Capítulo 17;

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Prece

Senhor, a noite veio e a alma é vil.

Tanta foi a tormenta e a vontade!

Restam-nos hoje, no silêncio hostil,

O mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou,

Se ainda há vida ainda não é finda.

O frio morto em cinzas a ocultou:

A mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá o sopro, a aragem — ou desgraça ou ânsia —,

Com que a chama do esforço se remoça,

E outra vez conquistemos a Distância —

Do mar ou outra, mas que seja nossa!

Fernando Pessoa em Mensagem

POV Harry

Os meus passos pesados vão afastando lentamente os montes de neve acumulados no chão, abrindo caminhos à minha passagem enquanto espero pelo autocarro. Não tenho ideia de para onde vou, nem tampouco como vou sustentar-me nos próximos dias, mas a ideia de voltar para Gosfield parece pior do que mendigar em qualquer lugar longe de casa.

A primeira coisa que fiz quando saí da estalagem foi procurar uma cabine telefónica e ligar à minha mãe, que me atendeu com uma renovada sessão de gritaria, embora já estivesse falado com ela assim que cheguei, garantindo-lhe que estava bem. Ao que parece, ela não consegue superar o facto de eu ter fugido sem avisar ninguém, ainda para mais na carrinha do tio do Paki, logo agora que ele precisava tanto dela. Imagino que tenha havido uma emergência capilar num concurso canino em Nottingham.

De qualquer das formas, voltar para casa não é definitivamente uma opção, pois seria admitir que fracassei em todos os objetivos desta viagem, o que não está longe da verdade, já que quase deixei afogar a miúda que amo.

A miúda que amo.

Volto a repetir essa frase uma e outra vez para mim mesmo, e quanto mais a repito mais ela parece acostumar-se dentro de mim, como uma verdade nova mas já adaptada aos contornos da minha mente.

As verdades são como as roupas, temos de as fazer ganhar aquele cunho pessoal, aqueles vincos que não pertencem a mais ninguém além de nós. Esta é a minha verdade – eu amo uma miúda, não uma miúda qualquer, mas uma miúda com várias miúdas dentro – e eu não poderia estar mais confortável com essa descoberta.

- Querido, está à espera do autocarro para St. Agnes?

Olhei para o lado e vi uma senhora com os seus 70 anos, baixinha, e com ar amigável a encarar-me por detrás de uns óculos de armação dourada.

- Sim, estou. – Confirmei, um pouco rudemente. Mais uma cara para recordar, mais um diálogo para não esquecer.

- É que o autocarro falhou hoje, só vem mesmo ao anoitecer. – Informou ela, com uma expressão azeda de quem tenta ajudar e não é bem recebida.

Num acesso de fúria peguei na minha mochila e saí disparado, sem sequer me despedir. Será possível que nada corra bem?!

Nesse momento, como resposta ao meu anterior questionamento, heis que o universo decide fazer nevar intensamente, e por isso corri para o sítio abrigado mais próximo, a biblioteca municipal.

(Un)forgettableOnde as histórias ganham vida. Descobre agora