POV Milles
Lembro-me de ir à praia com o meu pai. Não sei precisar se isso aconteceu várias vezes ao longo da minha vida, mas, subitamente, recordei-me de um episódio em particular: eu estava sentada na areia, concentrada na construção de um palácio de sereias, e ele estava logo atrás de mim, em silêncio, como de costume, imerso na leitura de um livro.
(Se as pessoas fossem palavras - correção, as pessoas são, sobretudo, palavras - a do meu pai era essa mesma, "imerso", um adjetivo à altura da sua mania de mergulhar muito silenciosamente em si mesmo.)
Era assim que estávamos, ele virado para o seu avesso, eu virada para o exterior de mim, varrendo a praia com o olhar em busca de mais algas para as paredes da torre principal. Percebi que a água se aproximava lentamente da minha construção e parei para observar uns momentos a linha da areia molhada ganhar terreno em direção ao nosso espaço.
- Vai inundar o palácio. - Constatei, despertando o meu pai dos seus devaneios.
Ele levantou-se, em silêncio, e começou a arrastar o pé em linha reta sucessivas vezes, eguendo um montinho de areia à nossa frente e fazendo com que a espuma das ondas se alojasse no fosso recém-formado. Assim que o mar deixou de representar uma ameaça à comunidade de sereias, o meu pai achou que poderia regressar à sua imersão, e voltou a sentar-se, sempre em silêncio, enquanto eu retomava o meu trabalho, caminhando uns metros para o lado em busca de adereços para adornar o palácio. Quando me voltei, aconteceu o impensável - o impensável para mim, criança, o expectável para um adulto. Uma onda mais revolta embateu contra a muralha do palácio, desfazendo as suas paredes num espaço de segundos.
A água entrou pelos portões de areia, lavando os corredores imaginários perfumados de maresia, desfazendo as camas de coral, os candeeireiros de pérolas, e dissolvendo os majestosos vestidos de sal pendurados em armários invisíveis... a água do mar preencheu cada buraquinho, diluindo tudo à passagem sem que ninguém pudesse travá-la. No final, onde segundos antes existira um palácio seguro, restava agora um monte indistinto de grãos de areia.
*
Beatrice. O nome estala na minha mente e é como se uma muralha cedesse. Quase consigo sentir o mar a entrar-me na mente, ocupando todos os espaços que encontra e dissolvendo as verdades que eu julgava seguras. Fragmentos de memórias difusas vão surgindo de forma aleatória na minha mente, incapazes de se destacar no tempo e espaço, como camadas de areia sobre outras semelhantes, indistintas, confusas, infinitas.
Os meus reflexos estão descompassados, sinto-o ao observar o rosto do Eric mover-se lentamente, deixando um rasto de movimento atrás de si. Flashes de recordações atingem-me inesperadamente - uma curva superior de uns lábios entreabertos; uma linha marcada de uma clavícula a espreitar sobre o colarinho desgastado de uma camisa axadrezada; umas pestanas compridas a bater freneticamente contra o alto das maçãs do rosto.
Ele move os lábios mas não processo o som que deles sai, embora tenha ideia de que se trata de algo bom. Ele abraça o Joseph numa atitude entusiasta e o velho deixa-se abraçar, sem reação. Quero tentar perceber o que está a acontecer, mas sinto-me exausta e alguém me aperta as mãos. Com carinho, com urgência, com saudade - É assim que a saudade dá as mãos.
É Joseph, cujos olhos claros estão marejados de lágrimas, e cujas mãos tremem de emoção contra as minhas, amolecidas de entorpecimento e confusão. Num acesso de razão, liberto-me das suas saudades e corro em direção à praia, sem chorar.
Não quero ter recordações. Não quero ter de passar pelo processo de ter de me reconhecer, de ter de explicar a mim mesma que isto aconteceu comigo, e que eu sou, antes de mais, a pessoa de que me começo a lembrar.
ESTÁ A LER
(Un)forgettable
Teen Fiction"Dizem que quem conta um conto acrescenta um ponto. Mesmo as vossas memórias, não são mais do que aquilo que escolheram lembrar de um passado que nunca será recordado exatamente como aconteceu. Mas comigo é diferente: o meu nome é Harry e eu não acr...