O Sítio

By andre_s_silva

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Série literária de mistério e terror inspirado no Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato. Pedrinho é um... More

1x01 - Férias Fora de Época
1x02 - Lúcia
1x03 - Sonhos Inquietos
1x04 - As Plantas Mortas
1x05 - O Esconderijo
1x07 - A Procissão Negra
1x08 - Monstros
1x09 - Emília
1x10 - A Marca de Carvão
1x11 - O Peão (Parte I)
1x11 - O Peão (Parte II)
1x12 - Montes Calmos (Parte I)
1x12 - Montes Calmos (Parte II)
1x13 - Pedro (Parte I)
1x13 - Pedro (Parte II)
1x14 - Massacre no Engenho Oliveira
1x15 - A Promessa (Parte I)
1x15 - A Promessa (Parte II)
1x16 - Lembrança Partida
1x17 - Comida de Porco
1x18 - Afogados (Parte I)
1x18 - Afogados (Parte II)
1x19 - A Curva Impossível (Parte I)
1x19 - A Curva Impossível (Parte II)
1x19 - A Curva Impossível (Parte III)
1x20 - O Véu
1x21 - Benta (Parte I)
*NOTA AOS LEITORES*
1x21 - Benta (Parte II)
1x21 - Benta (Parte III)
1x21 - Benta (Parte IV)
1x21 - Benta (Parte V)
1x21 - Benta (Parte VI)
1x21 - Benta (Parte VII)
1x22 - A Semente (Parte I)
1x22 - A Semente (Parte II)
1x22 - A Semente (Parte III)
1x22 - A Semente (Parte IV)
1x23 - Um Novo Lar
Se você gostou de "O Sítio"...

1x06 - Dois Primos

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By andre_s_silva

"Sítio do Picapau Amarelo, 20 de Fevereiro de 1887

Querido diário,

Hoje foi um dia muito bom.

O céu ficou limpo, sem nenhuma nuvem para manchar o seu azul. Um vento refrescante soprou durante toda a manhã. Não foi quente e desagradável como ontem, e pude até passear perto do riacho. Lá, ouvi pela primeira vez o lindo canto de um pássaro vermelho. Foi perfeito.

E a melhor parte é que fiz uma nova amiga.

Hoje só conseguimos brincar um pouco, mas nos divertimos tanto que sinto como se tivéssemos passado o dia inteiro juntas. Estou muito feliz. Finalmente tenho uma irmã. Ela me entende como niguém.

Ninguém ouve o que ela tem a dizer, só eu.

Amanhã vamos brincar mais, fora de casa. Ela disse que vai me mostrar lugares do Sítio que eu nunca vi antes, mas que esse tem que ser nosso segredo. Ninguém pode saber, nem mesmo papai e mamãe.

Talvez seja melhor esconder esta página em algum lugar."

Pedrinho terminou a leitura e abaixou a folha envelhecida, intrigado pelo teor da mensagem. Seus olhos tornaram a encontrar a data no alto da página: 20 de fevereiro de 1887... aquilo era mais velho que seus pais, mais velho até que seus avós!

- Achou isso aí dentro? - perguntou à Narizinho.

Ela fez que sim com a cabeça, antes de debruçar-se na caixa do piano vertical e saltar de volta para o chão, não se esquecendo de recuperar Emília do meio das cordas.

- Não ficou com medo do piano desmontar? Ia levar uma bronca!

- Foi ideia da Emília, a gente se esconder aqui. - respondeu Narizinho, casualmente. - A cartinha não diz mais nada?

Pedrinho, distraído pela curiosa resposta de Narizinho, levou um instante para responder. - Não é uma cartinha. - disse, por fim. - É uma página de diário.

- O que é um diário?

- É uma coisa que as meninas fazem. - o menino alternava seu olhar entre a página manuscrita e a boneca nos braços de Narizinho. - Pensei que você soubesse.

- Não sabia... - respondeu Narizinho, apertando Emília contra si. - E pra que isso serve?

- Acho que é pras pessoas não esquecerem das coisas boas que acontecem.

- Eu nunca me esqueço. - afirmou Narizinho. - Uma vez passou um caixeiro por aqui com um carrinho cheio de potes de geléia. A Dona Benta disse que ia fazer mal pra minha barriga, mas o Barnabé comprou escondido pra mim. Tava muito gostosa.

- Quando foi isso?

- Eu era pequena.

- Você é pequena.

