⊱ CAPÍTULO XXXIII ⊰

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Uma sensação ruim se apoderou de si gradativamente quando suas vistas verdes foram vagarosamente desanuviando conforme ele as piscava rapidamente.

No momento em que foi capaz de se contextualizar, ele identificou o leito de Louis ao seu lado esquerdo, tipicamente cercado por uma caneca de água, uma de vinho, sua bíblia, seu caderno de capa de couro negro, o tinteiro e a pena para escrita. À sua frente, jazia a bacia com água limpa e os panos úmidos que ambos utilizaram para higienização horas antes ainda sujos, bem como o barril que suportava a vela que servia como única fonte de iluminação dali. Por fim, o cacheado bem sabia que, caso não estivesse deitado, encontraria na extrema direita da tenda os demais pertences e bugigangas do homem da faixa negra, todos fortemente unidos pelos nós franceses de algumas cordas. Entretanto, aquilo era tudo – não havia qualquer outra presença humana na tenda.

Harry se remexeu sobre o solo um tanto quanto desconfortável e, quando seus movimentos soaram manifestamente mais leves e desacompanhados do familiar tilintar de correntes, Styles constatou, pela primeira vez desde que retornara ao acampamento, que ele não fora acorrentado novamente. Tão rápido quanto seu corpo desajeitado permitia, o cacheado se colocou sobre os próprios pés e abriu um daqueles seus sorrisos que definitivamente poderiam iluminar o ambiente melhor que a frágil chama adiante – seu corpo se encontrava completamente sem restrições, apenas exatamente como deveria ser.

Todavia, conforme já exposto, o organismo humano se habitua a qualquer situação adversa muito rapidamente, até mesmo a uma inapropriada – bem, o de Harry se adequara a correntes também, de forma que ele cambaleou e tropeçou ao não sentir o peso e a limitação delas enquanto caminhava, pois por óbvio a primeira ideia que tomou sua mente após a constatação de se encontrar desacorrentado foi a de realizar uma nova tentativa de fuga.

De toda sorte, ao chegar finalmente ao rasgo que fazia as vezes de acesso à tenda e colocando apenas sua cabeça para fora dela a fim de analisar a probabilidade de passar despercebido pelos soldados fanfarrões, descartou imediatamente a possibilidade de escapar – a garoa do início da madrugada se transformara em chuva e um frio quase invernal reinava no lado externo. Assim, caso se desabrigasse naquela condição climática, era certo que uma pneumonia lhe acometeria e, tendo em vista o estado da técnica do século XVIII, mais especificamente no tocante à medicina, ele estaria morto antes mesmo de conseguir encontrar a saída de Aberdeen.

Bem, o medo da morte parecia sempre um adversário teórico invencível e fazia com que ele optasse a permanecer com seu adversário empírico, motivo pelo qual ele apenas respirou fundo e fitou pela última vez aquela oportunidade de liberdade – a intensidade do frio noturno era tanta que todo o exército escocês encontrava-se recolhido às suas barracas, sendo que normalmente estariam farreando ao redor da fogueira àquela altura da madrugada. Bem, não era exatamente todo o exército que se recolhera ao respectivo acampamento, pois os orbes verdes logo foram atraídos como por magnetismo até a figura do comandante, a qual se encontrava completamente exposta ao relento.

No breu quase absoluto da madrugada, contando apenas com a tênue luz das estrelas contidas no céu chuvoso da clareira, Styles era incapaz de identificar mais que a silhueta do homem da faixa negra, mas esta era suficiente para constatar que ele se encontrava ajoelhado frente à cova de Aquiles, de costas para si – apenas exatamente como o cacheado o encontrara horas antes, diferenciando-se meramente pelo fato de que Tomlinson vestia agora seus trajes de dormir e não os de combate. Contudo, existia algo inédito naquele cenário agora, pois também foi possível que o de olhos verdes identificasse a sombra de uma cruz fincada sobre a terra recém escavada.

Ocorre que, Louis amarrara dois galhos grossos juntos, sendo um verticalmente posicionado enquanto o outro fora mantido horizontalmente projetado e em seguida enfrentou a chuva arrebatadora apenas para homenagear o leito eterno de seu cavalo, demarcá-lo perante a paisagem inabitada, fazê-lo notório, lembrado – foi nesse momento que o homem constatou que, quando o amanhecer chegasse, ele deixaria o último local onde seu melhor amigo esteve para trás, então se sentiu compelido a usufruir de cada instante em que ainda era possível estar ali.

Mystical (l.s)Onde histórias criam vida. Descubra agora