Jill

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Raccoon: A Quarentena

Jill

Pela primeira vez em vários minutos, Jill Valentine conseguiu mover-se do sofá.

Nunca pensou que aquilo lhe seria um desafio, ainda mais após os intensos meses de treinamento em Fort Bragg, totalmente avessos à letargia. Quando fechava os olhos por muito tempo, em seus momentos de quietude, ainda conseguia sentir as dores musculares e o orgulho ferido pelas broncas do sargento.

Desde dois meses antes, no entanto, tais lembranças vinham se embaralhando a outras mais profundas... feridas ainda abertas, tais quais riscadas em seu ser pela lâmina da faca no emblema da Delta Force – ironicamente, justo quando a havia trocado por um céu estrelado. O cargo de especialista em arrombamento em uma equipe de elite da polícia de uma cidadezinha do interior era a promessa de paz e realização bem precoces na vida até então tumultuada de Valentine...

Se não houvessem sido comprometidos pelas ações da própria megacorporação farmacêutica que financiara a equipe.

Jill moveu os braços e as pernas em impaciência, mas ainda não conseguia se levantar do assento. O exercício de fechar os olhos lhe trazia agora as pontadas nos membros de tanto correr de zumbis e outras aberrações mortas-vivas pelos corredores da mansão, as broncas do sargento substituídas pela voz de Wesker detalhando sua armadilha. E, ao invés do silêncio com o qual poderia ao menos relaxar, a quietude era quebrada pelo ininterrupto coral dos mortos pelas ruas de Raccoon, suas carcaças vagando entre gemidos agoniantes conforme buscavam mais vivos para se alimentar...

Comprimir as persianas até as pontas de seus dedos sangrarem de nada adiantara para bloquear o som, conforme tentara ao cair da noite. Nada adiantaria.

Tendo a cabeça embaralhada, por um instante perdeu a noção de dia e hora. 28 de setembro... Luz do dia? Um olho girou a uma janela, no limite de sua visão periférica. Escuridão, junto ao tom dourado de um incêndio. Não mais...

Ela ainda se questionava como tudo aquilo começara. Apesar dos resquícios da mansão, a contaminação parecia sob controle. Chris e Barry, talvez ouvindo uma voz providencial à qual Jill era surda, saíram da cidade dias antes de a situação realmente piorar. Não por covardia, claro: Redfield partira à Europa para investigar a Umbrella perto de seu QG, e Barry o seguiria dentro em breve após garantir a segurança de sua família além da fronteira. Ela, quem diria, até pouco antes se julgava a verdadeira fraca: permanecer em Raccoon, onde ainda contava com a amizade de boa parte dos policiais – mesmo com a eventual desconfiança – e uma satisfatória rede de contatos para investigar o que era o tal "G-Vírus" com cuja menção Chris havia esbarrado. Uma posição de conforto, quiçá luxo, dado o inferno que vinham vivendo desde julho...

O mais irônico era ter conseguido ao menos salvar seu cão labrador, Charlie, enviando-o aos cuidados do pai. Não tenho mais tempo para cuidar dele como deveria, não depois do que aconteceu... – justificara a si mesma mais de uma vez, mantendo uma foto do animal em sua escrivaninha da delegacia. Se ao menos não posso me salvar, ele está a salvo!

Moveu as pernas novamente, os pés descalços deslizando ásperos contra o assoalho recoberto por uma camada de pó acumulada por dias. Um braço se ergueu, a mão abrindo e fechando numa garantia de bombear sangue aos dedos. Poder realizar aquele exercício algumas vezes a cada hora, sem que os membros se queixassem além de uma leve dormência causada por sentar-se à mesma posição, era garantia de ainda poder controlá-los. Nenhum sinal de gangrena, putrefação. Coceira levando a segmentos inteiros de pele e músculo se descolarem do corpo. Ah, os registros daquele maldito diário... se lutara em vão por meses para tirá-los de sua mente, retornavam agora mais nítidos do que nunca!

Raccoon: A QuarentenaWhere stories live. Discover now