A parte boa?

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Quando cheguei no Brasil afim de fugir dos Estados Unidos, de todos os outros Guardiões e meus sentimentos, percebi que nem de todos eles eu conseguiria escapar. Sandman passeava por todas as cidades, estados e países, voando pelos sonhos das crianças. Ele conseguia assumir sua forma através de seu pó amarelo quantas vezes quisesse e sempre quando eu menos esperava. O Vento o ajudava muito bem com isso, fazendo-o voar por todos os cantos que eu me escondia propositalmente.

A parte boa é que ele não falava, então eu não precisava ouvir sobre a Fada do Dente, Noel, Coelhão... Mas ele podia assumir formas e mostrar tudo o que estava acontecendo por lá. Na última vez tentou se transformar em uma Fada muito brava e isso não me ajudou muito.

— Você me faz duvidar se é mesmo meu amigo, sabia? - eu disse irritado como sempre. Sand apenas deu de ombros e saiu flutando como quem não se importava.

Talvez ele estivesse tentando me fazer perceber que fugir de Nova York não tinha sido uma ideia muito inteligente, mas de qualquer forma eu precisava levar o frio para outros lugares. Bom, ok, não é desculpa, o Vento podia fazer isso por mim, levando minha geada, meu frio. Mas isso não vem ao caso, eu já tinha fugido.

— Amigos horríveis, Homem da Lua horrível, todo mundo aqui é simplesmente...

Minha atenção foi desviada para uma brincadeira de bolas de neves entre crianças há alguns metros. Na verdade não era bem uma brincadeira, uns valentões tentavam acertar menores que eles com a neve. E também não era uma neve muito consistente, mas podia causar boas risadas ainda. Finalmente algo que me tirasse daquele tormento mental. Voei até os mesmos e transmiti à com meu poder a vontade de revidar em um dos pequenos, junto com diversão. O medo sempre é vencido assim: riso.

— Você quer brincar, é? - disse a menininha, agora transformada. - Tome isto!

Uma bola consideravelmente grande derrubou um grandão no chão, e uma risada se iniciou. Os outros que se esconderam de medo atrás dos latões de lixo se aproximaram, com cautela, e rindo ao mesmo tempo.

— Você o acertou. Ele vai...

— Quebrar sua cara! - disse o grandão se levantando, aparência do ódio puro. - Quem você pensa que é?

— E você, hein? - disse a menina. - Parece um boneco de posto de gasolina!

Nem eu pude me conter.

Joguei a vontade de revidar em todo o grupo "oprimido", e iniciei mesmo uma guerra de bola de neves... bom... Um tanto violenta.

— O que está fazendo, Jack? - ouvi de repente. Vento estava ali, em uma forma transparente e que me deixava um pouco tonto, ele se movia como um tornado. - As crianças podem se machucar!

— Eu não deixaria isso acontecer.

Por pouco, se não fosse por mim desviando a neve para o outro lado, o grandão não acertou a imensa bola que fez no rostinho da menina. Vento derrubou a todos no chão, causando um estardalhaço, e os pais das mesmas saíram de suas casas, as procurando. Acabou a graça.

— O pessoal daqui mal tem frio e você não ajuda muito causando briga entre crianças!

Revirei os olhos, flutando para uma árvore mais próxima.

— Eles não se machucaram, deixe disso.

— Desde que chegou no Sul, você anda fazendo essas esquisitices. Por que não volta? Lá era seu lugar.

— O que você sabe sobre os lugares? Está em todos eles! Não é nenhuma surpresa pra você.

Vento me derrubou da árvore de surpresa e bati com o rosto na grama, engolindo um pouco de terra. Levantei pronto para xingá-lo, mas ele já não estava mais por perto. Vento passeava pelas ruas levando meu frio de bater os dentes. Estava 5° graus, o que era estranho pois de onde eu vim, aquilo não era frio, mas para o Brasil era.

Respirei profundamente indo até o teto de uma casa, desanimado. Bom, eu causei desentendimento entre crianças, aparentemente chateei o Vento, e Sandman... Bom, ele não fala. Mas desde que me encontrou no Sul do país, não vinha sorrindo muito, só quando eu me irritava com ele. Suas transformações da Fada do Dente sempre que me via era sempre com uma expressão diferente.

Começou com um sorriso, uma alegria sem fim, e agora acabava em tristeza ou raiva, se desentendendo com suas fadinhas, não visitando mais o Noel ou Coelhão, e estudando mais sobre os outros tipos de Fadas dos Dentes, tentando focar nisso e esquecer do resto. Ela parecia ter se distanciado do que era acostumada a fazer.

Meu Sol não iluminava mais. E a culpa era minha.

Mas eu não podia voltar.

A parte ruim era essa, na verdade. Toda essa parte. Muito mais do que a boa. A que me corroía já fazia um mês, desde que parti. O Homem da Lua não falava mais comigo e eu não tentava mais puxar assunto, ou gritar ele, coisa que fiz por muitos dias quando cheguei. Era sempre a mesma resposta. "Somos Guardiões, não humanos, não podemos ficar juntos". Não era como se eu fosse esquecer das crianças por estar ao lado da Fada, mas talvez eu me perdesse em seus encantos, de acordo com ele.

Ele não estava completamente errado. Mas não deixava doer. Qual era mesmo a parte boa em tudo isso? Sandman? Droga.

Uma mãe e seu bebê no colo passaram ao lado da casa onde eu estava, e tremiam de frio. Não usavam muitas roupas, e a bebê estava roxo por baixo dos panos finos que a mãe tentou lhe enrolar. Talvez fossem moradoras de rua, e aquilo quebrou meu coração.

Desci até as duas, e usei meu cajado acima da cabeça da criança. O frio de seu corpo foi sugado pelo galho, e ele deu uma suspirada, como se pudesse respirar melhor do que antes. Eu não podia sumir com meu gelo, mas podia fazer com que ele diminuísse. Era tudo que eu podia fazer.

— Jack Frost... - sussurou a mãe de repente, com os olhos marejados de lágrimas, e continuou andando.

— Até que você não é tão idiota assim. - disse o Vento assobiando pelos meus ouvidos, e desviando da pobre mãe e seu bebê para que não sentissem mais frio ainda.

— Nem você. - eu respondi, sorrindo.

Olhei para a Lua, depois de ignorá-la por tanto tempo nos últimos dias. Eu sentia que o Homem da Lua estava me olhando de volta. Quando iria me deixar livre?

O Homem da Lua me disseWhere stories live. Discover now