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Os eventos que estamos para relatar tiveram lugar no ano 259 da era cristã. Os imperadores Valeriano e Galieno haviam usurpado o trono, e sob o seu governo tirânico, uma terrível perseguição abateu-se sobre a Igreja. Dificilmente houve, em qualquer outro reinado dos duzentos e cinquenta anos que se passaram sobre a Igreja, intervenções tão visíveis da providência divina para a exaltação de seus mártires e para a humilhação de seus inimigos, como as desse período. Os trovões do céu rolaram sobre a cabeça dos perseguidores, a terra tremeu-lhe sob os pés, e os seus ídolos derreteram-se como chumbo na fornalha da oração dos mártires. Contudo, rios de sangue jorraram, e os anjos, diariamente, transportaram para a residência de paz e alegria as almas preciosas dos triunfantes de Cristo.
Nunca houve na história do Império um tempo em que as pessoas foram tão visitadas pelas calamidades como nos reinados de Gallus e Valeriano. Inundações, incêndios e terremotos dizimaram províncias inteiras, e destruíram campos cultivados e belas cidades. A fome e a pestilência uniram-se na guerra do extermínio, e os lamentos do luto eram ouvidos em toda parte. Como era de se esperar, os cristãos foram responsabilizados por todas as calamidades do Império. O Diabo falou através dos oráculos do Capitólio, e atiçou os ânimos contra a "detestada religião", que nessa época espalhara-se a toda parte. A perseguição chegou trazida por circunstâncias peculiares.
Durante os três primeiros anos de seu reinado, Valeriano foi indulgente e pacífico. Ele era de certo modo, afeiçoado aos cristãos. Em público, ou em particular, mostrava-lhes respeito e favor, e a Igreja florescia por todos os lados. "Antes da perseguição", relata Eusébio, o grande historiador da Igreja Primitiva, "Valeriano foi gentil e bondoso para com os servos de Deus. Nenhum dos regentes anteriores nem mesmo aquele que era publicamente reconhecido como cristão (Filipe, ano 244) mostrou tal favor para conosco como este príncipe no começo de seu reinado. A sua casa vivia cheia de cristãos, e mais parecia uma igreja de Cristo que um palácio do imperador romano" (Livro VII, cap. X).
Entre os cortesãos havia um homem chamado Macriano, de origem insignificante, mas que tinha alguma pretensão de aprender. Sendo bastante hábil com a feitiçaria e as mágicas, insinuou-se no favor do soberano. A avareza, a ambição e a crueldade tomaram posse de sua alma. Ele visava o poder supremo, e desejava satisfazer as vis inclinações de seu espírito derramando o sangue dos cristãos, a quem odiava sem causa. É de pensar que os demônios, a quem é permitido influenciar os homens através das artes negras, houvessem convencido Macriano de que nunca realizaria suas esperanças ambiciosas, enquanto Valeriano fosse amigo dos cristãos.
Macriano determinara perverter a nobre e generosa disposição do imperador. A história apresenta a terrível narrativa de seus sucessos. Ele começou por contar ao imperador as maravilhas da magia; como ele poderia desvendar o futuro, guiar o presente no caminho da prosperidade, e ser o talismã da riqueza, do poder e da glória. O irrefletido Valeriano caiu como mosca no mel envenenado. Sob os conselhos de seu preceptor impiedoso, passou a crer que as lições de sabedoria estavam escritas nas entranhas de bebês recém-nascidos, e que os terríveis segredos do futuro desconhecido podiam ser decifrados no sangue fluído do coração. A sua primeira vítima foi um recém-nascido. Em seu fanatismo cego, curvou-se sobre as vísceras mal-cheirosas para rastrear nas fibras escarlates a linguagem da profecia e do conhecimento. Os olhos preconceituosos enxergam tudo de uma só cor; de igual modo, quando a paixão predomina na alma, todos os pensamentos são moldados à sua forma, e as nobres faculdades do intelecto e da vontade emprestam seu serviço à sua gratificação. Assim, Valeriano achou ter visto na horrenda prática da magia as fontes desvendadas do conhecimento e do poder. Não é de admirar que, sob a orientação do impiedoso Macriano, ele descobrisse que os deuses (os demônios) estavam descontentes com o cristianismo; e como um abismo chama outro, ele caiu nas profundezas da crueldade, da intolerância e do fanatismo. No final de 251 d.C. Valeriano era um dos mais cruéis e desapiedados perseguidores da Igreja.
