O Sítio

By andre_s_silva

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Série literária de mistério e terror inspirado no Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato. Pedrinho é um... More

1x01 - Férias Fora de Época
1x02 - Lúcia
1x03 - Sonhos Inquietos
1x04 - As Plantas Mortas
1x05 - O Esconderijo
1x06 - Dois Primos
1x07 - A Procissão Negra
1x08 - Monstros
1x09 - Emília
1x10 - A Marca de Carvão
1x11 - O Peão (Parte I)
1x11 - O Peão (Parte II)
1x12 - Montes Calmos (Parte I)
1x12 - Montes Calmos (Parte II)
1x13 - Pedro (Parte I)
1x13 - Pedro (Parte II)
1x14 - Massacre no Engenho Oliveira
1x15 - A Promessa (Parte I)
1x15 - A Promessa (Parte II)
1x16 - Lembrança Partida
1x17 - Comida de Porco
1x18 - Afogados (Parte I)
1x18 - Afogados (Parte II)
1x19 - A Curva Impossível (Parte II)
1x19 - A Curva Impossível (Parte III)
1x20 - O Véu
1x21 - Benta (Parte I)
*NOTA AOS LEITORES*
1x21 - Benta (Parte II)
1x21 - Benta (Parte III)
1x21 - Benta (Parte IV)
1x21 - Benta (Parte V)
1x21 - Benta (Parte VI)
1x21 - Benta (Parte VII)
1x22 - A Semente (Parte I)
1x22 - A Semente (Parte II)
1x22 - A Semente (Parte III)
1x22 - A Semente (Parte IV)
1x23 - Um Novo Lar
Se você gostou de "O Sítio"...

1x19 - A Curva Impossível (Parte I)

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By andre_s_silva

Não havia sinal do Pai da Senzala, mesmo assim Pedrinho preferiu não arriscar. Tão logo sentiu-se em condições de correr, abandonou seu esconderijo no meio das raízes às margens do rio e saiu em disparada pela mata, só parando para se recuperar quando já estava para lá do meio do milharal.

Pedrinho apoiou-se na haste que sustentava o Visconde de Sabugosa e respirou fundo, sem se incomodar com o cheiro forte que exalavam as espigas mortas ao redor do espantalho. Então, tateou as costas, tentando inutilmente descolar a camisa, que de branca agora estava rósea pelo sangue aguado, do corte provocado pelo ataque do monstro.

Pedrinho sentia-se exausto. Mas também livre, e mais corajoso do que jamais havia se sentido. Graças a sua bravura, Emília se fora, e agora ele, Dona Benta e Narizinho poderiam buscar a ajuda de que tanto precisavam.

Retomando a travessia pelo milharal, Pedrinho observou, desconfiado, que não havia sequer um peão trabalhando na colheita. Não que quisesse esbarrar com um, muito pelo contrário. Depois do que testemunhara na vila ribeirinha, do que ocorrera com Barnabé... Queria se manter o mais longe possível do povo de Tia'Nastácia. Ainda assim, Pedrinho achou muito estranho, e suspeito, ver carrinhos de mão e pás abandonados às margens da plantação, com o Sol já tão alto no céu...

Seu pensamento foi interrompido no instante em que deixou o milharal.

- Narizinho!!! - gritou Pedrinho, correndo de encontro a ela.

A menina estava estirada bem no meio da trilha. Seu corpo estrebuchava. A cada violento espasmo, uma golfada de água salpicada de vermelho forçava caminho pela garganta de Narizinho, inundando-lhe o rosto.

- Narizinho... - clamou ele, ajoelhando-se ao seu lado. - Narizinho... acorda!

Percebendo como ela sufocava, Pedrinho tratou de colocar Narizinho de lado. Em seguida, bateu com força em suas costas, como sua mãe fazia nas vezes em que se engasgava. Narizinho, contudo, continuava a se debater; seu vômito já formava uma poça maior do que ela, ainda assim, continuava a expelir água vermelha.

