Nesse mesmo dia, depois de uma série de exames e testes psicológicos, foi-me diagnosticada hipermnésia num grau extraordinariamente elevado para os padrões comuns da doença. Por norma, esse distúrbio da memória só se faz sentir a partir dos 12 anos e as pessoas que sofrem de hipermnésia tendem a evocar situações passadas com uma nitidez superior às demais, recordando coisas que normalmente não são relevantes para a parte consciente das pessoas comuns. No entanto, o meu caso é mais complexo e raro, já que não se trata de eu me lembrar de coisas a mais, mas antes de não conseguir eliminar qualquer recordação - basicamente eu lembro-me de tudo.
Durante os primeiros anos sentia-me indestrutível. É difícil imaginar as desvantagens de uma super-memória para uma criança de 6 anos, e à medida que o tempo ia passando, as possibilidades pareciam multiplicar: aos 13 anos, como se já não bastasse aquela sensação de sermos infinitos que a adolescência sempre nos traz, eu tinha ainda a vantagem acrescida de fazer coisas que mais nenhum adolescente podia e a consciência disso deixou-me um tanto quanto arrogante. Aos 15 anos o entusiasmo face ao protagonismo que até então tinha tido começou a desvanecer e a sensação de que tinha o mundo a meus pés foi sendo substituída por uma raiva reprimida que fez com que me afastasse de toda a gente.
Não podia deixar de sentir que embora admirassem as minhas proezas, estavam longe de compreendê-las, e quanto mais lidava com elas mais tinha noção de que aquilo que até então me parecera um dom, era afinal uma pesada maldição.
Foi por volta dessa altura que o psicólogo me alertou para possibilidade de, à medida que os anos passam, o meu excesso de memória poder representar um problema grave. Chegará à altura em que as recordações serão tantas e tão densas que irão perturbar o meu raciocínio, deixando-me mentalmente esgotado. De forma muito simplista, quantas mais memórias tiver, maior é a probabilidade de endoidecer e ficar trancado num hospital psiquiátrico para o resto da vida. Isso explica o facto de os meus pais se terem mudado para um bairro tão pacato de Londres, Gosfield, onde nada acontece; e também explica a minha vontade súbita de me afastar de tudo e todos.
As memórias foram feitas para ser esquecidas, isso é um facto: quando nos lembramos de algo, fazemo-lo através dos olhos do presente, e por isso o que aconteceu não é mais passado mas um presente à nossa medida. Nós romantizámos sempre aquilo que escolhemos lembrar (outro facto) e a memória não é mais que isso, um conjunto de lembranças de quem fomos, adaptadas a quem somos agora.
Aos 15 anos enfrentar a ideia de que ainda não tinha nem metade das recordações de uma vida empacotadas na cabeça sem poder libertar-me delas foi uma conclusão complexa que exigiu uma medida espantosamente simples - tornar-me um imbecil de primeira ordem.
Aos poucos, todos os meus amigos se foram afastando de mim, excepto o Paki e a Lindsay, a minha namorada.
Isto leva-nos até 1996 - tinha eu 21 anos – ao dia em que ela terminou comigo e que eu decidi partir na maior aventura da minha vida, juntamente com o Paki.
É precisamente aqui que a história da minha vida começa, e vou começar a contá-la.
- Flash back; 19 anos atrás -
- Lindsay, pela milésima vez, não vamos a Paris no dia dos namorados. – Repeti, aborrecido.
- Harry, mas todo o mundo vai a Paris no dia dos namorados!
- O Paki não vai. Já não é todo o mundo. E o Mr. Mooko também não deve ir... e os meus pais... e os teus. E a Dona Isabel e o jardineiro Sommers. Lindsay, já vamos em quase metade da população de Gosfield e não vejo ninguém com intensões de passar um dia igual aos outros a comer baguetes em cima de um monte de ferro ao alto.
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(Un)forgettable
Teen Fiction"Dizem que quem conta um conto acrescenta um ponto. Mesmo as vossas memórias, não são mais do que aquilo que escolheram lembrar de um passado que nunca será recordado exatamente como aconteceu. Mas comigo é diferente: o meu nome é Harry e eu não acr...