Durante os dias de paz que precederam a perseguição, Deus revelara a Cipriano, bispo de Cartago, que tempos difíceis estavam chegando. O erudito bispo escreveu a várias igrejas, preparando-as para a tormenta. Em sua sublime exortação ao martírio, em sua carta aos tibaritanos, ele declarou: "Instruído pela luz que o Senhor nos concedeu, devemos prevenir vossas almas pela solicitude de nossa admoestação. Vós deveis saber, e ter como certo, que dias de terríveis provações estão para chegar o tempo do anticristo se aproxima. Devemos estar preparados para a batalha, e não pensar em nada, a não ser na coroa de glória e na inefável recompensa que seguirá à brava confissão de fé. As provações que se avizinham não são como as do passado; combates mais severos e mais sanguinolentos nos aguardam. Portanto os soldados de Cristo devem prepara-se com fé inabalável e virtude imaculada, lembrando que são participantes do sangue de Cristo, e que podem derramar seu sangue por Ele" (Cipriano, Epis. 56, ad Thibaritano, de Exhortat. Mart.).
Quando, no ano seguinte, as nuvens da tempestade profetizada por Cipriano romperam sobre o mundo em todos os horrores de uma perseguição sangrenta, o próprio Eusébio foi uma de suas vítimas mais notáveis. Ele nos conta, noutra parte de sua obra, que quando a perseguição irrompeu, a turba enfurecida gritava no anfiteatro de Cartago, pedindo que ele fosse jogado aos leões. Como os edifícios mais altos são os mais expostos aos raios, os bispos e pais da Igreja foram as primeiras vítimas da perseguição. Em Roma, Estevão foi martirizado enquanto celebrava um culto nas catacumbas. É dos Atos de Estêvão que citaremos alguns dos episódios relacionados ao Coliseu durante a perseguição.
Conquanto Deus houvesse permitido a perseguição para provar a sua Igreja, preparou também terrível retribuição para a injustiça dos seus inimigos. Todos os perseguidores tiveram um fim precoce e miserável. Talvez nenhum desses tiranos que derramaram o sangue dos cristãos tenha sido tão humilhado e amaldiçoado como Valeriano. "Estes escolhem os seus próprios caminhos", diz o Senhor, através do profeta Isaias, "e a sua alma toma prazer nas suas abominações. Também eu quererei as suas ilusões" (Is 66.3,4). O Império inteiro tomou parte na maldição que se abateu sobre o impiedoso Valeriano; os males acumulados das pragas, das fomes, dos terremotos e das guerras civis desabaram como uma tempestade sobre o mundo, dizimando a raça humana e espalhando a toda parte o terror e a confusão.
Os bárbaros que viviam nas fronteiras das províncias investiram de todos os lados sobre diferentes partes do país, como que seguindo um plano preconcebido, pilhando e saqueando tudo à sua frente. Valeriano foi forçado a voltar a atenção a um inimigo mais formidável que os inofensivos cristãos. Ele organizou as tropas para a guerra, enviou seu filho Galieno contra os alemães, e o seu melhor e mais corajoso capitão a outra parte do Império, enquanto ele próprio liderou o exército contra os persas, que eram nesse tempo, como em muitos anos passados, os mais formidáveis inimigos do Império. Sapor, o rei dos persas, derrotou e destruiu o exército romano, e levou preso o imperador. A hora da retaliação chegara para o cruel Valeriano. Ele foi arrastado diante do persa arrogante, em cadeias, e ainda vestido com o seu magnífico manto de púrpura e ouro.
Depois de ser insultado da maneira mais bárbara e miserável, foi forçado a caminhar diante da carruagem do rei persa, e assim percorrer todas as cidades do reino, para ser insultado e maltratado pelo povo. O mais vil escravo não poderia ter sido tratado com mais desprezo. Toda vez que Sapor desejasse entrar na carruagem, ou montar seu cavalo, Valeriano era obrigado a dobrar-se com a face para o chão, e servir de escabelo. Após vários anos passados em humilhante servilismo, fome, insulto e dores incessantes, um destino ainda pior o aguardava. Quando se lhe desvaneceu a força natural, determinaram a antecipação de sua morte pelo último e mais cruel ato de desforra. Ele foi esfolado vivo, e a sua pele, enchida com palha, foi pendurada num dos templos como um monumento ao triunfo e à vingança dos persas. Assim devem perecer os que se levantam contra Deus!
