão difícil de fazer, apesar da gravidez a garota ainda não tinha pegado corpo. Sempre fora magérrima e o prognóstico era de uma gravidez sem grandes alterações. Um palito com barriga.

Lá dentro, Denise torceu o nariz. O lugar era realmente grande como prometeram, mas ninguém tinha falado das montanhas de pó, dos buracos no assoalho e dos lençóis brancos sobre os móveis velhos. Isso sem falar do cheiro. Parecia que a casa toda era um grande armário velho de alguma tia, esquecido em um sótão e aberto apenas para pegar a toalha do Natal. Havia tanto mofo e umidade ali que era surpreendente que não houvesse uma floresta de cogumelos sobre os móveis.

"Então, o que achou?", quis saber Eduardo com um sorriso acanhado.

"Ótimo", disse ela.

"Sei que não é o que sonhava", desculpou-se ele, "mas foi o lugar que pude arranjar".

"Não disse nada, Eduardo", disse ela puxando o lençol de uma das poltronas e sentando.

"Depois que dermos uma faxina e passarmos umas mãos de tinta, vai ver, vai ficar muito melhor".

"Olha, Eduardo. Se você pensa que vou me desgraçar limpando esse lugar, pode tirar o cavalinho da chuva. Você que quis que a gente casasse. Você quis que tivéssemos este bebê. Eu já tinha tudo resolvido quando você veio me tirar de casa".

"Mas, Denise, é meu filho também. Não podia deixar que tirasse".

"O corpo é meu, caralho. Já parou para pensar nisso? A vida é minha."

Eduardo ficou em silêncio por um tempo vendo a poeira navegar pelos halos de luz dos vidros turvos das janelas.

"Ainda podemos ir para a casa de minha mãe como havia proposto", disse ele por fim.

Denise pegou a primeira coisa que viu e jogou com força no rosto do marido, depois urrou de ódio e saiu à procura de um quarto pisando forte.

Eduardo levou a mão à testa e limpou o sangue com os dedos. Pegou o objeto do chão, um porta-retrato, e ficou observando as pessoas que estavam ali. Não pôde conter a tristeza daquele momento. Havia começado sua nova família com briga e sangue no assoalho. Mas o que esperar de um casal de tão pouca experiência? Ele tinha 17 e ela 18.

Eles não se falaram durante todo o dia. Eduardo levou para ela os seus utensílios femininos e alguma roupa de cama, mas depois saiu fechando a porta do quarto atrás de si. Não queria admitir, mas até que estava satisfeito com o silêncio entre os dois. Assim poderia explorar a ex-casa dos tios sossegado e relembrar onde passou parte de sua infância.

O lugar não estava tão diferente do que se lembrava, um pouco mais decadente, mas não tão diferente. Continuava com seus dois andares, com seus cinco quartos no andar de cima e a sala enorme embaixo. Havia ainda uma copa e uma cozinha na parte de trás e uma sala de fumo no lado leste. A sala principal possuía um corredor que levava a uma enorme vidraça com motivos medievais, talvez religiosos, perto da antiga biblioteca. Eduardo não saberia dizer que santos eram, nunca fora um bom católico, mas sabia que aquilo tudo não tinha começado com seus tios. Eles herdaram aquela casa de uns parentes desconhecidos daqueles que só se conhece por meio de testamento e por não deixarem herdeiros diretos. Vieram morar ali logo em seguida, fugindo do aluguel, acreditando que estariam finalmente dando uma guinada em suas vidas, na deles e na de sua prima, Ziça, ou Maria Izabel, para os não íntimos.

Ziça. Quantas vezes correram por aqueles corredores? Não fazia tanto tempo assim. Eram novos, ela um pouco mais velha e alegre. Eduardo sempre fora sério e fechado, mas com ela tudo ficava mais simples, menos ameaçador. Gostavam de perturbar a tia enquanto cozinhava. Corriam ao redor dela fugindo da colher de pau e dando gargalhadas enquanto a bronca era lançada às suas costas. Um dia haviam corrido com punhados de bananadas arrancados da mesa. Entraram na sala de fumo e se esconderam atrás de um sofá comprido. Só que o recinto não estava vazio, tio Valter estava lá fumando. As risadas dos dois morreram na hora. Ele olhou da poltrona de onde estava com uma frieza que gelou a alma das crianças. Ziça parecia que ia ter um troço de tanto que tremia. Tio Valter deixou o copo sobre o braço da poltrona, levantou-se e foi até eles. Perguntou onde haviam pego o doce. Ziça não respondeu, ficava sempre com os olhos baixos, tremendo. Então, Eduardo tomou a iniciativa e disse que era uma brincadeira, que haviam pego da mesa do jantar somente para fazer troça da tia. Mas a pergunta não tinha sido direcionada a ele.

