Eu não quero viver para sempre

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Passei o resto do dia no Norte, mandei meu frio pela corrente de ar do Vento e fiquei sentado em uma das mesas. Reli a carta quase um milhão de vezes. Se agora eu me sentia arrependido o suficiente? Sim. O que eu iria fazer em seguida? Não fazia ideia. Ela estava na China agora, e sua força caindo aos poucos, e por culpa minha, Jack Frost. Pensei em sair correndo atrás dela e resolver todo o problema, dizendo que ela não precisava mais se preocupar comigo e que devia voltar para seu lugar, mas eu não queria que ela parasse de se lembrar de mim. Egoísmo? Talvez.

Mas então, eu comecei a pensar nos meus 300 anos sendo Jack Frost, e depois um Guardião. E depois... E depois? Bom, era isso, minha vida era essa. Crianças, proteção, guardião, gelo... E eu? Eu queria tanta coisa, não podia tudo se resumir a somente aquilo. Se eu fosse viver para sempre, existiam tantas coisas a serem exploradas e vistas, por que tudo se resumiria a uma coisa só? Minha cabeça doía com tantos pensamentos.

Me levantei da mesa e circulei pela casa do Norte, observando brinquedos, Yetis e Dingles. Fadinhas dos Dentes estavam sendo feitas, de pelúcia, madeira, plástico... Para que não se esquecessem dela completamente, assim como vários Jack Frosts em outro canto. Eu e Norte tínhamos feito as pazes, afinal. Mas ainda não tinha conseguido encontrar uma resposta, e isso era irritante. Todos os guardiões pareciam ter tido uma história mais simples que a minha.

Sandman, por exemplo, caiu de uma estrela enquanto era perseguido por Breu quando corria por outros planetas. Se formou em um oceano após cair, uma ilha enorme de areia dourada que causava sono em qualquer um que se aproximasse. A Lua o chamou e lhe explicou seu cerne. Quando a Lua não pudesse proteger as crianças em seu sono profundo durante a noite, Sandman o ajudaria com seus sonhos esperançosos e bonitos. Bom, queria ter tido essa sorte.

Reli a carta mais uma vez, meu coração estava apertado desde a primeira vez. Mostrei a Norte e o mesmo se sentiu triste comigo, ele era mais velho que todos nós, mais novo que Sand. Mas Sand não falava, então eu só poderia pedir a conselhos a Norte, como "O que eu faço? Corro atrás dela?", ou "Abandono tudo que eu devia fazer e fugir com ela para outro mundo?", "Eu não quero viver para sempre, Norte." As respostas de Norte eram sempre as mesmas, que eu não deveria abandonar o que conquistei e construí, que voltar a ser invisível não me faria bem, e eu deveria me lembrar da dor que foi.

Foi por conta de tudo isso e esses pensamentos, que fui até a China atrás dela. Eu não sabia muito bem o que dizer e se, ela fosse me ouvir, mas era o que me restava tentar.

A Fada criou um castelo, como um refúgio acima da cidade de Xangai. As luzes coloridas da cidade, os prédios e o castelo eram uma perfeita aquarela vibrante e de doer os olhos. Algumas fadas voavam ao redor, e outras entravam e saíam, não era sempre que dentinhos caíam, não é? Fiquei ali observando aquela maravilha até o dia amanhecer, já que a noite era quando ela mais trabalhava.

Estava frio em Xangai, e fiz crianças se divertirem com a neve por longas horas até criar coragem de ir até ela. Mas claro que o destino, ou sorte, ou o que fosse sempre me pregou peças. Enquanto uma corria, uma bola de neve lhe acertou a boca, fazendo um dentinho cair, talvez já estivesse mole. Me aproximei da criança assustado por ter a "machucado" e uma Fada maior que as outras pousou junto comigo ao lado da pequena.

