IX Verão de 1972

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As coisas começaram a acontecer exatamente como previra o velho Pessoa. Na primeira noite, Sônia Eveline, esposa de Lucio Eveline, um operador de máquinas do Complexo do Cumaru, e mãe de dois filhos, foi encontrada morta perto da pedreira. Dois garotos que brincavam por ali acharam seu corpo de bruços com a cabeça torcida para trás.

Não havia uma delegacia de polícia em Sombreado. O médico da mineradora supôs que a senhora Eveline houvesse escorregado do talude enquanto caminhava - o que ela fazia diariamente - e que, com a queda, seu pescoço houvesse se partido. De qualquer forma a causa da morte só poderia ser confirmada com uma necropsia, mas antes mesmo que isso pudesse ser feito o corpo desapareceu. O que se segue é um relato que o próprio filho dos Eveline me contou em uma outra ocasião. Apenas uma entre as inúmeras histórias que surgiriam naqueles dias estranhos em Sombreado.

O garoto se chamava Rodney, era um gordinho com boné de time de futebol que adorava brincar de bicicross na região da pedreira. Tinha uns doze anos, no máximo. Ele me contou que dividia um quarto com seu irmão mais novo e que, no dia seguinte ao desaparecimento do corpo de sua mãe, ela reapareceu para eles durante a noite. Rodney jurou de pés juntos que ele e o irmão não tiveram medo, pelo contrário, correram e a abraçaram.

Porém a coisa degringolou logo que o pai entrou no quarto após ouvir as crianças. Ele sim, tinha visto o corpo da esposa depois do, abre aspas, acidente, fecha aspas, e sabia que aquela ali podia ser qualquer coisa, menos sua mulher.

O velho Pessoa havia me dito que as coisas não costumavam matar os de casa no começo e eu acho que talvez elas fizessem isso para se incorporar na comunidade disfarçadamente, ou quem sabe porque gostassem de brincar com os sentimentos das pessoas. Isso me soa o mais provável.

Embora os fatos fossem parecidos com os narrados pelo velho Pessoa, desta vez as coisas pareciam ter menos paciência, como se o tempo delas urgisse com nem mesmo um minuto a ser desperdiçado.

Na Vila do Escondido as coisas agiram por anos, em um processo lento como uma metástase se formando nos cancros. Elas tomavam o lugar das pessoas após mortes naturais, doenças ou acidentes fatais. Apenas após possuírem uma boa parte da população as coisas saíram pra caçar. Antes disso os possuídos apenas mudavam a personalidade, talvez se tornassem mais reclusos. Era como se aguardassem o dia e a hora.

Em Sombreado as coisas foram diferentes. A coisa, ou as coisas, seja lá o que fosse que se apossasse dos corpos, queriam recuperar o tempo perdido. Todos aqueles dezesseis anos submersos no Lago Sem Nome. Todo aquele tempo esperando sangue para despertar.

Sônia Eveline, ou o que quer que estivesse dentro dela, avançou contra o marido. O pobre diabo começou e rezar assim que a viu, mas ela o agarrou pelo pescoço e o ergueu como se não fosse nada, disse Rodney.

O pai debatia as pernas enquanto a mãe falava tranquilamente: "A mamãe vai ter uma conversinha com o papai e já volta, crianças". Foi o que ela disse. Dá para acreditar?

Ela o carregou pelo pescoço até o quarto como quem carrega uma galinha pelas patas, logo depois ela fechou a porta com o calcanhar. Alguns minutos depois o pai saiu de lá outra pessoa. Uma pessoa bem diferente.

E assim foi. As pessoas em Sombreado foram mudando. Depois da família Eveline, foi a vez de Roy Caniço.

Dizem que ele estava no prostíbulo, bêbado e alterado. Uma das prostitutas, de apelido Lua Cintilante, introduziu o dedo no ânus de Roy enquanto eles faziam as coisas. As garotas mesmo disseram que ele gostava de verdade que elas fizessem isso, mas Lua contou isso pros rapazes da mineradora no meio de uma bebedeira, daí vocês já podem imaginar que ele se tornou a troça de todos.

Roy não deixou barato, não senhor. Na madrugada seguinte ele a atacou na porta do prostíbulo. Esmurrou a cara dela até os olhos saltarem feito duas jabuticabas pisoteadas. Lua ficou caída sobre uma poça do seu sangue que a terra veio a sorver.

Quem a viu disse que ela estava morta. Juraram de pés juntos. Mas bastaram algumas horas e um bocado de maquiagem, mais carregada que o normal, para Lua estar de volta.

Não fossem seus olhos saltados para fora era como se nada tivesse acontecido.

A coisa começava a se espalhar feito um vírus.

Os seguranças da mineradora liberaram o Roy, afinal a garota estava viva e disse que não iria até a cidade dar queixa. Como dizem, morreu o assunto.

Mesmo assim meu pai exigiu a demissão de Roy Caniço, entretanto, antes mesmo que isso se concretizasse, Roy foi encontrado morto nos fundos do prostíbulo empalado por um cabo vassoura.

Não é difícil deduzir o que já era óbvio.

Roy também reapareceu antes de ser enterrado, e ele nem mesmo mancava.

Depois disso não dava mais para negar o que estava acontecendo. Naquele dia eu soube que a arma que o velho Pessoa me dera seria útil, pois era chegada a hora de tirar Helen daquela casa e sumir de uma vez de Sombreado.

SombreadoWhere stories live. Discover now