"Como dois ladrõezinhos", disse olhando para a filha. Aquilo não era uma pergunta. Então, lentamente ele colocou a ponta do cigarro sobre as costas da mão de Ziça. A menina aguentou até onde pôde, sem se mexer ou chorar, mas por fim deixou o doce cair e tirou o braço gemendo. "Levem a bananada de volta pra cozinha e não entrem mais aqui", disse o tio voltando para a poltrona e o copo.

Isso tudo aconteceu há muito anos, mas nem tantos assim, uns três antes da morte de Ziça, mas ainda volta à lembrança de Eduardo. Por mais brutal que tenha sido a atitude do tio, a simples resistência de Ziça em não retirar de imediato o braço da brasa havia lhe marcado mais. Na época havia entendido aquilo como uma afronta ao pai, à sua violência e autoritarismo, uma forma silenciosa e feminina de demonstrar firmeza e caráter. Hoje, depois de ter visto algumas coisas, Eduardo não tem mais certeza disso. Pensando mais uma vez naquilo tudo, parecia mais que ela tinha medo de tirar o braço e ser repreendida por abreviar a diversão do pai.

Eduardo pegou uma vassoura e pôs-se ao trabalho. Não adiantava nada ficar relembrando essas coisas.

Eram dez da noite quando Denise desceu. Eduardo percebeu sua aproximação e ficou em silêncio no sofá, esperando. De certo estaria medindo a arrumação dele. É claro que não estaria da forma que ela faria, afinal ele era um homem, mas pelo menos tentou. Esfregou tudo, varreu, lustrou e até tentou limpar a mancha de sangue no chão, mas a madeira já havia bebido tudo. Deu um fim nos lençóis e pôs para dentro suas coisas, que se resumiam a um ventilador, algumas panelas, pratos, mantimentos e malas de roupas. Trouxe para a sala de estar o sofá da sala de fumo e o cobriu com uma colcha para ocultar os rasgos. Não queria ter que receber as pessoas naquele cômodo, por isso quase o desmobiliou por completo. Fez tudo isso em um dia, teria feito mais se tivesse ajuda, mas não era hora para novas brigas. Decidiu que abriria algumas cervejas, porque merecia, e tentaria fazer as pazes. Afinal, estava sendo difícil para ambos.

Sentiu um vento frio passar pela janela e viu um pequeno movimento pelo canto do olho. Denise estava ao seu lado, olhando para ele. Ela vestia sua camisola transparente de núpcias e sorria para ele por trás dos cabelos desgrenhados. Será que estavam em paz de novo, então? Ela lhe estende os braços, convidando-o a se levantar, o que ele faz com certa dificuldade, afinal não fora apenas uma garrafa de cerveja que bebera. Frente a frente tinham a mesma altura. Denise enlaça o marido pelo pescoço e o aproxima de si, dizendo:

"Esperei muito por isso", então o beija. Eduardo acaricia seus seios e o topo das nádegas enquanto trocam beijos apaixonados. Eles dançam sem música ao som da própria casa, que murmura ao sabor do vento e da idade. Denise solta o laço da camisola despindo-se por completo e ajuda o marido a seguir-lhe o exemplo. Então, os dois se deitam sobre o sofá e ali fazem amor por toda a noite.

