Verão de 1972

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— Podem rir, riam o quanto vocês quiserem, ghá. – Dizia o velho Pessoa com seus traquejos enquanto bebericava seu copo de aguardente.

— Você já bebeu demais, velho. – Disse meu pai. – Já está confundindo as histórias que te contaram na infância com a realidade.

— O senhor, seu Ramon, é um homem de estudo, pois saiba que isso pode ser tanto uma benção quanto uma maldição, ghá. – O velho Pessoa sacou uma carteira de cigarros Continental do bolso de sua camisa, puxou um deles com os lábios e se inclinou para que meu pai o acendesse com um isqueiro, depois bebericou mais um gole, antes de continuar:

— Não é uma história. Não senhor! Eu mesmo vi – suspirou contemplativo por um instante – com esses olhos que um dia a terra há de comer. Aquele homem, ghá, estava morto. Ninguém naquele estado ficaria vivo, não senhor.

— Lá vem, orró! – Esse era Roy Caniço, um daqueles zombadores. Devo ter conhecido ao menos uns cinquenta tipos como ele por essas obras mundo afora. Esse era um magricela de ossos duros que não perderia a chance de rir da cara de quem quer que fosse, mas da sua não aceitava ninguém tirando sarro — A velha história do negro do armazém. Depois de velho criou uma tara por negros, vovô? Orró, que tem alguma coisa mal resolvida do passado hiiinc-hiiinc-hiiinc ... – Roy gargalhava igual a um cavalo relinchando.

— Você que me respeite seu fiduma rapariga! – Exclamou o velho Pessoa.

— Ei, não pragueje minha falecida mãezinha, orró!

— Nada de discussão dentro da minha casa, você estão me ouvindo? Isso não aceito. – Interveio meu pai.

Aquela era uma época em que garotos como eu não tinham voz em meio a assuntos de adultos, mas as palavras do velho Pessoa me chamaram a atenção. Helen e eu havíamos acabado de nos conhecer, tomávamos refrigerantes, conversávamos trivialidades, falávamos de música; quer dizer, eu mais a ouvia do que falava ao fim das contas.

— O que foi que aconteceu com o homem? – Esse era eu. — O negro do armazém aí que o senhor estava falando. – Perguntei.

Helen fez uma cara de "É sério que você quer ouvir as histórias desse velho bêbado?" Eu a olhei e assim que notei sua expressão já quase lhe pedi desculpas, mas era tarde.

— Antes de Sombreado existir, garoto – prosseguiu logo o velho Pessoa — bem ali onde hoje fica aquele Lago Sem Nome, existia um vilarejo e uma represa. As pessoas chamavam o lugar de Vila do Escondido. Quando me mudei pra lá, ghá, eu deveria ser pouco mais jovem que seu pai, tinha trinta e poucos. Praticamente um garoto.

— Nem tão garoto assim, seu Pessoa. – Respondeu meu pai bebericando seu copo de cerveja.

O velho prosseguiu.

— Meu primeiro casamento havia cangado às horas, sabe? Chegado ao fim. Eu perdi um filho pra tuberculose, ghá, o pequeno tinha apenas 10 anos, acho que pouco menos do que você tem hoje, tô certo?

— Eu sinto muito, seu Pessoa. – Disse eu.

— Nah... Isso foi há muito tempo atrás, filho, mas que seja. Minha primeira esposa não lidou bem com a coisa e nosso casamento acabou por acabar. Como dizem, cangou às horas, e eu não culpo ela por isso. Depois disso, ghá, eu comecei a vender sapatos de cidade em cidade, entende? Coisa de caixeiro viajante, sabe? Foi então que cheguei à Vila do Escondido ou, pra bem da verdade, eu por certo acho que foi mesmo aquela vila que se achegou em mim. Primeiro a Vila lhe encontra, entra em você, depois o leva até ela. Não são poucas as coisas que funcionam assim, ghá, mas ali tinha uma coisa, Deus me guarde. Uma coisa estranha e velha como uma múmia com o queixo caído dentro de uma tumba. Uma coisa que buscava as pessoas pelo mundo afora e as atraía pra lá.

SombreadoWhere stories live. Discover now