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Enquanto Valeriano prosseguia com os estudos impuros e medonhos da magia, os cristãos, cônscios da mudança que se lhe operaria no caráter, preparavam-se para a tempestade iminente. As catacumbas foram reabertas, e provisões foram transportadas para aquelas lúgubres residências dos mortos. O tabernáculo e o altar foram despojados de seus ornamentos, e os cultos passaram novamente a ser celebrados junto aos túmulos dos mártires, nas escuras passagens subterrâneas. Os catecúmenos eram batizados, e os fieis eram exortados e fortificados pela frequente comunhão e oração incessante.
Valeriano demonstrou, de diversas maneiras, a alteração de seus sentimentos para com os cristãos. E enquanto ele premeditava o massacre dos seguidores de Cristo, um ato heróico de zelo e coragem de uma das criadas do palácio atiçou o fogo de seu coração pervertido, e desembainhou a espada para a matança de milhares.
Certo dia, uma pobre mulher estava chorando loucamente junto aos portões do palácio real. Uma cristã, serva do palácio, viu-a, e compreendeu que o seu bebê fora-lhe tirado pelo imperador, que naquele momento o estava cortando em pedaços. A cristã foi aos aposentos do soberano e encontrou-o, juntamente com o impiedoso Macriano, debruçado sobre o corpo sem vida de uma bela criança. Suas mãos estavam manchadas de sangue; eles mais pareciam fúrias que homens. Sentindo subir-lhe a santa indignação diante do quadro pavoroso, a destemida serva de Deus reprovou o imperador por sua impiedade, ameaçou-o com os julgamentos do Deus eterno, e fê-lo tremer com as terríveis retribuições que pendem sobre os assassinos e opressores dos pobres. Entretanto, o espírito do mal já se apossara do miserável Valeriano. As palavras de reprovação irritaram-lhe severamente a alma arrogante; ardendo de raiva, ele ordenou que os lictores removessem e torturassem a cristã que ousara repreendê-lo. Com o mesmo fôlego com que sentenciou a sua primeira mártir, ordenou que placas de bronze fossem penduradas nas paredes do Capitólio e nas colunas do Fórum, anunciando os decretos da perseguição e da matança.
Estevão reuniu à sua volta o trêmulo rebanho, e animou-o para o martírio; com santas admoestações e a leitura dos escritos sagrados, inspirou-lhes uma piedosa confiança. Entre outras coisas que citamos de Barônio (ano 259), os Atos do suplício deste santo homem contam que ele dirigiu-se aos fieis nestes termos:
"Meus filhinhos amados, ouçam a mim, um pecador. Enquanto há tempo, frutifiquemos em boas obras, e não apenas para com o próximo, mas a nós também. Em primeiro lugar, admoesto-vos a tomardes a vossa cruz e a seguirdes ao nosso Senhor Jesus Cristo, que condescendeu em dizer-nos: 'Quem achar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a sua vida por amor de mim achá-la-á'. Por esta razão, suplico-vos que sejais mais solícitos, não apenas pela vossa salvação, mas pela do próximo também; se algum de vós tem amigos ou parentes ainda no paganismo, apressai-vos a trazê-los a Cristo, para que sejam salvos e batizados".
Entre os cristãos que ouviam estas advertências do líder estava Hipólito, um homem santo, que fora um rico cidadão romano, mas dera tudo o que possuía aos pobres, e agora levava uma vida solitária, nas catacumbas da Via Ápia. Quando Estêvão parou de falar, Hipólito lançou-se de joelhos, e expôs:
— Bom pai, tenho meu sobrinho e minha sobrinha, ambos gentios, a quem eu mesmo eduquei; a mãe deles, uma gentia, chama-se Paulina; o pai, que os envia a mim de tempos em tempos, chama-se Adrias.
Estêvão aconselhou-o a deter as crianças na próxima vez que lhe fossem enviadas, a fim de que os pais também viessem visitá-lo. Dois dias depois, as crianças vieram a Hipólito, trazendo alguns bolos. Ele reteve os sobrinhos, e mandou avisar Estêvão, que os veio conhecer e abraçar. Solícitos para com os filhos, os pais das crianças logo vieram buscá-las. Estevão falou-lhes então dos terrores do julgamento futuro, exortando-os seriamente a abandonar os ídolos, como fizera Hipólito. Adrias, o pai, disse que temia ser espoliado de suas propriedades e posto à morte – a sorte reservada a todos os que se professavam cristãos. Paulina, irmã de Hipólito, alegou o mesmo, e repreendeu-o por instigar tal coisa; ela odiava a religião cristã. A família partiu, deixando sem sucesso aqueles que os exortara, mas não sem esperança.
