A avenida, que Barnabé revelou ser a principal da pequena cidade, era interrompida no meio por uma praça larga e arborizada, que Pedrinho já divisava à distância. Segundo o peão, era lá que ficava o posto dos correios. Antes de seguirem para a praça, contudo, precisaram fazer mais uma parada, desta vez em um aviário.
Quando já estavam de saída, Barnabé chamou por um garoto que avistara atravessando a rua: - Ô Valtinho!
- Fala, Barnabé! - o outro respondeu-lhe.
- O telefone do teu patrão tá funcionando?
- Acho que sim, por quê?
- Porque quero usar né, sua besta! - exclamou Barnabé. - Fala pra ele que vou passar lá daqui a pouco. Não esquece, moleque!
- Tá certo...
Barnabé agitou o cabresto, fazendo o cavalo acelerar o galope até a praça. Chegando lá, peão e menino desembarcaram, e o primeiro tratou de amarrar seu animal à sombra de uma árvore. O ronco alto de motor anunciou a passagem de um carro conversível que contornava a praça no sentido contrário. Um rapaz trajando óculos escuros e uma jaqueta preta de couro estava ao volante. De pé no banco do carona, uma linda jovem de vestido florido e lábios rubros de batom sorriu e acenou um tchau para Pedrinho, ao que o carro passou em alta velocidade, rumo à saída da cidade.
- Essa garotada... - resmungou Barnabé. - Toma Pedrinho, o dinheiro pra sua carta. Os correios ficam ali do outro lado da praça, naquele muro amarelo, tá vendo?
- Já vi. - respondeu Pedrinho, recebendo de Barnabé uma moeda prateada. - É que eu queria também comprar um..
- Tá certo, tá certo.. - interrompeu Barnabé, esfregando a testa. O peão tornara-se, subitamente, mais agitado. - O presente pra Narizinho. Aqui, toma mais um cruzeiro-novo. Deve dar. Só não demora, viu? Vou resolver uma coisa aqui perto e já passo no posto pra te buscar.
O peão despediu-se e atravessou a rua, deixando Pedrinho com a impressão de que partia para dar o tal telefonema. Surpreendia o menino que houvesse um aparelho telefônico na cidade, já que estes eram raros mesmo onde morava. Na certa, deveria pertencer a algum comerciante rico.
Pedrinho guardou as duas moedas no bolso. A praça ao seu redor tinha o formato oval e possuía, ao longo de toda sua extensão, canteiros de flores separados por estreitas passagens cimentadas. Adiante havia algumas árvores dispostas desordenadamente, e Pedrinho não pôde deixar de sentir certo orgulho de si mesmo quando (graças as valiosas lições de Narizinho) foi capaz de diferenciar corretamente pitangueiras, goiabeiras, e pés-de-acerola. No centro da praça, além das árvores, existia um largo, no qual fora erguido um monumento de pedra.
Caminhando por entre os canteiros, Pedrinho foi pouco a pouco tomado pela impressão de que havia algo de estranho no ar daquela cidade. Por mais que a primavera se fizesse ver pela abundância de flores coloridas, não havia sinal de seu perfume. O sol não dividia o céu com nenhuma nuvem, ainda assim sua luz parecia incidir pálida sobre o verde das árvores, roubando-as de sua viçosidade. Subitamente, Pedrinho sentia o mundo como se este fosse um suco em que tivessem posto muita água. Estava triste, sem uma razão clara para isso.
Quem sabe, fosse só o susto que passara mais cedo na estrada.
Quem sabe, fosse só a falta que sentia de Narizinho.
- Meninas! Meninas, voltem aqui! - os gritos vinham de uma mulher.
Como se despertasse de um sonho, Pedrinho viu-se diante de duas meninas, a correrem de mãos dadas em sua direção. Tudo o que as diferenciava era a cor do vestido: uma usava azul, a outra, vermelho. Pedrinho espantou-se, nunca tinha visto irmãs gêmeas antes. Atrás delas, ainda cruzando o largo central, uma mulher carregando várias sacolas de compras fazia o possível para acompanhar as pequenas, mas estas não davam qualquer sinal de que atenderiam a seus apelos.