Eduardo tinha lido algo sobre relações sexuais e a libido feminina durante a gravidez, pois tinha medo de machucar o bebê ou ficar na seca por todas as 40 e tantas semanas. Mas não podia imaginar que os hormônios alterassem tanto assim a sua esposa. Ela parecia insaciável e até mesmo, como dizer, "criativa". Quiz experimentar diversas posições, e na maioria das vezes parecia uma garotinha brincando pela primeira vez. Sabia a teoria, mas se atrapalhava na prática. O que se diferenciava de sua mulher pré gravidez. Eduardo sabia que não tinha sido o primeiro e, para falar a verdade, nem cogitou saber quantos houve antes dele. Denise não era dada à criatividade, suas transas sempre seguiam o mesmo roteiro prático, que era o modo mais rápido para o orgasmo de ambos, e ela o executava com a perfeição da prática. Agora, era diferente, ela parecia não ter pressa, experimentando tudo que não tiveram no pouco tempo de seu relacionamento.

Adormeceram abraçados. No meio da madrugada, Eduardo tateou à procura da mulher, mas ela havia se levantado, pensou em ir atrás dela, mas preferiu fechar os olhos e esperar que voltasse.

No dia seguinte, acordou com o corpo dolorido, mas revigorado pelo bom sexo. As janelas da casa estavam abertas e podia-se ouvir o som dos pássaros cantando nos jardins. Em cima da mesa de centro havia um vaso branco com uma única rosa vermelha dentro. Aquilo abriu um sorriso em Eduardo. Nada melhor que uma noite selvagem para salvar um casamento.

Foi até a cozinha e fez ovos e torradas, passou café e dispôs tudo sobre um tabuleiro reto de bolo, melhor seria se tivesse uma bandeja, mas não estava preparado para o romance. Subiu as escadas com cuidado e abriu a porta do quarto com o cotovelo. Sua esposa estava deitada de bruços. Sacudiu-a com delicadeza e puxou os lençóis.

"O quê?", perguntou ela por baixo do cabelo.

"Fiz café para você".

Ela levantou a cabeça e examinou o tabuleiro. Endireitou-se e encarou estupefata para o marido.

"Puxa, obrigada, Eduardo", disse pegando uma torrada. Ela deu uma mordida e parou, olhou para ele e então o abraçou. "Ahhh, eu sou horrível. Desculpe. Desculpe. Desculpe".

"Tudo bem", disse ele afastando-a. "Já fizemos as pazes".

"Como está o seu rosto?", disse ela acariciando o curativo feito pelo marido.

"Ainda está magoado. Mas vou ficar bem".

"Eu vou melhorar, juro", disse com a boca cheia de torrada. "É só uma fase. São os hormônios, deixam a gente à flor da pele. Minha vó diz que tem mulher que fica até com os sentidos aguçados, cheirando coisas a casas de distância, ou até que tem premonições. Terminando aqui vou lá em baixo ajudar você com as coisas".

Eduardo levanta rindo e acariciando o cabelo moreno e curto da esposa.

"Então estava tão alvoroçada ontem que nem percebeu que eu já tinha arrumado tudo?"

"Alvoroçada?", sorriu ela levando a xícara de café à boca.

"Bem, não sou bom com definições. Mas o jeito que estava ontem à noite só podia ser definido como alvoroçada. Todas aquelas posições e beijos. Não tô reclamando. Adorei tudo. Só que você tava bem animada lá na sala ontem à noite, mais até que o normal", Eduardo estava falando meio cabisbaixo, sexo ainda era novo para ele, ainda o intimidava. Quando olhou para sua esposa, viu que ela não estava mais sorrindo. Estava séria e até mesmo transtornada. "O que foi? Foi algo que disse?", quis saber o marido, já tentando prever o que viria voando em direção de sua testa. A xícara, o bule, ou a faca do pão.

"Eduardo", disse ela séria, "eu não saí do quarto ontem à noite".


Eduardo estava enganado, havia muito o que fazer na casa. Denise ajudou, tirou pó, guardou coisas cafonas em caixas e abriu cortinas. Tinha a noção clara de que levaria muito tempo para deixar a casa com a sua cara, mas tinha que começar de alguma forma. Tirou da bolsa de nylon alguns de seus CDs favoritos e os arrumou em cima da lareira. Usou até uma escultura de mármore para apoiá-los e mantê-los em pé. A ideia era colocar o micro system entre duas fileiras. Quando foi buscar o aparelho ouviu um estrondo. Ao voltar, viu que um quadro tinha caído e destruído todos os CDs. Ela foi buscar uma vassoura para limpar toda aquela bagunça, mas quando tentou abrir a porta da cozinha a maçaneta veio em sua mão e ela caiu sentada no chão. Mais tarde, quando limpava um dos quartos, foi assaltada por uma revoada de cupins vindos por trás de um quadro. Quando tentou fazer café, os tubos do gás haviam entupido e a água do banho estava fria. Ela se machucou tentando tirar os pregos que prendiam algumas tábuas da janela. Eduardo teve que fazer tantos pequenos curativos em Denise que acabou com o estoque de esparadrapo.