Dentiana me olhou por um longo minuto, ficamos em silêncio. Seus olhos violetas, seu rosto, eram indecifráveis. As asas pararam de bater completamente, ela parecia uma estátua. Meu coração palpitava a mil, eu queria vomitar. Mas, quando o minuto passou, ela se abaixou para a menininha que chorava pelo dente caído, e ela abriu um sorriso enorme ao ver a Fada.

- Fada do Dente! Você é tão linda! Posso chamar minha mãe?

Dentiana riu. E que som...

- Não, não pode, ela ia se assustar, não?

- Oh! Mas então, eu vou ganhar uma moeda?!

- É claro que vai. - disse ainda rindo. Crianças sabiam ser engraçadas, de fato. Tirou uma moedinha dentre seus dedos e entregou para a menininha.

- Obrigada! E obrigada Jack Frost, ganhei uma moeda por sua causa!

Ela saiu andando animada e saltitanto, e logo meu sorriso e o da Fada sumiram. Voltamos a nos encarar sem dizer nada, aliás, eu é quem deveria dizer algo, mas minha garganta travou, meu corpo também. Ela me fitou da cabeça aos pés e me deu as costas, começando a bater as asas para voltar de onde veio.

- Espere! - eu gritei, com o coração quase saindo pela boca junto. - Preciso falar com você.

Silêncio, de novo.

- Eu sei o que fiz, e eu não vim aqui só de passagem.

Dentiana se virou, sua expressão era de decepção.

- É claro que veio só pra isso, Jack. Há dois dias estava um calor terrível, agora... Neve. Bem quando você chegou.

- Eu não posso controlar, você sabe. Por favor, acredite em mim.

Ela olhou para cima, com os olhos mudando de cor quase para um rosa claro, e os mesmos se encherem de lágrimas. Desviei a atenção daquilo, não conseguia suportar.

- Bom, diga. - disse dando uma suspirada, aparentemente tentando se controlar.

- Me perdoe por não ter sido quem você merece. Eu...

Nossa, como era difícil. Meu estômago doía e meu peito também, tudo isso só para dizer que sentia muito. Minhas mãos também estavam tremendo, desde o dia que cheguei.

- ... Eu sempre te admirei e... Não tive a chance de te falar...

- Não teve a chance?! - suas penas se eriçaram, como um gato ameaçado.

- Eu tive! - eu a interrompi, no mesmo instante. Pronto, era isso. Eu precisava admitir. Tive a chance, mas senti tanto medo por tudo que a Lua me disse que não segui com meu sentimento. Fugi. Senti uma falta de ar se iniciar. - Eu... Eu tive, Dentiana. Eu sinto muito... Só não me diga que é muito tarde, sabe?... Eu...

Suspirei. As mãos suando, e não conseguia parar de gaguejar.

- ...Eu devia ter te dito antes. Não devia ter sumido. E... Eu vejo o que fiz, agora.

Suas penas se tornaram mais rosas e azuis conforme eu me explicava e me desculpava.

- Foi horrível, - continuei, cada vez puxando mais ar, de desespero. - eu não consegui descansar. Dormir. A comida perdeu o sabor...

Fechei os olhos ao ir me lembrando dos momentos. Eu não queria passar por isso de novo.

-... Eu não me senti mais um protetor. Senti sua falta.

Voltei a olhar para Dentiana com muita dificuldade, já que falei tudo encarando a neve e os meus pés. Também percebi que o ar se tornou mais frio, e algumas coisas haviam congelado, como meu cajado. Mas, ela não estava assim.

Dentiana tinha todas as suas penas nas cores mais lindas, como ela própria era. Suas asas batiam freneticamente e um sorriso de orelha a orelha brotou em seu rosto. Caminhou até mim devagar, e eu já estava quase perdendo os sentidos de tanta ansiedade, mas não pude deixar de ir até ela, também.

Seus braços me envolveram assim como os meus, e ficamos naquele abraço por muito tempo.

O Homem da Lua me disseWhere stories live. Discover now