- Socorro! - berrou Pedrinho, sabendo, em seu íntimo, que ninguém viria. - SOCOORROOOO!!!!

O desesperou abateu-se sobre Pedrinho outra vez. Narizinho estava morrendo. Ele sabia que precisava fazer alguma coisa, e rápido, do contrário... do contrário... Não, a ideia de perder sua melhor amiga era simplesmente impensável. Assim, reunindo uma força que nem mesmo ele sabia que tinha, Pedrinho passou um dos braços de Narizinho ao redor do pescoço e levantou-a, cuidadosamente. A trilha adiante serpenteava por altos e baixos, até sumir no ponto em que, Pedrinho sabia, se juntava à estrada principal do sítio. Ao longe, despontavam a fachada branca e as janelas negras da Casa Grande.

Jamais parecera tão distante.

O peso de Narizinho contra si tornava cada passo à frente um desafio lento e doloroso, mesmo assim, Pedrinho não esmoreceu. Tomando o cuidado de manter a cabeça de Narizinho baixa, de forma que ela não tornasse a se engasgar com a água que continuava a pôr pra fora, Pedrinho seguiu arrastando-a, aos tropeços, pela trilha acidentada.

Pedrinho não sabia qual dor era pior, se a do rasgo sangrento nas costas, das solas castigadas de seus pés descalços, ou das pernas, às quais o esforço de carregar Narizinho infligia câimbras pulsantes e profundas. Ao alcançar a estrada, Pedrinho acelerou o passo, o que fez todas as dores piorarem um pouquinho mais.

- Socorro! - gritou Pedrinho, ao avistar os jardins da Casa Grande. - DONA BEENTAAA, SOCOORROOO!

A primeira a vê-los, porém, foi Néia. A empregada acabava de passar diante da casa, carregando um cesto de roupas.

- Minha nossa senhora! - exclamou ela, indo de encontro aos dois. - Ajuda aqui! Gente, vem rápido!

Logo, Pedrinho se viu cercado por Néia e suas ajudantes. Duas delas seguraram Narizinho pelos braços e a conduziram, em passos rápidos, para dentro da casa. Ao perceber o estado de Pedrinho, Néia dirigiu-lhe um olhar horrorizado e disse:

- Pelo amor de Deus, o que vocês aprontaram agora?!

- A gente foi brincar no rio. - Pedrinho mentiu sem hesitar. - Mas o tronco tava muito molhado, a gente escorregou e caiu na água. Desculpa!

- Criançada dos infernos! - esbravejou Néia. - Nem em dia de luto dão um descanso! Anda, vai pra dentro!

Pela porta entreaberta da sala, chegava a voz alarmada de Dona Benta:

- Lucinha!

Agora que seu corpo começava a esfriar, as câimbras nas pernas de Pedrinho pareciam se agravar ainda mais. Subiu mancando os degraus da varanda. Chegando à porta da sala, deparou-se com as empregadas carregando Narizinho escada acima.

- Põe ela na minha cama, que tem mais espaço! - orientava Dona Benta. - Néia, rápido, pega a... Pedrinho?

O menino passou por ela como uma flecha e subiu as escadas atrás de Narizinho. A breve visão de suas costas empapadas de sangue pareceu levar Dona Benta a um estado de choque.

As empregadas acabavam de entrar no quarto de Dona Benta. Pedrinho adiantou-se a elas, avançando até a imensa cama que ocupava o centro do cômodo e prendendo a mosquiteira de renda em uma das colunas do dossel. Em seguida, as duas deitaram Narizinho com cuidado sobre a colcha bordada. O vômito havia parado, mas Narizinho continuava inconsciente.

Dona Benta chegou com Néia à soleira da porta, deparando-se com o estado deplorável de Pedrinho. Cabelos desgrenhados lhe emolduravam o rosto sujo de terra e lágrimas. O corpo estava quase todo marrom, não se distinguia mais pele de roupa sob as pesadas crostas de lama.

- Minhas crianças... eu nem... eu nem sei...