- Era mais pequena, seu burro.

- Mesmo assim, não tem comparação! - retrucou Pedrinho. - Essa folha tá escondida há oitenta anos. Se alguém não tivesse escrito, ninguém mais ia saber o que aconteceu nesse dia. Mas agora a gente sabe.

Lá fora, a chuva caía com mais intensidade, fazendo ecoar pela casa o barulho das gotas pesadas sobre as telhas. Um trovão ressoou, distante. A pancada de primavera enchia o ar com o cheiro de terra molhada.

- Isso dá um pouco de medo. - disse Narizinho, quase enfiando a cabeça entre os olhos de Pedrinho e a página do diário. - Quem você acha que escreveu?

- Eu acho... - começou Pedrinho, mas a verdade era que tinha quase certeza. - ...que foi a Dona Benta.

- Dona Benta?! - indagou Narizinho, espantada. - Por que acha isso?

- Porque ela devia ser uma criança na época que foi escrito. Além disso, a menina da mensagem escreve bem, devia estudar com bons professores. - bons como sua mãe, Pedrinho pensou. - Também acho que se uma criança qualquer entrasse na sala do piano, alguém acabaria vendo. A não ser que ela fosse a filha dos donos da casa.

Convencida pela teoria de Pedrinho, Narizinho arregalou os olhos. Compartilhava com ele a mesma mistura de receio e fascínio, ao imaginar que uma velhinha como Dona Benta já fora um dia uma criança como eles, tentando esconder dos adultos suas traquinagens.

- E essa "nova amiga"? - perguntou ela, apontando para o trecho que a mencionava. - Quem será?

- Isso eu não sei. - respondeu Pedrinho.- Mas a gente pode tentar descobrir.

Narizinho sorriu de volta e balançou a cabeça, sem saber que Pedrinho mentia. A verdade é que ele tinha uma segunda teoria, um nome para a amiga secreta de Dona Benta, mas isso Pedrinho não compartilharia com ela. Ao menos, não por enquanto.

- Crianças! - berrou a própria Dona Benta, da sala de jantar. - Tem bolinho de chuva! Venham enquanto ainda tá quentinho!

- E agora? - indagou Narizinho, de olho na página do diário. - O que a gente vai fazer?

- Rápido, põe de volta. Eu te ajudo a subir.

- Você vai esconder outra vez? - a menina estava surpresa.

- Se precisar, a gente sabe onde achar. - justificou-se Pedrinho. - Mas se alguém mais que souber do diário por acaso olhar dentro do piano e ele não estiver ali, vai saber que andaram mexendo.

Narizinho não parecia convencida. Ainda assim, Pedrinho entregou-lhe a folha e dobrou levemente as pernas, entrelaçando os dedos por sobre um dos joelhos.

- Crianças! - repetiu Dona Benta.

- Rápido, anda.

Narizinho pisou nas mãos de Pedrinho e ergueu-se por sobre a caixa do piano outra vez, escondendo a página do diário no mesmo ponto em que a havia encontrado. Ao descer, os dois trataram de novamente baixar a tampa da caixa, em seguida puxaram a lona preta por sobre o instrumento, deixando-o da mesma forma que estava antes de sua brincadeira de pique-esconde.

Sob um silêncio cúmplice, Pedrinho e Narizinho seguiram pelo corredor até a sala de jantar, aparecendo diante de Dona Benta com as caras mais inocentes do mundo. Ao centro da mesa fora posta uma tigela com uma dúzia de bolinhos de chuva, douradinhos e cobertos com açúcar e canela. A massa ainda quente espalhava pela sala um aroma doce e apetitoso.

- Mas onde é que estavam vocês que demoraram tanto assim? - perguntou Dona Benta. - Já vi os dois chegarem mais depressa correndo desde a horta, quando o assunto é encher essas barriguinhas.

O tom de voz que a senhorinha usava, embora amistoso como de costume, sugeria um leve puxão de orelha em seus pequenos hóspedes. Pedrinho e Narizinho não retrucaram, limitando-se a atacar os bolinhos de chuva. Rastros de canela e açúcar logo se formaram sobre a toalha de mesa.

- Já tinha comido bolinhos de chuva antes, Pedrinho? - perguntou Dona Benta.

- Sim. - respondeu ele, sentindo a delícia desmanchar-se em sua boca. - Às vezes minha avó fazia, quando eu ia visitar ela.

- Mas sua avó mora na cidade, perto de você e de seus pais?