Pedrinho continuou a observá-las por mais algum tempo, até que desapareceram no meio do vai-e-vem de pessoas que agitavam o centro da pacata Montes Calmos. Contudo, ali no largo central da praça, não havia mais ninguém com ele. Pedrinho retomou sua caminhada, mas não sem antes deter-se por um instante para observar de perto o curioso monumento cuja sombra se esticava sobre o largo.
Tratava-se de uma coluna de pedra quadrada, mais ou menos da altura de Pedrinho, cujo topo apresentava um corte diagonal. Na superfície polida era possível ver a marca sombreada da cruz que um dia coroara o pilar, mas que se perdera, fora roubada, ou por qualquer motivo removida dali. A parte frontal do pilar, por sua vez, trazia afixada uma placa de metal, em cujos dizeres parcialmente desgastados Pedrinho pôde ler:
“Em memória dos -809 filhos e filhas de Deus, cujas vidas as águas l-varam embora.
Abr-- de 1921.”
Pedrinho sentiu um arrepio na nuca. Não queria nem pensar no significado daquela lúgubre mensagem. Apenas deu as costas ao monumento e seguiu para o outro lado da praça, atravessando a rua sem olhar para trás.
Ao lado da fachada amarela do posto dos correios havia outra, mais alta e branca. “Theatro Municipal” - dizia o letreiro, e Pedrinho achou engraçado como haviam escrito “teatro” errado. Além disso, parecia que ali não era um teatro coisa nenhuma, mas sim um cinema, como pôde ver pelos dois cartazes em exposição em tabuletas na entrada.
O primeiro tinha um nome horrível: “Esta Noite Encarnarei No Teu Cadáver”, e trazia a figura de uma sombra assustadora de cartola, pairando sobre uma cortina de fogo. Após a estranheza inicial, Pedrinho olhou com mais atenção para o cartaz, percebendo nele certa familiaridade. De fato, com um pouco de imaginação, não era difícil enxergar ali, em meio às chamas, a silhueta do velho Visconde de Sabugosa...
Pedrinho passou para o segundo cartaz, um que mostrava a foto de homem de terno contra um fundo vermelho, empunhando uma pistola. “Com 007 Só Se Vive Duas Vezes”, era o título. Um daqueles filmes de aventura de que seus pais gostavam, mas que nunca tinham levado ele para assistir. Quando estivessem juntos outra vez, Pedrinho pensou, seria a primeira coisa que fariam. Ir ao cinema.
Deveria ter posto isso em sua carta!
Sacando do bolso a folha dobrada, Pedrinho enfim dirigiu-se aos correios. Entrando no pequeno e abafado posto, deparou-se com uma fila de quatro pessoas. Aproveitou então para reler sua carta, certificando-se de que não havia nenhum erro de português pelo qual sua mãe pudesse puxar-lhe a orelha depois.
Ter a carta em mãos dava a Pedrinho uma sensação gostosa, como se em seus pensamentos Letícia estivesse bem ali do seu lado e os dois pudessem conversar sobre tudo o que havia se passado naqueles seus dias de férias fora de época. Era tão bom que Pedrinho chegou a lamentar o quão rápido as duas primeiras pessoas da fila postaram suas cartas e partiram. Afinal, aquilo era o mais próximo que pôde estar de sua mãe, já iam quase vinte dias.
Era o próximo. Em instantes, se despediria dela outra vez.
Foi quando a porta do lugar abriu-se com um estrondo, e um agitado Barnabé irrompeu para dentro do posto.
- Barnabé?
- Vamos embora, agora!
- O que...
Sem dar-lhe tempo para reagir, Barnabé agarrou Pedrinho pelo braço e o arrastou para fora do posto, sob os olhares preocupados do atendente e do cliente que atendia.
- Barnabé, me solta, tá me machucando! - gritou Pedrinho, desvencilhando-se dele.
- Me perdoa, Pedrinho, por favor... me perdoa. - disse o peão. - Mas é que a gente tá sem tempo. Eu preciso tirar você daqui, agora. Vem! Eu te explico no caminho.
A carroça já estava estacionada junto à calçada.
- Mas e minha carta? - indagou Pedrinho.
Com delicadeza, Barnabé dobrou a folha de volta nas mãos dele. - Confia em mim, rapaz, você não vai precisar. Agora vamos!