As palavras fluíam com dificuldade pelos lábios enrugados de Dona Benta. Tentava tocar Pedrinho, mas parecia temer feri-lo ainda mais. Os olhos, rasos d'água, alternavam-se ele e Narizinho.

- Tá tudo bem, Dona Benta. - murmurou Pedrinho, tomando entre as suas as frágeis mãos de sua anfitriã. Antes de continuar, deu uma olhadela desconfiada para Néia e suas ajudantes. - Acabou. Eu dei um jeito nela... na Emília. Ela não pode mais machucar a gente.

Por um momento, Dona Benta pareceu não entender o que acabara de acontecer. Pedrinho dirigiu a ela um olhar cúmplice, esboçando um sorriso tal qual não fazia há muito, muito tempo. De súbito, foi como se o semblante da senhorinha se acendesse, tomando por uma sensação de alívio imensurável.

- Néia.. vocês podem dar licença, por favor?

- Sim, senhora. - respondeu Néia, sem abandonar o ar de reprovação.

- Obrigada.

Quando as três deixaram o quarto, Dona Benta tascou em Pedrinho um abraço que era ao mesmo tempo forte e delicado. A sujeirada não lhe incomodava nem um pouco.

- Tão corajoso... - disse ela. - Você é igualzinho seus pais, Pedrinho. Tão corajoso quanto eles.

As palavras fizeram o sorriso de Pedrinho se abrir um pouco mais. De repente, Narizinho foi acometida por um acesso de tosse. Na mesma hora, Pedrinho voltou-se para ela, coração entalado no meio da garganta.

- A Lucinha...

- Eu não sei o que aconteceu. - disse Pedrinho, como se pedindo desculpas. - Ela já tava assim quando eu... ela tava na trilha perto do milharal.

- Se acalma, meu filho. - disse Dona Benta, afagando-lhe o rosto. - O que importa é que vocês tão aqui agora. Eu vou descer pra preparar um banho pra você, pra gente te tirar dessas roupas imundas e pôr gase nesses machucados. Fica de olho na Lucinha, tá bom?

Pedrinho acenou um sim com a cabeça, sem desgrudar os olhos de Narizinho. Ao que Dona Benta os deixou, Pedrinho chegou mais perto da cama. Sua vontade era de deitar ao lado dela, abraçá-la, protegê-la, mas sabia que não poderia fazer isso sem emporcalhar a ela e aos lençóis de Dona Benta com lama e sangue. A visão de Narizinho tão fragilizada, jazendo pálida e lívida como uma doente, sem que ele nada pudesse fazer para ajudá-la, lhe partia o coração.

Pensando bem, aquela era a pior dor de todas.

Ao menos, Narizinho parecia estar se recuperando. A tosse e a tremedeira perdiam força, e estava respirando melhor. Pedrinho não queria nem imaginar o que poderia ter acontecido se não tivesse regressado do rio exatamente naquela hora. Causava-lhe um arrepio a ideia de Narizinho estatelada no chão, completamente sozinha, golfando e sufocando como se estivesse... como se estivesse...

Um pensamento terrível cruzou a mente de Pedrinho.

Um instante depois, Narizinho estava sobre ele.

A investida fora tão repentina que Pedrinho ficou sem reação. Narizinho simplesmente pulou em sua direção, como se tivesse levado um choque, e agarrou-se à dobra de sua camiseta suja. Havia algo de muito errado no rosto da menina. Os olhos estavam arregalados e suplicantes, a boca aberta tentava dizer alguma coisa, mas só emitia um ruído gutural.

As pequeninas mãos continuavam a pressionar a roupa de Pedrinho, mas era mais do que isso. Pareciam tentar esmagar o tecido, esmiuçá-lo, rasgá-lo com as pontas dos dedos. Narizinho aproximou o rosto da cintura de Pedrinho, fungando como um animal que fareja algo no ar. Então, súbito como havia despertado, deitou-se e fechou os olhos outra vez.

Ainda chocado, Pedrinho levou as mãos para dentro da camiseta, deparando-se com algo que por pouco não esquecera que estava ali. A folha quase se desmanchara por conta de sua queda nas águas do rio, mas parte de seu conteúdo ainda estava legível.