Pedrinho, de boca cheia mais uma vez, acenou positivamente.

- Ah, mas não tem bolinho de chuva igual ao de roça. - afirmou Dona Benta, indo sentar-se na poltrona em um dos cantos da sala.

- Estão muito gostosos mesmo. - concordou Pedrinho.

Foi só aí que percebeu a maneira como Narizinho, segurando um bolinho meio comido nas mãos, mastigava lentamente, ao que seus olhos arregalados encaravam Dona Benta, quase como se tentassem ler nas rugas da velha senhora algo mais do que já haviam lido na página escondida do diário.

Pedrinho quis fazer algum sinal para que Narizinho parasse, mas estava longe demais para isso. Se Dona Benta percebesse o estranho comportamento dela, poderia suspeitar de algo, e aí poderia ser só questão de tempo até que...

- O que foi, Narizinho? - perguntou Dona Benta.

A menina desviou seu olhar na mesma hora, enfiando o que restava do bolinho dentro da boca. Era tarde demais. Pedrinho precisou pensar rápido.

- Narizinho?

- Desculpa, Dona Benta. - adiantou-se Pedrinho. - A gente fez algo que não devia.

- Mas o que houve dessa vez, crianças? - insistiu Dona Benta, inclinando-se para frente na cadeira.

Narizinho dirigiu a Pedrinho um olhar assustado. Ele, contudo, se manteve calmo. Suas próximas palavras deveriam ser as mais convincentes possíveis, do contrário seu plano iria por água abaixo.

- Nós entramos no escritório do pai da senhora. - disse ele, agitadamente. - Desculpa, sei que a gente não devia fazer isso, mas é que estávamos brincando de pique-esconde, e eu achei que seria um bom lugar para me esconder e...

- Meu Deus, fica calmo, Pedrinho! - interrompeu-lhe Dona Benta, abrindo um sorriso. - Primeiro para, respira fundo, então me responde. Quebraram alguma coisa lá?

- Não, não, não quebramos nada! - Pedrinho apressou-se em responder. Em seguida, quedou-se hesitante, tudo parte de seu teatro peralta. - Mas é que..

- É que...?

- Nós vimos um retrato. - concluiu ele. - Da senhora com seus pais, de quando ainda era pequena. A Narizinho ficou espantada. Não é, Narizinho?

Enfim compreendendo o plano do amigo, a menina balançou a cabeça, enfaticamente. - Fiquei, fiquei!

- Ah.. - Dona Benta explodiu em risos. - Mas é tudo por causa disso? Porque viram uma foto minha de quando tinha a idade de vocês? Achavam que eu já tinha nascido assim, uma velhinha?

As crianças desataram a rir também. Toda a tensão de momentos antes desapareceu da sala de jantar, junto com os bolinhos de chuva. Dona Benta reclinou-se de volta na poltrona e suspirou.

- Ai, ai... acho que sei de que foto estão falando. Lembro desse dia como se fosse ontem. Era quase hora do jantar quando o fotógrafo chegou da cidade. Eu já estava acabada de tanto brincar o dia todo, mesmo assim meu pai insistiu para que tirássemos o raio da foto. Acho que era outubro ou novembro, lembro que o jardim estava cheio do perfume das flores. Ah, como eu adorava brincar pelos jardins..

- Brincar de quê? - perguntou Narizinho.

- Bem, os meus pais não deixavam que eu saísse do terreno da casa, então eu precisva me virar com o que tinha por aqui. - respondeu Dona Benta. - Mas era muito bom. Minha brincadeira preferida era encontrar flores de cores e perfumes diferentes. Então eu as colhia e guardava em uma caixinha de madrepérola na minha penteadeira. À noite, quando eu abria a caixinha e sentia aquele perfume gostoso, acabava sempre lembrando do momento exato em que havia encontrado a flor. É engraçado como os cheiros fazem a gente lembrar do que já passou, não é?

Pedrinho concordou em silêncio, atento a cada palavra de Dona Benta. O cheiro de café fresco que se espalhava pela manhã na Casa Grande sempre o fazia se lembrar do tom alaranjado na sala de seu apartamento, agora tão distante, quando ele e seus pais sentavam-se à mesa para falar sobre o dia e saborear um delicioso lanche de final de tarde. Sentia muita falta daquelas tardes, como sabia que Dona Benta deveria sentir falta de sua coleção de flores.