Estevão chamou Eusébio, o douto sacerdote, bem como o diácono Marcelo, e enviou-os a Adrias e Paulina, convidando-os novamente a vir às catacumbas, onde Hipólito vivia. Quando eles chegaram, Eusébio lhes disse:
— Cristo vos espera, a fim de introduzir-vos no reino dos céus.
E quando Paulina começou a insistir na glória deste mundo e na sina miserável dos cristãos, ele descreveu-lhes as glórias inefáveis do céu, que eles não podiam alcançar a não ser pela fé e o batismo. Paulina recusou decidir-se até o dia seguinte. Na mesma noite, um pai e uma mãe cristãos vieram com o filho paralítico até Eusébio, para que ele o batizasse. Eusébio orou pelo menino e batizou-o. O menino foi imediatamente curado da paralisia; sua língua, que era presa, soltou-se, e ele glorificava a Deus. Então Eusébio realizou a santa ceia, e todos participaram do corpo e do sangue de Cristo. Quando contaram isto ao bispo Estêvão, ele veio reunir-se a eles, e todos regozijaram-se em Deus.
Na manhã seguinte, Adrias e Paulina retornaram, e ao ouvir sobre a cura do menino, encheram-se de admiração; prostrando-se contritos, pediram para ser batizados. Hipólito rendeu graças a Deus, e bradou: — Pai, não adia o seu batismo.
A resposta de Estêvão foi: — Deixemos então que a solenidade seja completada; faze-lhes as perguntas prescritas, para que se constate se eles realmente crêem e não têm mais nenhum tremor no coração.
Após as interrogações, ele recomendou-lhes que jejuassem, e havendo-os instruído, batizou-os; deu ao menino o nome de Neone, e à menina, o de Maria. Estêvão partiu, e os novos convertidos ficaram morando com Hipólito, Eusébio e Marcelo nas catacumbas. As propriedades que possuíam na cidade foram distribuídas aos pobres.
Tão logo essas notícias chegaram aos ouvidos do imperador, ele ordenou que procurassem os convertidos, prometendo que metade da propriedade deles seria dada em recompensa a quem os encontrasse. Foi então que Máximo, um escrevente de uma das repartições do governo, recorreu a um estratagema para os achar. Fingiu ser um cristão que recolhia donativos, e dirigindo-se a um local chamado Area Carbonaria, no monte Coeliano, lá esteve esmolando até que viu Adrias passar, e dirigiu-se a ele a fim de obter uma prova de que era mesmo cristão:
— Pelo amor de Cristo, em quem eu creio, eu te suplico, tem piedade de minha miséria.
Apiedando-se dele, Adrias convidou-o a acompanhá-lo. Mas quando iam entrando em casa, Máximo foi pego por um demônio, e gritou: — Homem de Deus! Sou um informante. Vejo sobre mim um fogo imenso. Oh, ora por mim. Estou sendo torturado pelas chamas!
Os crentes intercederam por ele com lágrimas, e ele, prostrando-se ao chão, foi curado. Quando o levantaram, ele exclamou: — Pereçam os adoradores dos ídolos. Quero ser batizado!
Levaram-no a Estêvão, que o instruiu antes de o batizar. Sendo agora um cristão, Máximo pediu para ficar alguns dias com o bispo Estêvão.
Quando Máximo não retornou, procuraram por ele, e alguns de seus colegas escreventes foram enviados à sua casa pelo mesmo departamento. Encontraram-no prostrado em oração. Lançando mão dele, levaram-no a Valeriano, que lhe indagou:
— Ficaste tão cego pelo suborno, a ponto de enganar-me?
— É verdade — replicou Máximo. — Até então eu fui cego, mas agora, havendo sido iluminado, eu vejo.
— Por qual luz? — indagou o imperador.
— A luz da fé no Senhor Jesus Cristo — confirmou Máximo.
Enfurecido, Valeriano ordenou que ele fosse lançado de uma das pontes do Tibre. Seu corpo foi depois sepultado por Eusébio nas catacumbas, na Via Ápia¹.
