Capítulo 37;

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POV Milles

Lembro-me de ir à praia com o meu pai. Não sei precisar se isso aconteceu várias vezes ao longo da minha vida, mas, subitamente, recordei-me de um episódio em particular: eu estava sentada na areia, concentrada na construção de um palácio de sereias, e ele estava logo atrás de mim, em silêncio, como de costume, imerso na leitura de um livro.

(Se as pessoas fossem palavras - correção, as pessoas são, sobretudo, palavras - a do meu pai era essa mesma, "imerso", um adjetivo à altura da sua mania de mergulhar muito silenciosamente em si mesmo.)

Era assim que estávamos, ele virado para o seu avesso, eu virada para o exterior de mim, varrendo a praia com o olhar em busca de mais algas para as paredes da torre principal. Percebi que a água se aproximava lentamente da minha construção e parei para observar uns momentos a linha da areia molhada ganhar terreno em direção ao nosso espaço.

- Vai inundar o palácio. - Constatei, despertando o meu pai dos seus devaneios.

Ele levantou-se, em silêncio, e começou a arrastar o pé em linha reta sucessivas vezes, eguendo um montinho de areia à nossa frente e fazendo com que a espuma das ondas se alojasse no fosso recém-formado. Assim que o mar deixou de representar uma ameaça à comunidade de sereias, o meu pai achou que poderia regressar à sua imersão, e voltou a sentar-se, sempre em silêncio, enquanto eu retomava o meu trabalho, caminhando uns metros para o lado em busca de adereços para adornar o palácio. Quando me voltei, aconteceu o impensável - o impensável para mim, criança, o expectável para um adulto. Uma onda mais revolta embateu contra a muralha do palácio, desfazendo as suas paredes num espaço de segundos.

A água entrou pelos portões de areia, lavando os corredores imaginários perfumados de maresia, desfazendo as camas de coral, os candeeireiros de pérolas, e dissolvendo os majestosos vestidos de sal pendurados em armários invisíveis... a água do mar preencheu cada buraquinho, diluindo tudo à passagem sem que ninguém pudesse travá-la. No final, onde segundos antes existira um palácio seguro, restava agora um monte indistinto de grãos de areia.

*

Beatrice. O nome estala na minha mente e é como se uma muralha cedesse. Quase consigo sentir o mar a entrar-me na mente, ocupando todos os espaços que encontra e dissolvendo as verdades que eu julgava seguras. Fragmentos de memórias difusas vão surgindo de forma aleatória na minha mente, incapazes de se destacar no tempo e espaço, como camadas de areia sobre outras semelhantes, indistintas, confusas, infinitas.

Os meus reflexos estão descompassados, sinto-o ao observar o rosto do Eric mover-se lentamente, deixando um rasto de movimento atrás de si. Flashes de recordações atingem-me inesperadamente - uma curva superior de uns lábios entreabertos; uma linha marcada de uma clavícula a espreitar sobre o colarinho desgastado de uma camisa axadrezada; umas pestanas compridas a bater freneticamente contra o alto das maçãs do rosto.

Ele move os lábios mas não processo o som que deles sai, embora tenha ideia de que se trata de algo bom. Ele abraça o Joseph numa atitude entusiasta e o velho deixa-se abraçar, sem reação. Quero tentar perceber o que está a acontecer, mas sinto-me exausta e alguém me aperta as mãos. Com carinho, com urgência, com saudade - É assim que a saudade dá as mãos.

É Joseph, cujos olhos claros estão marejados de lágrimas, e cujas mãos tremem de emoção contra as minhas, amolecidas de entorpecimento e confusão. Num acesso de razão, liberto-me das suas saudades e corro em direção à praia, sem chorar.

Não quero ter recordações. Não quero ter de passar pelo processo de ter de me reconhecer, de ter de explicar a mim mesma que isto aconteceu comigo, e que eu sou, antes de mais, a pessoa de que me começo a lembrar.

(Un)forgettableOnde as histórias ganham vida. Descobre agora