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— Não... não faça isso por favor... não me deixe aqui sozinho... não, não, eu juro que obedecerei, eu juro...
Acordo assustada com o som grave da sua voz, ele está delirando, a febre voltou e ele começa a se debater como se precisasse se livrar de algo.
— Não... não, não... por favor eu imploro. — ele diz com uma voz tão rouca que mais se parece com a voz de um ancião e o esforço em falar faz com que ele comece a tossir. Seus lábios voltam a se rachar e sangrar.
— Shiuuu por favor se acalme, você está bem, está tudo bem agora, você está seguro. — digo próximo a seu ouvido enquanto coloco uma nova compressa de agua fria em sua testa.
Ele parece não me ouvir e continua implorando por algo que não faço ideia do que seja, aproveito seus poucos instantes de lucidez e umedeço uma gaze levando-a até sua boca e despejando um pouco de água nela, ele engasga e volta a tossir, gotículas de sangue escapam de sua boca e me apavoro ao imaginar que ele pode morrer a qualquer instante, nas minhas mãos.
Faço uma oração, pedindo para que ele não permita que esse homem morra aqui, continuo tentando acalma-lo até que ele consegue sorver alguns goles de água e adormece novamente, um sono pesado e cheio de pesadelos. Limpo seus ferimentos e peço a Deus que tire um pouco da sua dor.
O sol brilha alto lá fora, já deve passar do meio dia e ele continua dormindo, me aproximo para observar a sua respiração e sem pensar, envolvo minhas mãos em seus cabelos úmidos pela compressa, afasto-os do seu rosto e o olho mais de perto, me pego imaginando que ele pode ser um montanhista que se perdeu de seu grupo na parte mais árida das montanhas, dado o estado em que ele se encontra, queimaduras e desidratação é comum nesses casos e  isso não é algo muito difícil de acontecer, embora me surpreenda o fato dele ter conseguido caminhar por mais de 300 quilometros nessas condições, mesmo ele sendo um homem forte e jovem. Muito forte álias.
Mas ainda tem os outros machucados em seus tornozelos e no abdômen, o que me faz acreditar que ele pode ter sido torturado, talvez tenha sido sequestrado e levado até o deserto para morrer.
Faço um lembrete mental para verificar se há algum jovem desaparecido na cidade nos últimos dias. Provavelmente há uma família desesperada a sua procura em algum lugar por aí.
Analiso seu rosto, agora com a luz do dia posso ver que embora ele seja jovem, tem a pele bem castigada do sol, há rugas profundas em torno dos seus olhos e testa, o que reforça a minha tese de que ele seja um montanhista. Seus cabelos castanhos possuem mechas quase loiras que podem ter sido resultadas por um grande período exposto ao sol, ele é forte, embora seja magro, e sua estrutura me leva a crer que ele é alguém que se cuida.
Me perco em hipóteses enquanto verifico seus curativos e troco sua compressa de tempos em tempos tentando manter a sua temperatura baixa. Ele se encolhe com o toque frio do tecido em sua pele, as vezes geme um pouco principalmente quando toco a lateral do seu corpo, imagino que possa haver alguma costela fraturada e preciso esperar o meu pai voltar para que possamos move-lo e verificar as suas costas.
— Como ele está? — meu pai pergunta meia hora depois enquanto me observa trabalhar. Ele parece mais calmo agora que o rapaz está limpo e tratado, mas seu rosto ainda carrega uma expressão confusa.
— Instável, a febre não diminui por muito tempo e ele ainda está muito desidratado.
— Por um momento eu achei que ele estava morto. — meu pai se abaixa próximo ao rapaz analisando as feridas em suas mãos. — Ele parecia tão desesperado, tão perdido.
— O senhor não atropelou esse homem não é?
— Não, ele simplesmente despencou na frente do carro quando me viu, como se estivesse apenas esperando por alguém que pudesse salva-lo. — ele desvia o olhar do corpo e olha para mim como se soubesse que eu faria o mesmo. É claro que eu faria, sou sua filha.
— Nós vamos salvá-lo pai, eu só preciso arrumar um jeito de hidratá-lo.
— Eu posso tentar conseguir uma bolsa de soro. — Meu pai diz pairando sob meu ombro esquerdo. Me viro para encará-lo segurando um punhado de gazes sujas.
— O senhor disse que não podia ir ao hospital?
— Eu disse que não posso levá-lo ao hospital, mas posso tentar trazer medicamentos.
— E como o senhor pensa em fazer isso? — pergunto curiosa.
— A Anastácia ainda trabalha lá. — Ele sorri e respiro aliviada.
— Claro, a tia Anastácia. — Dou um tapa em minha própria testa quando me lembro que a esposa do meu falecido tio ainda trabalha no hospital da cidade.
Levanto correndo e vou até a caminhonete em busca de um pedaço de papel. Anoto tudo o que acho que vou precisar e rezo para que eu esteja certa, soro, agulha, fluidos e um pouco de antibióticos, entrego a lista para meu pai e ele sai imediatamente.
Volto a me sentar ao seu lado, exausta e preocupada, mas com um pouco mais de esperança de que ele possa conseguir se salvar, com a ajuda dos medicamentos que me pai vai trazer. Me aproximo do rapaz e seguro sua mão esquerda, a que está em melhores condições, ainda não faço ideia do que aconteceu com ele, mas de uma coisa tenho certeza, se depender de mim esse homem não morrerá, não aqui nas minhas mãos. É uma promessa que faço a mim mesma, e rezo a Deus para que eu possa cumpri-la.
Ele é jovem demais para morrer assim.

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Acho que esse foi o primeiro encontro mais tenso de todas as minhas histórias não é mesmo?
Eu espero que estejam curtindo e não deixem de deixar um comentário para que eu possa saber a sua opinião.
Obrigada a todos e até sexta!

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