O menino jamais tinha visto seu amigo daquele jeito, mas decidiu confiar nele mesmo assim. Barnabé ajudou-o a subir na carroça e, antes mesmo que tivesse tempo de perguntar qualquer coisa, já estavam fazendo o retorno ao redor da praça. Barnabé agitava com vigor as rédeas e berrava às orelhas do cavalo, fazendo-o correr tão depressa que, ao fazerem a curva de volta a rua de acesso à cidade, Pedrinho temeu que a carroça pudesse virar. Os velhos pneus da carroça deixavam para trás uma cortina de poeira.
- Barnabé, o que tá acontecendo?! - perguntou Pedrinho.
Ao contrário do que havia dito que faria, Barnabé nada lhe explicava. De olhos na estrada, o peão apenas tirou o chapéu de palha e enxugou o suor da testa. Estava visivelmente transtornado.
- Barnabé!!!
De súbito, Barnabé puxou as rédeas, fazendo o cavalo diminuir sua investida até parar completamente. Pedrinho olhou à sua volta; estavam outra vez na parada de ônibus. Ao contrário de antes, porém, não havia ninguém mais ali, exceto por um mendigo caído na esquina próxima.
Por um instante, Barnabé continuou a segurar as rédeas, olhando para o nada.
- Barnabé? - repetiu Pedrinho. - Barnabé, o que foi? Conseguiu dar o telefonema que queria?
- Consegui.. - balbuciou Barnabé em resposta. - Mas ninguém pode me ajudar. Ninguém acreditou em mim..
- O quê..?
- Toma. - disse Barnabé, colocando um saco de pano nas mãos de Pedrinho. - Todo o dinheiro dos pagamentos.
Pedrinho abriu o saco, revelando o que, aos olhos de quem estava acostumado a receber poucas moedas de mesada, era uma pequena fortuna.
- O próximo ônibus encosta daqui a meia hora. - continuou Barnabé. - Usa esse dinheiro pra chegar na cidade, dá um jeito de ir pra casa da sua avó. Você é um garoto esperto, sei que vai conseguir. Agora desce!
Pedrinho apenas fitou o dinheiro em suas mãos, incapaz de alinhar seus pensamentos. O que Barnabé estava dizendo? Ele não queria descer da carroça, não queria tomar um ônibus, não queria ficar sozinho.
- Minha mãe... minha mãe disse que na cidade não seria seguro. - argumentou Pedrinho, com a voz trêmula.
- Vai ser mais seguro do que lá. - retrucou Barnabé. - Pode ter certeza. Agora desce, rapaz, anda!
- Barnabé... - os olhos de Pedrinho lacrimejaram.
- AGORA!
Assustado, mas sem ainda compreender exatamente o que acontecia, Pedrinho saltou da carroça. Barnabé o encarava com um olhar triste e apiedado.
- Me perdoa, rapaz. Por favor, me perdoa. - a voz do peão embargava-se. - Mas você não pode voltar lá. Se acontece algo com você eu não... eu não... É pra sua segurança.
- Mas esse dinheiro é da Dona Benta.
- Não se preocupa com isso, eu dou um jeito. Explico tudo pra Dona Benta. Digo que uns bandidos atacaram a gente na saída da cidade e levaram o dinheiro. Foi quando você fugiu, e eu não vi pra onde. Isso, essa vai ser a nossa história. Mas tem que ser segredo, viu? Promete?
- Barnabé, não... não me deixa aqui sozinho! - implorou Pedrinho. As primeiras lágrimas já deixavam um rastro úmido em seu rosto empoeirado. - Por favor!
- Não chora, Pedrinho. - respondeu Barnabé, evitando seu olhar. - É pro seu próprio bem, eu juro. Agora eu tenho que ir. Fica com Deus... e me perdoa.
E com essas palavras, Barnabé tocou o cavalo adiante. Pedrinho continuou de pé na parada de ônibus, assistindo, aturdido, a carroça levando seu amigo acelerar até desaparecer em meio a poeirada. Nas mãos, um saco de dinheiro que não era seu; na cabeça, uma confusão de pensamentos o imobilizava; no coração partido, uma dor aguda e angustiante, que crescia junto à ideia de que haviam chegado ao fim seus dias de mistérios e aventuras no Sítio do Picapau Amarelo.
Seus dias ao lado de Narizinho.