À noite comeram alguns sanduíches com Nutella e Denise foi dormir. Eduardo não quis ir, disse que queria assistir ao final de um filme.

Depois do café da manhã não voltaram a falar sobre a alucinação de Eduardo. Riram bastante e depois desconversaram. As tarefas do dia ocuparam suas mentes e na verdade não havia motivo para voltar ao assunto. Eduardo acompanhou o dia da esposa e atentamente reparou nos mínimos detalhes. Como a porta da despensa que ela havia acabado de abrir e que de uma hora para outra, sem vento, fechava, fazendo com que Denise ficasse presa. Ou o mau cheiro de alguns cômodos que momentos antes estavam refrescantes e aromáticos para Eduardo. Não comentou com a esposa nada disso. Não era uma coisa com que ela pudesse lidar, ou compreender. Só havia uma coisa a fazer. Esperar.

Eduardo esperou. O filme que assistia já havia terminado e outro já estava na metade. Lá fora as criaturas da noite começavam o seu concerto e a casa também esperava. Não havia vento, nem cheiros ou rosas. Havia um receio mútuo pelo que viria e ninguém queria dar o primeiro passo. Então, esperavam.

Foi às 3h da manhã que Denise finalmente desceu.

"Desculpe", disse ela vestida com a camisola transparente da outra noite.

Eduardo se levantou do sofá e a encarou. Dessa vez não bebera, preferira refletir e ensaiou as palavras muitas vezes, mas naquele momento só lhe veio duas: "Por quê?"

Denise ficou quieta. Tentou falar, mas não saiu nada de novo, apenas um outro "desculpe".

"Sei quem você é", disse Eduardo depois de um tempo constrangedor, "você estava aqui quando eu era criança. Era você, e não Ziça que fazia aquelas coisas. Você a possuía, como faz agora com Denise".

Os olhos de Denise se enchem d'água. "Não era para acontecer o que aconteceu, ela era tão doce, tão pura. Mas eu era tão antiga, mas nunca tive oportunidade de viver realmente. Queria tanto viver e somente ela se abria a mim. Queria poder tocar e sentir tudo que vocês podiam. Fazer tudo que sempre vi vocês fazerem. Sei que era errado, mas eu tinha tanta sede de viver".

"Você tentou comigo", lembrou-se Eduardo horrorizado, "Tentou me seduzir".

"Sim, parecia a escolha óbvia, mas você era apenas um garotinho, tão inexperiente quanto eu mesma. Não iria dar certo".

"Meu Deus", Eduardo mal podia se manter em pé tamanho horror que sentia. "Então, o que falavam de meu tio Válter e Ziça. Era você? Era verdade?"

"Eduardo, não sabe o que é ser como eu", Denise chorava copiosamente. "Não sabe o que é não sentir, apenas ver as alegrias e tristezas dos outros. Ser apenas o receptáculo para que a vida dos outros tomem forma. Eu precisava, eu queria tanto..."

"Foi você quem a matou também? Quando cansou-se do seu joguinho de prazer?"

"Não", disse Denise baixando os olhos. "Ela despertou enquanto estávamos na cama. Eu e o pai dela, Válter. Naquela mesma noite, ela cortou os pulsos no banheiro".

Denise sentou-se no sofá, não conseguia mais encarar Eduardo nos olhos.

Eduardo sentia um misto de asco, ódio e piedade por aquela mulher. Por mais que racionalmente soubesse que aquilo não era sua esposa, não conseguia dissociar a imagem dela. Aquilo o confundia e no fundo sabia que era intencional. Tentou ordenar os pensamentos por mais surreal que aquilo pudesse parecer. O que realmente havia acontecido há anos atrás naquela casa? Essa criatura, seja lá o que for, estava tão desesperada por sentir-se viva que apelou à única maneira que tinha ao alcance. Cometeu atrocidades em busca de algo que as pessoas tinham com tanta fartura. Seus pecados advinham de uma afobação quase pueril. Foi a inexperiência e o desejo de viver que a levaram àquilo tudo. Ela matou sua prima, mas não queria o seu mal, neste sentido ela era tão parecida com ele transando sem camisinha com Denise quanto com um assassino em série.

