O Anjo do Eixo

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É desagradável o cheiro que perambula no interior deste veículo, emanado das axilas suburbanas e suadas desses assalariados trabalhadores, classe média; que incomoda o nariz e convulsiona o estômago. As pessoas cheiram - se para confirmar se são elas que fedem como animais em confinamento e conferem em ombros alheios a fonte de tal odor.

O que mais me incomoda é o fato de haver aquele contato imundo, o qual sou obrigado a passar, o roçar de corpos tão diferentes e incompatíveis um ao outro, homens em mulheres, mulheres em mulheres, homens em homens. Monstruosos corpos gordos e suados a ocupar uma vasta dimensão do espaço diminuto.

A cada parada um pelotão sai e uma companhia entra. Amontoando corpos a mais corpos, afastando - me da janela onde procuro ajuda no sabor do vento, com aquele peculiar cheiro de óleo queimado.

As feições cansadas, mortificadas pela rotina incessante. Alguns enfiados em conversas enfadonhas. Gritos estridentes de crianças moribundas. Velhos relatando suas desventuras médicas.

Tudo ribomba em meus ouvidos, eclode em uma pulsação violentamente progressiva. Ouço meu sangue trafegar. Línguas e dentes movendo em uma pobre enunciação.

Cheiro e som.

Agarro na barra de segurança, minha queda não pode ocorrer.

Desço na estação. Aguardo o próximo ônibus aparecer e retornar ao ponto de origem. Meu prazer desgostoso é transitar em meio a estes vermes. Observá - los. Em movimento de duas  vias, mecanicamente andam. Devido aos impulsos cerebrais, suas almas estão mortas e de nada mais servem. Meros zumbis em uma grande colmeia social. Os carros passam constantemente. Também seguindo seu fluxo, os ônibus. Permaneço parado, quieto, de tocaia, esperando alguém com quem eu poderia limpar o mundo, nem que seja um ato mínimo.

Pessoas saltam e entram. E meu cálido pupilo não se destoa da multidão. Nenhum escolhido ou acólito. Nada. Meus pés formigam em impaciência. Pressiono as unhas na palma da mão até sentir o sangue escorrer. O Sol desapareceu por completo, as trevas imperam.

Desisto. Eu movo meu corpo para partir. Sou interrompido por um ganido, não, não é um ganido e sim uma gargalhada. Uma gargalhada de plena felicidade. Vacilo no equilíbrio físico e mental ao acreditar que alguém possa reagir contrariamente ao fluxo. Volto meus passos e vejo a criança de seis anos sorrindo debilmente para a mãe. Os braços envoltos nas pernas da mulher de pescoço longo.

De um instante a outro ele para. Já não sorri. Ele olha fixamente para mim. É ele, não tenho dúvidas, é meu tão ansiado novo discípulo. Olhos curiosos e de certa forma, ferozes. Aproximo lentamente da cálida união materno - filial. A criança nota minha intenção. Agita-se. Puxa os braços, calça e blusa, inquietando - a.

O ônibus se aproxima.

Todos se amontoam a beira da plataforma. Com cuidado retiro meu cacetete retrátil de liga de alumínio e alça de EVA. No meio da multidão, sem dificuldade, consigo erguê - lo. Os outros alheios. A criança agoniza antes do momento esperado, grita e esperneia. A fumaça negra da combustão do veículo atinge o teto da plataforma. Agora.

Com uma leve estocada e com os estalos da pequena descarga elétrica os dois caem. Os olhos da criança abertos na proporção do medo e do perigo. O cabelo da mãe ondula no ar. Ao atingirem o asfalto esburacado a criança é desmembrada do laço amoroso e rola pelo chão. O imenso ônibus azul, o menino passaria a odiar o azul, freia a tempo de não esmagar seus corpos imprestáveis. A turba ruge em desespero. Passos apressados, sirenes a quarteirões. O menino não chora. Não esperneia. Seu olho fixo no meu. Filete de sangue brotando de seu pequeno crânio. Parto em pleno gozo.

Meu aprendiz nunca me esqueceria. Assim como nunca esqueci meu mestre. Minha cicatriz no couro cabeludo arde. Virá atrás da minha existência como uma cobra que retorna ao seu covil.

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