O Coletor

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O Coletor

Antes de qualquer luz romper o breu total da manhã sonolenta, o cheiro do café invadiu as narinas de Pedro que já estava terminando de escovar seus dentes. Encheu a boca com a água esbranquiçada por cloro, bochechou e cuspiu na pia quase em queda. Olhou para a escova e reparou que as cerdas estavam retorcidas e em sua base já amontoavam certos resíduos de comida ou bactérias ou ambos. Decidiu trocar as escovas da casa. Vestiu prontamente o uniforme verde, um macacão. Deu um beijo nas duas crianças que, com sorte e bom trânsito, as veriam a noite antes de novamente retornarem ao sono. Rute tinha preparado um lanche reforçado para seu laborioso marido: pães de queijo, biscoito, farofa de ovos mexidos. Sustança para o longo dia. Meteu em sua mochila as provisões de comida e a garrafa térmica com o sustentável café. Trocaram beijos e certas carícias. Despediram-se.

O ponto de ônibus ficava a três quadras, descendo a rua. O setor era novo, um loteamento com parcelas mais baratas do que qualquer lugar da cidade. Quando vieram do Maranhão os planos eram de conseguir um emprego e o mais rápido sair do aluguel. Com certa dificuldade e muita economia foram para o que é deles após três anos. O sol já se derramava lentamente pelo céu, pouquíssimo movimento pelas ruas próximas, muitos lotes ainda estavam com o mato alto. Alguns postes estavam funcionando e outros nem tanto. E sob um deles abriu sua mochila pegou sua caneca com a estampa do Palmeiras e colocou até a metade de café, o vapor sua preguiçosamente. Sacou dois biscoitos. E recomeçou a caminhada mastigando o alimento e a sensação de bem-estar e os empurrava com os goles de café. Terminou rapidamente e enxugou com o pulso a boca e limpou os farelos de sua roupa.

Três pessoas esperavam o primeiro ônibus passar. Estavam abraçados a si mesmos para tentar conter o frio da madrugada. A mulher mais velha, como cabelo preso em um coque mantinha a bolsa colada ao corpo como se a qualquer momento fosse assaltada. A mais nova era uma estudante de ensino médio, estava carregando um fichário rosa e cheio de adesivos de personagens de desenho animado, o cabelo liso caia sobre seu rosto; a boca abria-se levemente, seu dia seria longo. O terceiro era um rapaz, quinze anos talvez, o bigode fino do auge da puberdade apontava sob seu nariz. O boné tampava seus olhos. Carregava uma mochila de pano. Usava bermuda, chinelos e uma camisa de time estrangeiro. A todo instante olha em seu relógio. A previsão era que o veículo passaria em cinco minutos. Era apreensão? As duas mantinham-se um pouco distante dele. Pedro não imaginou como seria o dia daquele rapaz. Mas imaginou como seria o seu: correria atrás do caminhão de coleta, tentaria não se cortar com algum caco de vidro deixado irresponsavelmente por algum morador de prédio. Demoraria muito para ficar ofegante pois seu condicionamento físico era bom. Pararia para o almoço e tiraria o cochilo restaurador da tarde. Correria. Bateria o ponto às 17h00. Entraria em ônibus extremamente lotado de desconhecidos. Em casa tomaria um banho quente, brincaria com os filhos. Jantaria o maravilhoso quibebe em Rute era mestre. Faria o terceiro filho e dormiria. O dia seria bom.

Dois minutos. Alguns carros trafegavam pelas pistas, passando rápido. Ao longe o farol de uma moto com dois ocupantes. Pedro notou o sentido em que ela iria. Todos já ficaram apreensivos. Menos o de boné, eram seus conhecidos. Quando encostaram, o garoto ergueu a mão para cumprimentar. "E aí, primo!" O ocupante da garupa sacou o revólver, um tiro na boca que atravessou a nuca. O corpo desabou no chão. A mulher gritou e um buraco médio foi aberto em sua testa, alguns miolos saíram em jatos de sangue. A moça largou seu material e correu em direção a Pedro, tombou com um tiro nas costas. E ele só esperou sua vez. Viu o brilho do cano. Um estralo e arma não funcionou. Bateram em retirada deixando corpos em poças de sangue.

Pedro urinou na calça, sentia o fedor de sua ureia concentrada. Chorava pelos mortos, chorava por ele e agradecia por estar vivo, quebrado, mas vivo.

O sol já se derramava sobre ele, sobre todos.

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⏰ Last updated: Mar 12, 2020 ⏰

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