Isso tudo estava na mente de Eduardo quando ele se aproximou de Denise para levantá-la e abraçá-la. Mas quando ela se voltou para ele, Eduardo viu fundo em seus olhos antigos e lhe veio uma ideia simples.

"Você não a impediu de morrer. Você poderia, mas não o fez. Por quê?"

Denise ficou em silêncio, sem mais lágrimas. Eduardo precisaria muito mais que seus 17 anos para entender a complexidade da expressão que Denise fez naquele momento, talvez homem algum um dia possa, mas o pouco que leu o fez tomar uma decisão.

"Deixe o corpo de minha esposa, agora".

"Desculpe, mas acho que prefiro ficar aqui", disse ela se levantando e girando com os braços abertos. "Sabe, acho que a maternidade me fará muito bem. Não acha? Como será ser mãe? Será que ele terá meus olhos, ou terá essa cara chorona sua? Sim, isso sim será uma experiência realmente nova."

Eduardo pensava febrilmente, calculando as suas chances, tentando lembrar de algo que lhe desse vantagem.

"Seremos muito felizes, Eduardo. Vai ver. Você me comprará aqueles vestidos para prenhas e eu desfilarei para você. Todas as noites faremos amor e eu serei uma ótima mãe. Ela brincará por esses corredores, eu abrirei as portas e nunca a deixarei cair pelas escadas. Seremos muito felizes sob esse telhado. Se você tentar me deixar, irei fazê-las sofrer, Eduardo. Não serão pequenos cortes, será mais, muito mais..."

"Engraçado", disse rindo Eduardo de repente.

"O que é tão engraçado", irritou-se Denise.

"É que, de toda as coisas que disse...", disse Eduardo se aproximando, "nenhuma delas acontece fora da casa".

O medo nos olhos antigos de Denise foi a resposta que Eduardo precisava. Ela não era pesada, ainda faltaria um tempo para que a barriga a mudasse. Eduardo a levantou e jogou seus corpos contra o vitral dos santos. A explosão de cores brilhou em volta deles enquanto voavam para fora da casa. Eduardo jogou todo o peso para o lado, protegendo a cabeça da esposa com as mãos e sustentando o peso dela ao bater no chão. Rolaram pelo gramado ressecado e lamacento até que pararam perto da cerca.

"O que está acontecendo?", perguntou Denise meio sonolenta.

"Nada, amor", disse Eduardo entregando as chaves do carro para a esposa. "Ligue o motor e me espere".

"Mas o quê..."

"Vai logo, porra", disse Eduardo correndo para os fundos.

A casa toda tremia. Suas vidraças trincavam e os alicerces estalavam como se quisessem se soltar e sair correndo. Eduardo pegou uma pilha de revistas velhas que tinham tirado da casa, amarrou-as com a corda do varal e acendeu o papel com um fósforo da churrasqueira. Olhou uma última vez para a janela da cozinha, viu Ziça lá, uma senhora negra,  sua tia e uma mulher muito bonita, ruiva com peles de animais nos ombros. Elas ficavam alternando, uma atrás da outra. Todas pareciam muito tristes, despedindo-se. Então, a porta da cozinha se abre sozinha e Eduardo joga as revistas para dentro.


Levou a esposa para o hospital, além dos cortes dos vidros ela havia perdido o bebê. Talvez tenha sido melhor assim. Os comentários de todos lá era geral. Tinha sido muita sorte terem saído de lá a tempo, antes do fogo aumentar. Alguns dos mais antigos diziam que a aquela casa já ia tarde, que há muito tempo tinha de ter sido demolida, tamanhas tragédias haviam acontecido ali. Todos enumeravam o quanto ela era amaldiçoada, mas apenas um sabia o quanto. Eduardo não podia parar de pensar nisso. Era realmente terrível presenciar tantas coisas e ser sempre tão sozinha. Por fim, concluiu que fora melhor assim. Aquela casa merecia descansar.

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