"Ela é de verdade. Ela diz que quer ser minha amiga para sempre. Eu também quero."



Pedrinho esmigalhou entre os dedos o que restava da página. Algo lhe dizia que Dona Benta não iria querer mais aquilo.

- Pedrinho, vem que a água já tá quente! - gritou a senhorinha, lá de baixo.

O banheiro principal da Casa Grande até possuía um chuveiro moderno, mas como não havia rede elétrica passando pelo sítio, a boa e velha combinação de balde com água quente e uma vasilha era ideal para manhãs mais frias como aquela. O toque ardente na ferida aberta em suas costas causou-lhe certo incômodo, ainda assim, Pedrinho não teve pressa. Apenas deixou que a água escorresse demoradamente da testa aos calcanhares, limpando seu corpo de toda aquela lama e sangue.

Os olhos fechados não lhe permitiram ver o pequeno vulto passando pela porta do banheiro.

Terminado o banho, Pedrinho, vestindo apenas uma bermuda dada por Dona Benta, sentou-se à sala para que fosse tratado de seu ferimento. O unguento que ela aplicou em suas costas era ardido e tinha um forte cheiro de álcool. Contudo, uma vez que Dona Benta começou a cobri-lo com gaze, a ardência foi pouco a pouco dando lugar a uma agradável sensação de formigamento.

- Agora a gente já pode ir embora, Dona Benta. - disse Pedrinho, temeroso. - A gente precisa ir, antes que fique escuro. Eu não vi nenhum peão trabalhando hoje. Acho que todos eles tão lá com a Tia'Nastácia.

- Nós vamos embora, Pedrinho. - afirmou Dona Benta. - Hoje ainda, assim que a Lúcia tiver condições de subir na carroça. Vamos subir e ir voando pra Montes Calmos, só nós três. Vamos contar pra todo mundo o que aconteceu.

- Mas o Barnabé tentou fazer isso...

- Dessa vez a Emília não tá aqui. O poder que a Anastácia tinha sobre essa casa não existe mais, graças a você. Dessa vez, eles vão me escutar. E o que aconteceu com o pobre do Barnabé não vai ficar impune.

Foi preciso que Pedrinho estivesse livre das dores que lhe afligiam o corpo. Foi preciso que estivesse em paz. Foi preciso o breve instante que seguiu as palavras de Dona Benta, para que Pedrinho escutasse, em meio àquele silêncio ensurdecedor, a ausência da voz de seu amigo.

Barnabé estava morto.

O choro irrompeu de uma só vez pelos olhos exaustos do menino. Aos soluços, Pedrinho apenas se deixou envolver pelo abraço apertado de Dona Benta, extravasando contra os ombros da senhorinha todo o pranto contido das últimas horas. Barnabé se fora, para sempre, e por mais que quisesse não podia deixar de se sentir culpado por isso.

- Chora, meu filho, pode chorar... - acalentava-o Dona Benta. - Vai ficar tudo bem, eu prometo.

Pedrinho não saberia dizer quantos minutos passou chorando no colo de Dona Benta, mas foram muitos. Já não tinha mais lágrimas para chorar quando ela afastou-o delicadamente e, fitando seus olhos inchados, perguntou:

- Pronto, tá se sentindo melhor?

Pedrinho balançou a cabeça. Sentia-se verdadeiramente aliviado.

- Que bom. Agora vou preparar uma comidinha pra você e pra Lucinha, que já passou da hora. Nem café da manhã tomaram!

- Eu vou ficar lá em cima com a Narizinho.

- Boa ideia. Assim que ela acordar, me avisa, tá bom?

- Tá bom.

Dona Benta beijou-lhe a testa e dirigiu-se a cozinha. Pedrinho respirou fundo, vestiu a camiseta que ela trouxera (estava quentinha e perfumada como se tivesse acabado de sair do varal) e seguiu até a escada.

Ao pôr o primeiro pé no degrau, contudo, estacou.

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