Aquela era uma ótima oportunidade para tentar decifrar o mistério da página do diário.

- A senhora ainda tem a caixinha de mare.. marde.. - Pedrinho tentou perguntar.

- Madrepérola. - completou Dona Benta, com um leve sorriso, antes que um sutil véu de tristeza se abatesse sobre seu rosto. - Não, ela acabou... se perdendo.

- Mais alguém sabia sobre a caixinha?

A pergunta de Pedrinho fez Dona Benta dirigir-lhe um olhar de surpresa. Por um momento, o menino se arrependeu de ter sido tão direto. Daquele jeito, não ia demorar para que Dona Benta desconfiasse que ele sabia mais do que estava dizendo.

- Não. - a senhorinha respondeu, após um momento de hesitação. - Como eu disse, meus pais não deixavam que eu brincasse longe daqui da Casa Grande, então eu não tive a sorte de vocês, crianças. Ter um amiguinho, ou amiguinha, para me fazer companhia e compartilhar as coisas boas. Sabem, do jeito que o mundo está complicado lá fora... tudo o que está se passando com famílias como as de vocês... É bom que tenham um ao outro. Que sejam amigos. É bom que, apesar de tudo, aqui no Sítio do Picapau Amarelo, vocês dois possam ser apenas crianças e... Lúcia? Lucinha, o que foi?

Lágrimas escorriam incessantes pelo rosto de Narizinho, que abafava seu pranto nos ombros de Emília. Pedrinho não a vira tão fragilizada desde o incidente com o espantalho, dias antes. Dona Benta ergueu-se da cadeira e dirigiu-se delicadamente até a menina.

- Lúcia, meu amor. O que houve?

- Narizinho?

Sem aviso, ela saltou da cadeira e correu porta afora, seus passos desaparecendo em direção ao seu quarto, na área dos empregados. Dona Benta balançou a cabeça, lamentosa.

- O que será que ela tem? - perguntou Pedrinho.

- Saudades, eu acho. Lúcia já está com a gente há tempo demais.

Pedrinho dirigiu seu olhar para os fundos da casa, mas não havia mais sinal de Narizinho. Ele então perguntou:

- Desde quando?

- Desde que começou. - respondeu-lhe Dona Benta. - Ela é órfã de mãe. Já o pai dela é um jornalista, como o seu. Só que nunca deu a devida atenção a Lucinha. Quem a criava era a avó, com o dinheiro que o pai mandava todo mês. Até que ele...

Dona Benta interrompeu-se, lançando um olhar sensibilizado para Pedrinho, a quem aquela história era terrivelmente familiar. A senhorinha suspirou e se pôs a arrumar a mesa do lanche, recolhendo a tigela agora vazia e dobrando a toalha de forma que os farelos de bolinha de chuva não voassem para todos os lados.

- Sem a ajuda do pai, a avó de Lucinha não teve mais condições de cuidar dela. - continuou. - Então a trouxe para nós, até que ele volte.

Houve um instante de silêncio, após o qual Pedrinho disse algo que acabava de lhe retornar: - A Narizinho disse que não se lembra mais do dia em que veio pra cá.

- Esse é o meu medo. - admitiu Dona Benta. - Que Lúcia acabe se esquecendo de sua família.

- Ou que eles se esqueçam dela. - disse Pedrinho, expondo um receio que também era seu, e que lhe fazia pesar o coração. Lá fora, o último trovão daquela chuva de primavera retumbou, solitário.

Dona Benta fez menção de respondê-lo, mas seu semblante pesaroso parecia já revelar que, não importasse o que diria, no fundo de seu coração a senhorinha concordava com Pedrinho.

- Alguém já veio visitar a Narizinho, nesse tempo todo? - perguntou então o menino.

Dona Benta balançou a cabeça, negativamente. Em seguida, como se quisesse espantar para longe a nuvem de tristeza que se formara sobre a sala de jantar, deu uma sacudidela e tratou de acelerar a arrumação, colocando as cadeiras de volta no lugar.

- Acho melhor deixar a Lucinha descansar um pouco. - disse Dona Benta. - Toma, Pedrinho, sacode essa toalha lá nos fundos pra mim. Depois, você pede uma vassoura pra Néia e dá uma varridinha na varanda, por favor? A chuva parou e deve estar cheio de folhas lá.