Depois disso, Valeriano enviou um grupo de setenta soldados, com ordens de aplicar toda diligência, até encontrarem Eusébio e os demais. Quando o bispo, juntamente com Adrias, Paulina, as crianças, e o venerável Hipólito foram descobertos, conduziram-nos algemados ao Fórum de Trajano. O diácono Marcelo queixara-se da crueldade do imperador contra os amigos sinceros, e foi denunciado por Secundino Togato. Por causa disto, ele também foi apanhado.
Eusébio, o sacerdote, foi o primeiro a ser interrogado pelo juiz: — És tu o perturbador da cidade? Mas, antes, qual é o teu nome?
— Chamam-me Eusébio, e sou sacerdote.
Então o juiz ordenou que ele se sentasse a um lado, e que Adrias fosse trazido. Indagado primeiramente quanto ao seu nome, e depois sobre como conseguira a riqueza e a influência com que seduzia as pessoas, respondeu:
— Em nome de Jesus Cristo, herdei-as do esforço de meus pais.
— Então faze uso de tua herança, e não a desperdices subvertendo os outros — admoestou o juiz.
— Eu realmente a emprego, e sem fraude, para o meu próprio bem e o bem de meus filhos.
— Tens filhos e esposa?
— Eles estão aqui comigo, algemados.
— Que sejam introduzidos — ordenou o juiz.
Paulina e os filhos, Neone e Maria, foram trazidos à sua presença, seguidos pelo diácono Marcelo e por Hipólito.
— É esta a tua esposa? E são estes os teus filhos? — indagou o juiz.
— São eles — confirmou Adrias.
— E quem são estes outros dois?
— Aquele é o diácono Marcelo, e este é meu irmão Hipólito, um fiel servo de Cristo.
Voltando-se para eles, o juiz exigiu: — Declarai com vossa própria boca por qual nome sois chamados.
Marcelo respondeu: — Chamam-me Marcelo, o diácono.
— E tu? — dirigiu-se ele a Hipólito. — Qual é o teu nome?
— Hipólito, servo dos servos de Cristo.
O juiz ordenou que Paulina e as crianças fossem postas à parte, e falou a Adrias: — Dizei-me onde estão os teus tesouros, e que tu e os demais que contigo vieram ofereçam sacrifícios aos deuses, salvando vossas vidas; de outro modo, logo a perdereis.
—Já lançamos fora os ídolos vãos — interveio Hipólito —, e encontramos o Senhor do céu e da terra, Cristo, o filho de Deus, em quem cremos.
O juiz ordenou então que todos fossem levados à prisão pública, e que não fossem separados. Foram todos conduzidos à Marmetina. Após três dias, o prefeito, assistido por Probo, reuniu a corte no Templo da Terra, onde ordenara que instrumentos de tortura de todos os tipos estivessem de prontidão. Adrias foi trazido primeiro, e interrogado sobre as suas propriedades. Quando nada satisfatório lhe foi extraído, o altar diante de Minerva foi aceso, e eles receberam ordens de oferecer incenso. Todos rejeitaram com horror a proposta, rindo do juiz por lhes pedir tal coisa. Foram então despidos, estendidos nus sobre o cavalete, e surrados com varas. Paulina, açoitada severamente, rendeu a alma a Deus. Vendo isto, o juiz mandou que Eusébio e Marcelo fossem decapitados. A sentença foi executada na Petra Scelerata, próximo ao Coliseu, em 13 de novembro. Seus corpos foram deixados aos cães; o de Paulina foi arremessado no pavimento. Um outro Hipólito, um diácono, recolheu os três, e sepultou-os nas catacumbas da Via Ápia, onde eles tantas vezes haviam se reunido.
Depois disso, Secundino levou Adrias, as duas crianças, e Hipólito à sua própria casa, tentando por todos os meios descobrir onde estava o dinheiro deles. Mas suas respostas eram as mesmas:
— O que possuíamos, gastamos com os pobres; nosso tesouro é a nossa alma, que não podemos de maneira alguma perder. Cumpre a tua missão.
Secundino, então, mandou torturar as crianças, a quem o pai encorajara: — Sede firmes meus filhos.
Enquanto recebiam os golpes, a única coisa que as crianças diziam era: — Ajuda-nos, Cristo!
Depois foi a vez de Adrias e Hipólito serem supliciados, tendo as laterais do corpo queimadas com tochas. E quando haviam sido torturados de diversas maneiras, sem de modo algum serem induzidos a sacrificar, Secundino ordenou:
— Rápido! Levantai do chão as crianças Neone e Maria, trazei-as à Petra Scelerata, e matai-as diante dos olhos do pai.
