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xx. slow hands

Os ares longe da capital tinham grande diferença. Harry havia feito outras viagens e tinha plena certeza disso, mas ali, naquele local específico com cheiro de tortas e pães assados, perto dos montes, com o vento frio cercando seu corpo, as árvores balançando em euforia ao sentir a brisa, os animais espalhados pelo campo e as mais diversas pessoas procurando o equilíbrio interior que lhes faltava, a sensação era nova e deslumbrante.

Nos dois dias previstos para frequentar as atividades propostas e colocar a cabeça no lugar, ele colocou em prática as palavras que Louis sempre repetia sobre autoestima, autoaceitação e amor próprio, por isso, não tocou no celular sequer uma vez. Sabia, de qualquer forma, que o médico não assumiria o risco de mandar uma mensagem ou ligar e acabar com toda a concentração e foco que foram encontrados ali.

Os responsáveis pelo projeto promoveram palestras sobre problemas emocionais e mentais com profissionais dinâmicos e especializados na área, que trataram do tema com muita seriedade e respeito, sem expor ninguém de forma desnecessária e longe de discursos ensaiados. Harry descobriu que, de acordo com um estudo da OMS, quase metade da população mundial com tais transtornos jamais chega a receber tratamento e ficou perplexo com tal resultado para algo tão sério quanto doenças mais ‘comuns’ — hipertensão, diabetes, câncer.

Ele conheceu e se apegou muito à uma mulher que respondia por Mia. Ela estava sempre por perto com um sorriso e uma calmaria sem igual, recepcionando-o pelos lugares que andava e falando um pouco sobre a vegetação bem cuidada. Conversaram muito, profundamente, e aprenderam demais um com o outro. 

Mia era uma das realizadoras do projeto e sua luz para concluir algo que estava no papel há muito tempo foi a esposa, que a deu todo o suporte necessário e havia a ajudado após sofrer agressões psicológicas, físicas e sexuais por longos meses em um relacionamento. 

Harry enxergou nos olhos castanhos de Mia o amor intenso quando ela falava da mulher que tanto amava. Ele encontrava esse mesmo amor nos olhos azuis de Louis. 

Ele se sentiu acolhido pela mulher e a forma como ela parecia tão confiante e segura, mesmo depois de ter passado por tanta coisa. Ela não transparecia sentimento ruim algum, como se tivesse vivido sempre a felicidade plena.

— Muita gente me colocou mais para baixo do que eu já estava, dizendo que relacionamento abusivo não acontece na comunidade LGBTQ+, que era impossível ocorrer com duas mulheres. Mas acontece, Harry. A maior incidência é sobre mulheres em relacionamentos heterossexuais, os noticiários e a taxa cada vez mais elevada de feminicídios mostram isso, e por ser lésbica, me negligenciaram em todos os lugares que procurei ajuda, inclusive dentro da própria comunidade. Eu a encontrei prestes a desistir de tudo e ela me deu toda a compreensão que eu precisava. Ela me incentivou a ajudar outras pessoas, independente de sexualidade e gênero. Ela segurou minha mão nos momentos de negação, de fraqueza e insegurança — Mia respondeu para Harry quando foi perguntado, com timidez, como ela havia se recuperado e arrumado forças para construir toda aquela estrutura e procurar acudir outras pessoas fragilizadas com tamanho empenho. —  Acho que mais do que eu, ela é responsável por tudo isso — apontou ao redor e sorriu verdadeiramente.

Domingo à noite, Harry voltou para casa ciente de alguns pontos importantes e de cabeça erguida para tentar fugir da inércia todos os dias e reconquistar o que tinha perdido de si próprio nos anos ao lado de George.

Procurando terapia ou não, a capacidade de recuperação necessária estava alojada dentro de si mesmo. Ele tentaria mais um pouco, e se as coisas apertassem, conversaria com Louis para ajudá-lo a encontrar um bom consultório. Entendia que a recuperação levava tempo e que enfrentaria muitos desafios ao longo da caminhada. Recaídas aconteceriam também e o ajudariam a tomar impulso e ir cada vez mais longe.