Pedrinho assentiu. Primeiro, sacudiu bem a toalha no terreno que havia atrás da Casa Grande, retornando-a em seguida para a mesa de jantar. Depois, procurou Néia, a qual, após reclamar do quanto Narizinho era preguiçosa e do quanto Dona Benta não pegava no pé dela o suficiente, providenciou-lhe uma vassoura.

Quando Pedrinho chegou a varanda, Narizinho já estava lá, encolhida sobre a mureta que havia atrás da cadeira de balanço de Dona Benta. Parara de chorar, mas continuava a apertar Emília com força junto ao peito.

- Tá tudo bem? - perguntou Pedrinho.

Narizinho virou o rosto para o outro lado, calada. Pedrinho então começou a varrer, distraidamente, o lado da varanda em que ela estava. Procurava as palavras certas.

- Dona Benta me contou sobre os seus pais. - disse ele, de olho no chão coberto de folhas molhadas. - Eu sinto muito. Tomara que seu pai esteja bem. Tomara que ele venha te buscar logo com sua avó.

- Minha vó não gosta de mim. - retrucou Narizinho. - Ela me largou aqui. Meu pai também não gosta de mim, senão não teria ido embora. Ninguém gosta de mim. Só a Tia'Nastácia, e a Emília.

- Não diz isso. Claro que seu pai gosta de você. Ele não foi embora porque quis. É por causa do que tá acontecendo..

- Você não sabe de nada.

- Sei sim!

- Sabe como?! - indagou ela, empinando o nariz.

- Porque foi o mesmo com o meu pai!

A resposta pareceu silenciar Narizinho. Chateado pelas implicações das palavras da menina, Pedrinho encostou a vassoura em uma das colunas da varanda e desceu as escadas até o pavimento que rodeava o jardim.

Seu pai não o deixara, fora tomado dele. Ele e sua mãe o amavam muito, e logo logo estariam de volta ao sítio para buscá-lo... não estariam? Pedrinho respirou fundo. A terra exalava o cheiro de chuva, mas acima dele, as nuvens dissipavam-se para revelar o entardecer.

Ouviu os passos de Narizinho descendo as escadas atrás de si. - Afinal de contas... - dise ela, aproximando-se. - ...o que tá acontecendo?

- Eu não sei bem. - admitiu Pedrinho. - Minha mãe tentou me explicar algumas vezes, mas achei bem complicado. Tem alguma coisa a ver com os soldados estarem mandando em tudo, agora. É como se... a gente brincasse de bolinha de gude, mas você nunca pudesse ganhar de mim, porque as bolinhas são minhas.

- Mas eu tenho as minhas. - observou Narizinho.

- Imagina que não tivesse. Como as bolinhas são minhas, toda vez que eu estivesse quase perdendo, eu pegava todas de volta e acabava com a brincadeira.

- É isso que tá acontecendo? - Narizinho coçou a cabeça. - Os soldados não sabem perder na brincadeira?

- Mais ou menos. - respondeu Pedrinho. - Só que ao invés de bolinhas de gude, é qualquer coisa que eles não gostem. E às vezes eles não gostam do que os jornalistas falam. Seu pai é jornalista, não é?

- Me disseram que sim.

- O meu também é. É por isso que eu sei que seu pai gosta de você, e que vai voltar pra te buscar assim que puder.

- Quando os soldados deixarem?

- Sim. - Pedrinho sentiu uma pontada de tristeza, mas não deixou que isso transparecesse em sua voz. - Minha mãe diz que, por causa de tudo que tá acontecendo, pessoas como ela, meu pai.. e o seu pai, estão todos do mesmo lado hoje. São como irmãos.

- Então a gente é como primo? - perguntou Narizinho.

- Isso. - respondeu Pedrinho, com um leve sorriso. - Primos. E é por isso que eu gosto de você.

- Eu também gosto de você.

A frase de Narizinho veio tão rápida e tão espontânea que pegou a ambos de surpresa. Em um piscar de olhos, as bochechas de Pedrinho foram do branco ao rosa, ao passo que Narizinho afundou o rosto nos cabelos de pano de Emília.

- Eu... tenho que.. tenho que varrer a varanda! - anunciou Pedrinho, retornando à casa.

Estava quase alcançando as escadas quando sentiu a mão de Narizinho agarrando-se a sua. Apesar do gesto, a menina continuava com o olhar cabisbaixo, deixando a cargo de Emília a tarefa de encarar o rosto surpreso de Pedrinho.

- Deixa que eu varro. - disse Narizinho, enquanto subiam de volta para a varanda.