Feito isto, seus corpos foram atirados num lugar público, ao lado do anfiteatro. A noite, cristãos fiéis levaram-nos dali, e os sepultaram na mesma catacumba que a sua mãe, na Via Apia.
Quando, passados oito dias, Secundino relatou tudo ao imperador, ele mandou que seu trono fosse preparado no circo. Flamínio, Hipólito e Adrias, foram conduzidos acorrentados, com um arauto gritando à frente: — Estes são os culpados miseráveis, os canalhas que subverteram a cidade!
Quando chegaram ao tribunal, o juiz pôs-se novamente a questioná-los acerca do dinheiro, propondo: — Entregai o dinheiro que usais para induzir o povo ao erro.
— Nós pregamos a Cristo — replicou Adrias —, que condescendeu em livrar-nos do erro, não para a destruição dos homens, mas para que tenhamos vida.
Quando Secundino viu que suas palavras de nada valiam, mandou que lhes batessem na boca com varas pesadas, enquanto o pregoeiro proclamava: — Sacrificai aos deuses, queimando-lhes incenso!
O trípode, um objeto de três pés, já estava aceso para este propósito. Hipólito, escorrendo sangue, gritou: — Executa teu ofício, infeliz, e não para!
Então Secundino mandou que os executores parassem de bater, e insistiu: —Ao menos agora, tendes dó de vós mesmos; vede que tenho pena de vossa loucura.
Os cristãos responderam: — Estamos prontos a suportar qualquer tormenta para não fazer o que tu e o imperador desejais.
Secundino relatou isto ao imperador Valeriano, que ordenou a destruição imediata de ambos, na presença do povo. Desta vez, Secundino mandou que fossem levados à ponte de Antônio, e espancados até a morte. Depois de sofrer por um longo tempo, eles entregaram a Deus o espírito; seus corpos foram deixados no mesmo lugar, próximo à ilha Licaônia. Hipólito, o diácono da igreja de Roma, removeu os corpos, durante a noite, para a mesma cripta na Via Ápia (5 de dezembro), onde os outros fiéis haviam sido postos. (Veja Barônio, ano 259, n° 8 e seguintes.)
Nos Atos que estamos citando, descobrimos que, tão logo as catacumbas receberam os restos mortais dos mártires, tornaram-se também o lar voluntário dos vivos. Enquanto a paz reinava no Império, e os sacrifícios impuros eram oferecidos em pequenos templos no centro da cidade, alguns cristãos fervorosos retiravam-se para as catacumbas a fim de orar sossegados. Este era o caso de Hipólito, o irmão de Paulina, cuja morte acabamos de descrever. Há, nos mesmos Atos, a comovente história de uma mulher grega e de sua filha, que passaram alguns anos numa das criptas da Via Ápia, permanecendo em oração até bem depois de a espada da perseguição haver voltado para a bainha. Elas eram parentes de Adrias e Paulina, e eram igualmente cristãs. Ao chegarem a Roma, souberam que seus familiares haviam sido martirizados por amor a Cristo. Em grande alegria, foram à capela das catacumbas (hoje chamada Capela de São Sebastião), onde os mártires haviam sido enterrados, e lá passaram treze anos em vigília e oração, até que aprouve a Deus chamá-las para o céu. Foram ambas sepultadas na mesma cripta.
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Quase um ano se passara, desde que tiveram lugar as cenas acima descritas. A perseguição ainda assolava, mas já ia perdendo a virulência de sua irrupção. O Diabo, que se apossara do coração de Valeriano, incitava-o a crueldades ainda maiores, e a um ódio mais profundo e intenso pelos cristãos. Consequentemente, ele emitiu um decreto mais maldoso que o primeiro, e prometeu como recompensa aos informantes todas as propriedades dos cristãos por eles traídos. Enviou ordens secretas aos governadores das províncias, esclarecendo que, apesar de publicamente ordenar a morte apenas dos cristãos principais, na verdade desejava o total extermínio da religião.
Assim, no ano seguinte, a perseguição tornou-se mais feroz que nunca. Devemos agora retornar à segunda parte dos Atos que estamos citando, e continuar a história de carnificina e horror passada no Coliseu dezessete séculos atrás.
