Capítulo 31;

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POV Shirley

- 8 de fevereiro de 1996, dia da convenção –

Desde ontem que o ambiente da pensão se transformou por completo, e a habitual descontração fui substituída por uma onda generalizada de nervosismo. Embora todas nós estejamos mais do que familiarizadas com estas andanças, a verdade é que em vésperas de uma sessão fotográfica há sempre uma atmosfera elétrica em torno da possibilidade de criar algo novo que corresponda inteiramente às expetativas de quem encomendou o trabalho.

Por isso, desde o fim da tarde de ontem até hoje de manhã, apenas com interrupções momentâneas para beber chávenas de café sem açúcar, experimentei todos os modelos de maquilhagem que trouxe preparados para esta sessão naqueles bustos assustadores de plástico.

Mentiria se dissesse que o fiz somente por razões profissionais. Sei perfeitamente que treinei o suficiente para fazer um trabalho irrepreensível, e que fazer uma direta para aperfeiçoar a minha técnica é, além de inútil, extremamente desaconselhável, porque embora consiga disfarçar as olheiras com corretor, não consigo disfarçar o mau-humor provocado pela falta de descanso.

Para ser honesta comigo mesma e com a minha consciência que tem sido particularmente inoportuna nos últimos dias, tenho de confessar que a razão pela qual maquilhei como uma doida varrida nos últimos dois dias foi, surpreendam-se, o Zayn.

Uma coisa boa da maquilhagem é que ela não nos mascara apenas para os outros, mas também para nós próprios. Enquanto maquilho, todos os meus problemas parecem ocultos por grossas camadas de pó compacto, e é nesta tarefa, aparentemente tão básica, que encontro o meu maior e mais poderoso refúgio, o meu espaço familiar em que me sinto capaz de controlar sentimentos e emoções indesejadas apenas com uma pincelada brilhante.

Não vejo o Zayn desde o "incidente do comboio", como costumo chamar ao pequeno percalço de há dois dias atrás na minha determinação de nunca mais voltar a cair na conversa dele. É extraordinariamente curioso como é possível, com algum esforço de criatividade e perseverança, evitar uma pessoa que está a viver na mesma casa que nós, e acreditem, se existir alguma espécie de medalha honorífica para pessoas cujo talento é evitar problemas, eu mereço-a.

Mas não fui sempre assim. Na verdade, houve um tempo – até ao dia das olimpíadas da matemática, para ser precisa – em que eu era realmente péssima na matéria de evitar assuntos e pessoas. Afinal de contas, não há nada de racional na tarefa de fugir aos problemas, apenas estamos a arrastá-los no tempo, minando-nos a paciência com possíveis desfechos imaginados que podem acontecer de forma completamente inesperada em relação ao que projetámos. Por isso, até lá, sempre preferi encarar as situações com frieza e distanciamento, confrontando as pessoas com o âmago da questão e ponderando possíveis soluções em conjunto. Na verdade, achava uma postura tão madura e digna de valor que me orgulhava de nunca ter a consciência pesada devido a questões mal resolvidas, mas sabem que mais: tretas.

Todos nós, em algum momento da nossa adolescência, devemos passar pelo momento desconfortável que é ter de evitar alguém. Especialmente se esse alguém nos tiver humilhado em frente a toda à escola.

Se há uns anos atrás, como qualquer adolescente normal, eu tivesse acordado na enfermaria depois de ter passado pelo momento mais embaraçoso da minha vida, e me limitasse a chorar o equivalente a encher o Sea life de Scarborough, a comer doses industriais de gelado e a ligar para as minhas supostas amigas enquanto enrolava o fio do telefone no dedo indicador...possivelmente hoje seria capaz de enfrentar o Zayn depois do "incidente do comboio" como uma adulta, em vez de me trancar no quarto com uma cabeça de plástico e montanhas de paletes de sombras.

(Un)forgettableOnde as histórias ganham vida. Descobre agora