- Tem certeza?

Narizinho balançou a cabeça e os dois se despediram. Ela pôs Emília sobre a cadeira de balanço, pegou para si a vassoura e começou a varrer as folhas trazidas pela chuva, esperando que Pedrinho desaparecesse no interior da casa antes de se voltar para a boneca e escancarar um sorriso encantado.

Anoiteceu sem que os dois tornassem a se encontrar. Pedrinho passara as últimas horas em seu quarto, brincando de forma distraída com suas bolinhas de gude, enquanto sua mente revisitava os acontecimentos daquele dia, em especial a página do diário e a conversa que tivera em seguida com Dona Benta.

Mais do que nunca, tinha a convicção de que ela era a autora da confissão que ele e Narizinho haviam encontrado no piano. As palavras de Dona Benta sobre os momentos que passava sozinha quando criança se alinhavam à felicidade expressa na página perdida quanto à descoberta de uma "nova amiga". Alguém que entendia a dona do diário como ninguém, alguém cujas palavras ninguém ouvia, exceto ela própria...

Emília.

Sim, tinha que ser Emília. Suspeitou desde o momento em que lera do diário secreto, embora tivesse decidido, por ora, não dizer nada a Narizinho. Fazia todo o sentido. De alguma forma, Emília também fizera parte da infância de Dona Benta, até o momento em que algo aconteceu, algo que fez com que a senhorinha sentisse, até hoje, repulsa pela boneca de pano.

Talvez Narizinho, que já estava a tantos anos no sítio, tivesse ouvido de alguém uma história sobre o passado de Dona Benta com Emília e, a partir daí, imaginado também que a boneca era capaz de conversar com ela. Talvez o segredo de Dona Benta já não fosse tão secreto.

Ou talvez, Emília fosse mesmo capaz de falar.

Pedrinho já não duvidava mais de nada. Sabia que estava envolvido em um mistério, e tudo girava em torno de Emília. A perspectiva de estar vivendo uma aventura, como a dos contos que sua mãe gostava de ler, o animava. Representava uma quebra na rotina roceira que já começava a entediá-lo, e não poderia ter vindo em melhor hora.

Pedrinho foi deitar-se com a convicção de que iria até o fundo daquele mistério. Como sempre fazia na hora de dormir, tomou um tempo para debruçar-se na janela e contemplar as estrelas, sentindo a brisa da noite embalada pelo estrilar dos grilos.

Exceto que, desta vez, o ar noturno estava completamente parado. E silencioso. O céu estava embaçado pelas nuvens, com nada além de uma mancha amarelada e brilhante revelando o esconderijo da lua cheia. Não se via sequer uma estrela.

Subitamente, uma brecha surgiu entre as nuvens, permitindo que os raios de luar incidissem sobre o tapete de sombras que era o cafezal vizinho à Casa Grande, iluminando-o pouco a pouco. Os olhos de Pedrinho seguiram a luz da lua até que ela alcançou a extremidade da plantação, além da qual os pés de café davam lugar à mata fechada. Pedrinho já estava acostumado com sua escuridão impenetrável, e foi por isso que, em um primeiro momento, duvidou de seus próprios olhos ao enxergar os breves focos de luz que pareciam arder entre as árvores.

Pedrinho forçou a vista, mas foi só quando a luz do luar atingiu a parede de árvores que ele pôde enxergar o que acontecia no interior da mata. Eram chamas, pequenas como as de velas, tremeluzindo em amarelo e vermelho ao que seus portadores sombrios seguiam em procissão, às margens do cafezal. Um arrepio percorreu o menino dos pés a cabeça.

Foi quando um movimento sutil se fez perceber no canto dos olhos de Pedrinho, logo abaixo de sua janela. Uma figura diminuta, sob a cobertura da noite, esgueirava-se para longe da Casa Grande. Seus pés descalços tocavam a terra silenciosamente; das mãos, pendia sua inseparável boneca de pano.

- Narizinho... - disse Pedrinho, tão baixo quanto achou que ela seria capaz de ouvi-lo.

A menina estacou e voltou-se para a janela. Talvez fossem apenas as sombras que lhe cobriam parcialmente o rosto, mas havia frieza no olhar que ela dirigiu a Pedrinho, um segundo antes de sair correndo e desaparecer na escuridão do cafezal.

- Narizinho! - gritou ele, sem resposta. - NARIZIINHOOOO!!!

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