Quando o edito foi publicado, Estêvão, o líder, convocou o clero, e encorajou-os: — Irmãos e companheiros de armas, já ouvistes falar do diabólico mandato: se um gentio entregar um cristão, receberá como recompensa todos os seus bens. Portanto, irmãos, rejeitai com desprezo os deuses deste mundo, para que possais receber o reino celestial; não temei os príncipes da terra, mas orai ao Deus do céu e a Jesus Cristo, seu Filho, que nos podem resgatar das mãos dos inimigos e da malícia de Satanás, associando-nos à sua graça.
O presbítero Bônus ajuntou: — Não apenas estamos preparados para renunciar aos bens terrenos, mas também para verter o nosso sangue pelo nome do Senhor Jesus Cristo.
Quando Bônus acabou de falar, todo os cristãos achegaram-se a Estêvão, e pediu-lhe ermissão para trazer seus vizinhos gentios que desejavam ser batizados. Ele determinou que no dia seguinte reunissem-se todos na cripta de Nepotiana.
No raiar do dia seguinte, cento e oito catecúmenos de ambos os sexos estavam reunidos. Estêvão batizou-os, e dirigiu o culto de que todos participaram. Enquanto o bispo ocupou este posto nas catacumbas, cuidando das questões da Igreja, ensinando, exortando, presidindo concílios, e celebrando cultos nas criptas dos mártires, multidões de gentios acorriam a ele para serem instruídos e batizados.
Simprônio, o servo de um desses novos convertidos, foi apanhado, interrogado, e forçado de todas as formas a revelar como ele dispusera do dinheiro de seu rico senhor. Entre outras coisas, quando a imagem de Marte foi posta diante dele com o tripé, para que sacrificasse, ele declarou: — Possa o Senhor Jesus Cristo, Filho do Deus vivo, destruir-te!
E imediatamente o ídolo fundiu-se. Admirado, Olimpo, o oficial encarregado de sua execução, mandou que ele fosse levado a sua própria casa, ameaçando esgotar sobre ele, naquela noite, toda espécie de tormento.
Chegando ao lar, Olimpo contou a sua esposa, Exupéria, como o ídolo derretera diante do nome de Cristo.
— Então — ponderou ela —, se a virtude deste nome é tão grande como disseste, é melhor que abandonemos os deuses que não podem defender nem a nós nem eles mesmos, e procuremos este Jesus que deu a vista à filha de Nemésio.
Olimpo, então, mandou que Tertuliano, seu servente, tratasse honradamente a Simprônio, e tentasse descobrir onde estava o tesouro de Nemésio, seu amo. Naquela mesma noite, porém, ele e Exupéria, juntamente com o filho, vieram até Simprônio e caíram de joelhos, professando:
— Reconhecemos o poder de Cristo. Queremos ser batizados por ti!
— Se tu, tua esposa e teu filho estais realmente arrependidos — falou Simprônio a Olimpo —, podemos cuidar do batismo.
— Terás a prova agora mesmo — prometeu Olimpo —, de que de todo o meu coração eu creio no Senhor Jesus a quem pregas, —assim falando, abriu um aposento onde ele conservava ídolos de ouro, prata e mármore, e garantiu a Simprônio que estava pronto a fazer com eles o que ele achasse por bem.
— Então destrói cada um deles com tuas próprias mãos — propôs Simprônio. — Derrete o ouro e a prata, e distribua-os aos pobres, e então saberei que crês de todo o coração.
Quando Olimpo fez o que foi mandado, ouviu-se uma voz que lhe disse: — Deixa meu Espírito habitar em ti.
Ao ouvir isto, ele e sua esposa começaram a fortalecer-se mais e mais, fervendo com o desejo de ser batizados. Simprônio comunicou estas coisas a Nemésio, então em liberdade, e ele foi imediatamente relatá-las ao bispo Estêvão. O bispo agradeceu a Deus, e à noite, dirigiu-se à casa de Olimpo, que caiu de joelhos com a esposa e o filho, apontando os fragmentos dos ídolos, como uma prova de sua sinceridade. Vendo isto, Estêvão pôs-se a doutriná-los nas coisas espirituais. Depois batizou o casal juntamente com os seus serviçais que creram, e com o seu filho, a quem deu o nome de Teodolo.
Três dias depois, a notícia chegou a Valeriano e a Galieno, que imediatamente ordenaram a morte de Nemésio e de sua filha, Lucila, a quem a vista fora restaurada. Ambos foram assassinados no templo de Marte, enquanto Simprônio, Olimpo, Exupéria e Teodolo foram queimados até a morte, próximo ao anfiteatro. Eles expiraram entoando louvores a Cristo, que lhes concedera o privilégio de ser contado entre os mártires. Seus restos mortais foram recolhidos pelo clero, e acompanhados até a tumba por Estêvão, com os hinos habituais.
Alguns dias depois, decretos especiais foram emitidos para a apreensão e punição de Estêvão e da igreja romana. Doze deles foram apanhados imediatamente, e levados à morte sem nenhum interrogatório. Entre eles estava o amado sacerdote Bônus, ou o Bom, que fizera aquela gloriosa declaração nas catacumbas, quando a igreja fora convocado por Estêvão. Seus corpos foram recolhidos por Tertuliano, um liberto de Olimpo, e depositados próximo àqueles dois outros mártires, numa cripta perto da Via Latina. Ouvindo isto, Estêvão mandou chamar Tertuliano, e havendo-o instruído a respeito do reino do céu e da vida eterna, batizou-o, e recomendou-o a um pastor, que o encarregou especialmente de procurar os corpos dos mártires. Dois dias depois, Tertuliano foi apanhado e levado perante Valeriano, por quem foi interrogado como sendo propriedade de Olimpo; havendo respondido e suportado toda espécie de tortura com uma constância heróica, foi finalmente decapitado no segundo marco miliário da Via Latina. Seus restos foram recolhidos por Estêvão e depositados na mesma cripta que os demais.
No dia seguinte, vários soldados foram enviados a prender Estêvão e os cristãos que com ele estivesse. Quando o levaram à presença de Valeriano, o imperador indagou:
— És tu que estás te empenhando para destruir a república, e por tua persuasão induzir o povo a abandonar a adoração aos deuses?
— Eu não arruino a república — afirmou Estêvão —, mas de fato, admoesto e exorto o povo a renunciar aos demônios a quem eles adoram nos ídolos, e a reverenciar somente ao Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem Ele enviou.
Valeriano ordenou, então, que ele fosse conduzido ao templo de Marte, onde a sua sentença seria lida nas tabuinhas.
Sendo levado para fora da cidade, na Via Ápia, e chegando ao templo de Marte, Estêvão levantou os olhos ao céu e orou: — Senhor Deus e Pai, que destruíste Babel, a torre da confusão, destrói este lugar onde o Diabo engana o povo com superstições.
Começou a trovejar. Um raio atingiu o templo, derrubando uma parte dele. Os soldados correram, deixando Estêvão sozinho. Ele dirigiu-se então ao cemitério de Lucina, com os pastores e diáconos que o auxiliavam, e ali encorajou os cristãos para o martírio. Depois, adorou ao Deus Onipotente. Os soldados que haviam saído em seu encalço encontraram-no celebrando o culto. Sem se atemorizar, Estêvão prosseguiu ministrando até os soldados lhe cortarem a cabeça, no momento em que ele se sentava na cadeira pontificial, diante do altar. Era o dia 4 de agosto. Foi grande a lamentação dos cristãos, ao serem privados de seu generoso pastor. Eles o depositaram numa cripta, juntamente com a cadeira ensopada por seu sangue, num local chamado cemitério de Calisto. (Veja Barônio, ano 260.)
Os restos mortais de Hipóloto, Adrias, Paulina, e das crianças Neone e Maria, acham-se preservados sob o altar da bela igreja de Santa Ágata, em Suburra. Ela é agora a capela acadêmica dos estudantes irlandeses em Roma, a quem foi concedida, juntamente com a ampla faculdade anexa, por Gregório XVI, "de abençoada memória". Os discípulos de Patrício aprendem que o espírito de mártir ainda é necessário em seu país. A Irlanda também teve os seus mártires, e o túmulo das vítimas das primeiras perseguições à Igreja deve, forçosamente trazer à memória do levita exilado a história de seu país sofredor. A sua fé vê o lado brilhante da nuvem que passou sobre a Irlanda nos tempos penais; seus pais estão com os heróis de Roma, na brilhante galáxia dos mártires do céu; seu país é contado entre as nações favorecidas por Deus.
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¹ - A pequena capela onde Máximo foi sepultado ainda é vista nas catacumbas de São Sebastião, na Via Ápia. Como estas catacumbas são abertas ao público estrangeiro, não há nada tão conhecido na Cidade Eterna. A pedra com a inscrição "Locus Maximi" ainda se acha preservada no mesmo ponto. Era nesta sombria capela subterrânea que Filipe Néri costumava passar noites inteiras em oração.